RELATOS DE CASO
Atraso diagnóstico em tumor do sistema nervoso central: relato de um astrocitoma pilocítico mesencefálico em pré-escolar
Diagnostic delay in central nervous system tumor: case report of a midbrain pilocytic astrocytoma in preschool child
Raphael Vasconcellos de Salles Coelho1; Tessa Maria dos Santos Sasson1; Renato Miguel Rezende1; Carmen Lucia Leal Ferreira Elias2
1. Estudante de Medicina (Interno)
2. Mestrado em Saúde Coletiva (Professora da Universidade Estácio de Sá Diretora do Hospital Municipal Jesus)
Endereço para correspondência:
Universidade Estácio de Sá
Avenida Lineu de Paula Machado, 1006
22470040
Resumo
OBJETIVO: Relatar caso de astrocitoma de diagnóstico tardio devido à sintomatologia inespecífica e discutir sobre o atraso diagnóstico em tumores encefálicos.
DESCRIÇÃO DO CASO: Paciente do sexo masculino, de 5 anos, com queixas de dificuldade de ganho ponderal, episódios de vômito e diarreia. Fazia acompanhamento irregular pela gastroenterologia do hospital, sendo a última consulta há 15 meses. Internado com diagnóstico de doença do refluxo gastroesofágico, desnutrição grave e diarreia, apresentava peso de 9300g, estatura de 93,5cm e estrabismo convergente à esquerda. Tomografia Computadorizada de crânio revelou massa sólida cística de fossa posterior, ocupando parte do assoalho do 4º ventrículo, exercendo efeito de massa sobre tronco cerebral. Após 19 dias de internação, paciente foi transferido para unidade de referência, onde foi realizada cirurgia de ressecção subtotal do tumor. O exame histológico revelou astrocitoma pilocítico. No pós-operatório, apresentou boa evolução, melhora do estrabismo, e foi encaminhado para tratamento radioterápico.
COMENTÁRIOS: O astrocitoma pilocítico é considerado um tumor Grau I. É o tumor mais frequente na faixa etária entre 2-5 anos, porém é muito rara a sua localização em tronco cerebral. Em média, os pacientes são vistos por dois médicos de diferentes especialidades e o tempo médio de diagnóstico para tumores de grau I e II é de 238 dias. Como a sintomatologia geralmente é inespecífica e está presente em outras doenças comuns da pediatria, o desafio diagnóstico pode ser grande. Um exame físico minucioso, especialmente sob o ponto de vista neurológico e oftalmológico, diminui a chance de erro e atraso no tratamento.
Palavras-chave: Pediatria, Diagnóstico tardio, Astrocitoma, Neoplasias do tronco encefálico
Abstract
OBJECTIVE: Report case of a late diagnosed central nervous system tumor due to poor symptomatology.
CASE DESCRIPTION: Male patient, 5 years old, admitted with reflux complaints, difficulty in gaining weight and episodes of vomiting and diarrhea. Had irregular medical care at the hospital, being the last visit 15 months before. Hospitalized with a diagnosis of gastroesophageal reflux disease, severe malnutrition and diarrhea, weighted 9300g, had a height of 93,5cm and at the neurological examination, it was noted left convergent strabismus. Cranial computed tomography revealed cystic solid mass of posterior fossa, occupying part of the 4th ventricle floor, exerting mass effect on the brain stem. After 19 days of hospitalization, the patient was transferred to referral center for neurosurgery, where subtotal tumor resection was performed. Histological examination revealed pilocytic astrocytoma. In the postoperative period, presented good clinical evolution, improved strabismus, and was referred to adjuvant radiotherapy.
COMMENTS: Pilocytic astrocytoma is considered a Grade I tumor. It is the most common tumor between the ages of 2-5 years, but its location in the brain stem is very rare. On average, patients are seen by two doctors of different specialties and the mean time to diagnosis for grade I and II tumors is 238 days. Since the symptoms are often nonspecific and are present in other common pediatric diseases, the diagnostic challenge can be significant. A thorough physical examination, especially neurological and ophthalmological, decreases the chance of error and delay in treatment.
Keywords: Pediatrics, Delayed diagnosis, Astrocytoma, Brain stem neoplasms
INTRODUÇÃO:
O câncer se tornou uma das maiores causas de morte entre crianças nos países em desenvolvimento como consequência da diminuição da mortalidade por doenças infecciosas.1 Os tumores encefálicos são a segunda causa mais comum de neoplasia na população pediátrica, atrás apenas da leucemia, e têm a incidência estimada entre 1.7 - 4.1/100.000/ano.2,3 São mais comuns no sexo masculino do que no feminino (54:46) 3, sendo os gliomas os tumores mais frequentes, dentre os quais o astrocitoma é o mais comum, seguido do meduloblastoma e dos tumores de células germinativas.
As características dos tumores encefálicos na infância diferem dos adultos em alguns aspectos. Quanto à localização, a porcentagem de tumores pediátricos localizados na linha média ou na fossa posterior é significativamente maior do que nos adultos, o que dificulta o diagnóstico e tratamento. A localização do tumor na linha média não indica malignidade, mas há dificuldade na técnica cirúrgica que ocorre pela grande quantidade de tecido neural circundando o tumor. Os tumores tendem a ser volumosos pela demora diagnóstica, já que a sintomatologia é inespecífica e sinais focais não são comuns na apresentação inicial.2 Os principais sintomas associados são cefaleia (66,7%), vômitos (57,7%), alterações visuais (46,2%), distúrbios da marcha (41,6%), astenia (41%) e estrabismo (26,9%).4
Dentre todas as neoplasias pediátricas, o tumor encefálico é o tumor que em média demora mais tempo para ser diagnosticado.5,6 O tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico radiológico correto é de 196 dias 4 e de aproximadamente 142 dias para tumores de fossa posterior.7 Apesar dos avanços nos métodos diagnósticos e estratégias terapêuticas, o prognóstico dos pacientes continua, em geral, reservado. Porém, há diferenças significativas de prognóstico de acordo com o tipo histológico e a localização topográfica do tumor.3
Relatamos o caso de um astrocitoma pilocítico mesencefálico localizado na região do assoalho do 4º ventrículo, em uma criança de 5 anos, com sintomatologia pouco específica e de difícil diagnóstico.
DESCRIÇÃO DO CASO:
Criança do sexo masculino de cinco anos, negra. Admitido com queixas de refluxo gastroesofágico, dificuldade de ganhar peso, episódios de vômitos e diarreia durante dois meses. Mãe do paciente relata dois episódios de vômitos por dia, em geral, pós prandiais, sem sangue ou muco. Nega febre ou outros sintomas associados. Tem história de internações prévias em outros hospitais, diagnosticado com esofagite e doença do refluxo gastroesofágico. Realiza tratamento medicamentoso com omeprazol e bromoprida. Havia sido atendido pela equipe de gastroenterologia do hospital há um ano e três meses e não retornou para continuar acompanhamento. Ao exame: alerta, ativo, hidratado, corado, acianótico, anictérico, afebril, desnutrido, ausência de edema, peso de 9300g, estatura de 93,5cm, FC: 118bpm, FR: 22irpm, pupilas isocóricas e fotorreagentes, estrabismo convergente à esquerda, sem demais alterações. Interna para investigação de provável doença gastroesofágica e tratamento da grave desnutrição. No 9º dia de internação, relata queixa de tonteira e mantém episódios de náuseas e vômitos. Foi solicitada tomografia computadorizada de crânio (Fig. 1) que revelou massa sólida com componente cístico de fossa posterior, ocupando grande parte do assoalho do 4º ventrículo e exercendo efeito de massa no tronco cerebral, mais acentuadamente em nível pontino. Foi iniciado dexametasona e o paciente transferido para unidade de referência em neurocirurgia, onde foi realizada ressecção microcirúrgica subtotal do tumor via craniectomia de fossa posterior. O resultado do exame histopatológico foi astrocitoma pilocítico (grau I). No pós-operatório, teve boa evolução clínica e melhora do estrabismo. Paciente foi, então, encaminhado para tratamento radioterápico adjuvante.
DISCUSSÃO:
O astrocitoma pilocítico é considerado tumor Grau I segundo a Organização Mundial da Saúde, o que significa que há baixo potencial proliferativo. A possibilidade de cura é possível com a ressecção completa do tumor. Tem bom prognóstico com uma taxa de 94% de sobrevida em 10 anos.8 Segundo Rosemberg, é o tumor mais frequente na faixa etária entre 2-5 anos. Porém, a localização em tronco cerebral é muito rara, compreendendo apenas 2,3% de todos os casos. O tumor mais comum em tronco cerebral é o astrocitoma difuso (66,7%).3
Como a sintomatologia geralmente é inespecífica e está presente em outras doenças comuns da pediatria, o desafio diagnóstico é grande. Um exame físico minucioso na admissão do paciente, especialmente sob o ponto de vista neurológico e oftalmológico, diminui a chance de erro diagnóstico e de atraso no tratamento.9 O exame de fundo de olho pode demonstrar papiledema e sinais de hipertensão intracraniana, e o exame neurológico pode sugerir a localização da lesão. Apesar disso, muitas vezes não é possível a realização adequada de tais exames em pacientes pediátricos. No momento do primeiro atendimento, a criança apresentava vômitos como a principal queixa. Havia fatores de confusão diagnóstica como a presença de diarreia, esofagite em Endoscopia Digestiva Alta prévia e a característica dos vômitos serem pós prandiais, o que não é comum quando sua gênese é de origem central. Além disso, não apresentava o sintoma inicial mais comum associado aos tumores encefálicos, a cefaleia.4,10 Ao exame neurológico, a única alteração foi o estrabismo convergente à esquerda que representava uma disfunção do VI nervo craniano. Alguns pacientes tratam apenas o estrabismo durante muitas semanas sem a apropriada investigação de sua causa.7 A presença de vômitos pode ser a expressão clinica da invasão do centro emético pelo tumor ou pode ocorrer devido ao aumento da pressão intracraniana, como é mais frequente.7,9,11. A associação entre cefaleia e outro sinal neurológico deve sempre chamar a atenção para a hipótese diagnóstica de neoplasias intracranianas. Porém, considerando que a presença de vômitos é a segunda alteração mais comum na apresentação inicial, sua associação com anormalidades neurológicas também deve suscitar o diagnóstico de tumores encefálicos, como no caso descrito. Inclusive, náuseas e vômitos podem ser os sintomas mais comuns no momento do diagnóstico.10
Crianças com tumores encefálicos recebem diagnóstico inicial incorreto em até 70% dos casos.12 No relato apresentado, foram feitos alguns diagnósticos equivocados, como gastroenterite viral e doença do refluxo gastroesofagiano. Em média, os pacientes são vistos por dois médicos de diferentes especialidades e o tempo de diagnóstico para tumores de grau I e II é em torno de 238 dias a partir do início do quadro.8 O atraso diagnóstico de cânceres em crianças é maior quando mais médicos são consultados.5 O diagnóstico é feito mais rapidamente quando o primeiro contato é com o pediatra e não com generalistas ou médicos de outras áreas.6 No caso, o paciente foi atendido em diversos serviços e o período entre o primeiro sintoma no nosso serviço e o diagnóstico tomográfico foi de aproximadamente 600 dias. Tal demora pode ser explicada pela ausência do paciente em consultas durante um período de 1 ano e três meses (394 dias).
Os principais fatores associados ao atraso diagnóstico de cânceres em geral são idade menor que cinco anos, baixa educação dos pais e condição socioeconômica ruim, sendo este último o mais relevante.12 Nosso paciente, possuía todos esses fatores citados. O papel dos pais é fundamental, pois são quem melhor interpretam a condição de seus filhos. Uma característica marcante dos casos em que o diagnóstico foi feito precocemente foi a persistência dos pais na tentativa da resolução do quadro clínico de suas crianças.7 Porém, não somente os fatores relacionados aos pais foram a causa do atraso diagnóstico. Pode ter havido falha no reconhecimento precoce da sintomatologia que indicava possível déficit neurológico e na integração do atendimento médico nos diversos serviços consultados. A campanha Headsmart, no Reino Unido, reduziu o tempo médio de diagnóstico com treinamento de toda a equipe de profissionais de saúde para avaliação dos principais sinais e sintomas relacionados aos estágios iniciais desses tumores e possibilitou a instituição do tratamento mais precocemente.13,14 Apesar disso, a afirmação, por si só, de que se o diagnóstico for feito mais rapidamente, o prognóstico é melhor, pode não ser verdadeira. Porque os tumores mais agressivos tendem a expressar mais intensamente sintomas, o que faz com que os pais busquem auxílio mais rapidamente e os pacientes sejam logo diagnosticados.6,15 No caso descrito, o fato do tumor ser grau I possibilitou que o paciente se adaptasse ao aumento da pressão intracraniana e ao crescimento sobre o tecido normal e expressasse sintomas mais discretos.15
O exame tomográfico confirmou a ausência de hidrocefalia e evidenciou a presença de formação expansiva heterogênea, predominantemente sólida, com componente cístico, ocupando grande parte do assoalho do 4º ventrículo e comprimindo anteriormente o tronco encefálico. O seu componente sólido apresentava discreto realce pelo meio de contraste. Apesar da localização incomum do astrocitoma pilocítico, a imagem na tomografia corresponde ao que é citado na literatura, pois são tipicamente lesões císticas que podem ter componente sólido, com nódulos murais realçados pelo contraste.8
O tratamento de escolha é a ressecção total, que pode ser curativa para tumores grau I. 11 No caso apresentado, o paciente apresentou alterações cardiovasculares importantes durante a manipulação cirúrgica do tronco encefálico, por isso foi escolhida a ressecção subtotal do tumor com a radioterapia adjuvante como seguimento. A mortalidade pós-operatória é de aproximadamente 1% e a morbidade, de 69%. As complicações pós cirúrgicas mais comuns são déficit neurológico progressivo, novo déficit neurológico, sangramento, infecção e liquorréia.11 No pós operatório, não houve complicações e as alterações oculares foram revertidas, confirmando o papel do tumor na sua gênese.
O desafio no diagnóstico de tumores encefálicos em crianças se dá na medida em que há sintomas inespecíficos e poucos sinais clínicos. Como no campo da pediatria a semiologia é dificultada pela incapacidade de expressão clara dos sintomas pelo paciente, o pediatra deve estar sempre atento para as menores alterações no exame clínico. É imprescindível a valorização do exame físico e o conhecimento da doença pelo médico, para possibilitar um diagnóstico e tratamento mais rápidos dessas crianças, visando melhorar a sobrevida e a qualidade de vida da população afetada.
Agradecimentos: Agradecemos ao Hospital Municipal Jesus e ao Dr. Antonio Rosa Bellas pelo apoio ao trabalho.
Declaração de conflito de interesses: sem conflito de interesse
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