Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 15(2) - Setembro 2015

RELATOS DE CASO

Criança exposta verticalmente ao HIV e não infectada apresentando infecções graves: evidência de imunodeficiência?

HIV vertically exposed uninfected child with severe infections: evidence of immunodeficiency?

 

Bruna Adelino Pontes Correia1; Isis Cameron1; Ivete Martins Gomes2; Rossana Oliveira Cavalcanti Rabelo3; Claudete Aparecida Araújo Cardoso4

1. Graduação em Medicina (médica pela Universidade Federal Fluminense)
2. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal Fluminense (Infectologista Pediátrica, chefe da Coordenação de Aids do Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense.)
3. Mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal Fluminense (Chefe do Ambulatório de Pediatria do Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense)
4. Infectologia Pediátrica Professora Adjunta de Pediatria Faculdade de Medicina Universidade Federal Fluminense

 

Endereço para correspondência:

Profa. Claudete Aparecida Araújo Cardoso
Universidade Federal Fluminense
Departamento Materno Infantil - Faculdade de Medicina Programa de Pós-graduação em Ciências Médicas - Universidade Federal Fluminense
Av. Marques de Paraná, 303 - Centro
Niterói - RJ - Brasil - CEP: 24.033-990
Email: claudetecardoso@id.uff.br

 

Resumo

OBJETIVO: Crianças expostas verticalmente ao HIV e não infectadas frequentemente são submetidas a maior risco de intercorrências infecciosas, comparado à população pediátrica não exposta ao vírus. O objetivo deste trabalho é relatar o caso de uma criança exposta ao HIV e não infectada que apresentou três intercorrências infecciosas graves no primeiro ano de vida.
DESCRIÇÃO DO CASO: Trata-se de criança filha de mãe usuária de cocaína, etilista, com diagnóstico de HIV desde 2006, em uso de antirretrovirais desde o segundo trimestre desta gestação. Pré-natal especializado, assintomática na gestação, CD4 de 995 células/mm3 e carga viral indetectável próximo do parto. Recebeu zidovudina intravenosa no periparto. RN foi encaminhada à UTI com desconforto respiratório, necessitando ventilação mecânica. Criança permaneceu internada por 38 dias com dois episódios de sepse confirmadas por hemocultura (Enterobacter e Serratia mascences em momentos diferentes). Após alta, apresentou um episódio de pneumonia no segundo semestre de vida, além de candidíase perineal, infecção de vias aéreas superiores, síndrome pertussis e dois episódios de bronquiolite, necessitando internação em duas ocasiões. Criança apresentou três cargas virais indetectáveis e um teste anti-HIV não reativo após os 12 meses de idade, recebendo alta do serviço após exclusão da infecção pelo HIV.
DISCUSSÃO: Apesar de não infectada pelo HIV, paciente apresentou uma clínica grave durante o primeiro ano de vida, com três infecções sistêmicas, sugerindo imunodeficiência. A observação da frequência de intercorrências infecciosas neste grupo poderá contribuir para uma melhor abordagem e uma intervenção mais adequada, com o objetivo de diminuir a morbimortalidade nessa população.

Palavras-chave: Infecção, Lactente, HIV


Abstract

OBJECTIVE: HIV vertically exposed uninfected children are often subjected to a greater risk of infectious and non-infectious complications compared to pediatric population not exposed to the virus. The objective of this study is to report the case of an HIV-exposed uninfected child that presented three serious infectious complications.
CASE DESCRIPTION: This is a child born from a mother consumer of cocaine, alcoholic, HIV-positive since 2006 on antiretroviral from the second trimester of this pregnancy. Specialist antenatal care, asymptomatic during pregnancy, CD4 count of 995 cells/mm3 and an undetectable viral load near childbirth. Received intravenous zidovudine peripartum. Newborn was transferred to the ICU with respiratory distress requiring mechanical ventilation. The child was hospitalized for 38 days presenting two features of neonatal sepsis (blood cultures positive for Enterobacter and Serratia mascences on different times). During follow-up, at Pediatric Infectious Diseases Service, she presented an episode of pneumonia in the second semester of life and perineal candidiasis, upper respiratory tract infection, pertussis syndrome and two episodes of bronchiolitis, being hospitalized on two occasions. She presented three undetectable viral loads and a negative anti-HIV test, being discharged from the service after excluding HIV infection.
DISCUSSION: Although HIV-uninfected, the patient had a severe and early clinic with presence of three systemic infections, suggesting immunodeficiency. The observation of the frequency of infectious complications in this group may contribute to a better approach and a more appropriate intervention with the goal of reducing morbidity and mortality in this population.

Keywords: Infection, Infant, HIV

 

INTRODUÇÃO

O HIV / AIDS continua a ter um profundo impacto sobre a saúde de crianças em todo o mundo. Apesar dos avanços obtidos na prevenção da transmissão vertical (materno-infantil) do HIV, cerca de 260.000 crianças se infectaram via transmissão vertical do vírus em 2012, principalmente, em locais com limitações de recursos. De 2001 a 2012, houve um declínio de 52% em novas infecções pelo HIV entre as crianças. Entre 2009-2012, um maior acesso aos serviços de prevenção de transmissão vertical do HIV impediu que mais de 670.000 crianças adquirissem o HIV pela transmissão mãe-filho1. Dentre as medidas preventivas, destacam-se o uso de antirretrovirais ao longo da gestação, seguido de administração endovenosa no periparto, com associação ao uso profilático de zidovudina pelo recém-nato por quatro semanas desde o nascimento2. Aliado a tal conduta, a realização de cesariana eletiva, recomendada para gestantes infectadas pelo HIV, com carga viral superior a 1.000 cópias/ml ou desconhecida próximo ao parto3, a orientação quanto a não amamentação e a adesão materna ao tratamento, aumentaram o número de crianças expostas ao vírus e não infectadas1.

Esses recém-nascidos são vulneráveis a um amplo espectro de morbidades. Um dos fatores de relevância para elucidação desses índices de morbidades é o comprometimento do sistema imune do lactente exposto ao HIV, em decorrência da menor transmissão de anticorpos via placentária e principalmente do não aleitamento materno, uma vez que a amamentação garante a proteção contra inúmeras infecções4-5. Outro fator importante é a administração de antirretrovirais durante a gestação e nos primeiros dias de vida da criança, os quais tem potencial de teratogenecidade, carcinogênese e toxicidade5. Ademais, crianças nascidas em famílias infectadas pelo HIV estão sujeitas a uma maior exposição a agentes patogênicos pela imunodeficiência dos indivíduos que compartilham do mesmo espaço físico, sendo a morte materna um fator que aumenta o risco de mortalidade do exposto em aproximadamente três vezes6.

O objetivo deste trabalho é relatar o caso de uma criança exposta ao HIV e não infectada pelo vírus que apresentou três episódios infecciosos graves no primeiro ano de vida, o que sugere presença de imunodepressão.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal Fluminense (CAAE: 0147.0.258.000-11).

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente feminina, nascida após amniorexe prematura, com tempo de bolsa rota de sete dias. Parto cesárea com 32 semanas, pesando 1870g, medindo 42cm e com perímetro cefálico de 30cm.

Mãe de 31 anos, tabagista, usuária de cocaína, etilista social. Diagnóstico de HIV em 2006, fazendo uso de zidovudina, lamivudina e lopinavir/ritonavir a partir do segundo trimestre da presente gestação. Realizou acompanhamento especializado de pré-natal, com 10 consultas, apresentando CD4 de 995 cels/mm3 e carga viral do HIV indetectável próximo do parto. Permaneceu assintomática durante a gestação. Foi administrado zidovudina intravenosa no periparto e contraindicada a amamentação.

Logo após o nascimento, a recém-nascida foi encaminhada à UTI neonatal para tratamento de quadro de desconforto respiratório. Devido a instabilidade, foi intubada e permaneceu em ventilação mecânica durante 12 dias. Apresentou trombocitopenia e anemia durante internação, tendo necessitado de transfusão de concentrados de plaquetas e hemácias.

A criança permaneceu internada por 38 dias, apresentando como intercorrências dois episódios confirmados de sepse, com hemocultura positiva para Enterobacter species e Serratia mascences em momentos diferentes. Fez uso de zidovudina ao nascimento até seis semanas de vida e uso de sulfametoxazol-trimetoprim profilático para pneumocistose, desde a sexta semana de vida até os sete meses de idade, na ocasião da terceira carga viral indetectável. Após alta hospitalar foi admitida no serviço de Infectologia Pediátrica para acompanhamento no primeiro ano de vida.

Durante o acompanhamento apresentou como intercorrências infecciosas: candidíase perineal, infecção de vias aéreas superiores e síndrome pertussis. Necessitou de duas internações por bronquiolite e uma por bronquiolite associada à pneumonia. Uma semana após alta da última internação, foi encaminhada à Emergência Pediátrica com quadro de broncoespasmo, com posterior diagnóstico de bronquiolite.

Procedeu-se à investigação básica de imunodeficiência desta criança, incluindo contagem de linfócitos totais e linfócitos T CD4, além de dosagem de imunogloblinas, que vieram normais, não sendo evidenciada imunodepressão na paciente.

Foram realizadas três coletas de carga viral, uma no período neonatal e duas posteriormente, sendo todas indetectáveis. Após exclusão da infecção pelo HIV com o resultado de anti-HIV não reativo, a criança recebeu alta do serviço.

 

DISCUSSÃO

Sabe-se que crianças infectadas pelo HIV apresentam alterações da função imune, predispondo-as a um maior risco de infecções oportunistas7. No entanto, há poucas informações sobre a evolução clínica de crianças expostas verticalmente ao HIV e não infectadas na América Latina8. Em estudos feitos na África que incluíram mães infectadas e não infectadas pelo HIV, observou-se que a mortalidade infantil foi maior entre as crianças expostas ao HIV e não infectadas do que entre as crianças não expostas ao vírus9-12.

Slogrove e colaboradores (2010) avaliaram oito crianças expostas ao HIV, documentando 14 infecções comunitárias e quatro infecções nosocomiais. Foram relatados três casos de pneumocistose e dois casos de gastroenterite crônica, sendo ainda descritos dois casos de sepse por Pseudomonas aeruginosa não relacionada a cuidados de saúde. Ambos os pacientes desenvolveram bacteremia nosocomial, um devido a Acinetobacter baumannii e outro por Klebsiella pneumoniae produtora de beta lactamase de espectro extendido. Foi descrito um caso de varicela zoster hemorrágica grave com posterior complicação por pneumonia causada por Staphylococcus aureus nosocomial e sepse por Escherichia coli. Há um relato de meningite e endocardite por Streptococcus pyogenes. Cinco crianças necessitaram de cuidados intensivos na admissão, quatro deles, necessitando de suporte ventilatório13. Como estudos recentes corroboram, crianças expostas ao HIV e não infectadas podem apresentar intercorrências infecciosas graves características de crianças infectadas pelo HIV, necessitando portanto, de atenção especial em seu cuidado em saúde8,13-14. Na investigação de imunodeficiência dessas crianças, realizada por meio da contagem de linfócitos totais, linfócitos T CD4 e dosagem de imunoglobulinas, não se evidenciou presença de imunodeficiência na população estudada8,13.

Na ausência de intervenções para redução da transmissão materno-infantil do HIV tais como administração de antirretrovirais na gestação e uso de AZT no parto e no recém-nascido, a transmissão vertical do HIV ocorre em cerca de 25% das gestações das mulheres infectadas. Entretanto, a literatura mostra uma redução dessa taxa para níveis entre 1 a 2% com a aplicação de todas as intervenções preconizadas pelo Programa Nacional de DST e Aids15. Neste relato de caso, a mãe da paciente apresentou-se assintomática durante a gestação, teve acompanhamento de pré-natal especializado e tinha um CD4 alto e carga viral indetectável, sendo baixas as chances de transmissão vertical do HIV. No entanto, mesmo nesse cenário de mínima probabilidade de infecção pelo HIV, a criança apresentou uma clínica grave e precoce, tendo dois episódios de sepse comprovados no período neonatal e uma pneumonia no segundo semestre de vida, configurando a presença de três infecções sistêmicas. Diante dessa apresentação clínica grave e precoce, ainda na ocasião do período neonatal foi solicitada a primeira carga viral do HIV, considerando-se a possibilidade da criança ser infectada pelo vírus por transmissão intraútero.

Neste contexto, destacamos que as crianças expostas ao HIV são submetidas a um maior risco de intercorrências infecciosas e não infecciosas que a população pediátrica não exposta ao vírus, sendo significativo o impacto da aids materna nessa população. Os problemas socioeconômicos e psicológicos que permeiam o âmbito social dessas crianças afetam diretamente o seu desenvolvimento. Portanto, se faz cada vez mais necessário, não só a ampliação das práticas preventivas de transmissão vertical do HIV, como também o preparo dos profissionais de saúde para o cuidado adequado dessa população em crescimento. Sobretudo, é de suma importância que se ofereça à família todo o suporte social e psicológico e que, independente do status sorológico do indivíduo, que este tenha os seus direitos de acesso ao tratamento e cuidados em saúde devidamente assegurados.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Recomendações para Profilaxia da Transmisão Vertical do HIV e Terapia Antirretroviral em Gestantes: manual de bolso/ Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. - Brasília : Ministério da Saúde, 2010. 172 p. : il. - (Série Manuais, n. 46)

4 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da criança: nutrição infantil: aleitamento materno e alimentação complementar / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2009.

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13 Slogrove AL, Cotton MF, Esser MM. Severe infections in HIV-exposed uninfected infants: clinical evidence of immunodeficiency. Journal of Tropical Pediatrics 2010;56(2):75-81.

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15 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids.Protocolo para a prevenção de transmissão vertical de HIV e sífilis: manual de bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids.. - Brasília : Ministério da Saúde, 2007.180 p.: il. - (Série B. Textos Básicos de Saúde)ISBN.