Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 15(1) - Fevereiro 2015

Artigos de Revisao

A importância da função paterna no desenvolvimento da criança

The importance the paternal function for child development

 

Margareth de Oliveira Kuster

Mestranda em Ética Psicóloga Hospitalar e Clínica Avenida Américo Buaiz, 501, Ed. Victoria Office Tower, sala 404, Enseada do Suá, Vitória, ES

 

Endereço para correspondência:

Avenida Américo Buaiz, 501
Ed. Victoria Office Tower, sala 404, Enseada do Suá
Vitória, ES

 

Resumo

Este artigo busca refletir sobre a função paterna enquanto construção do vínculo pai-criança, em um contexto social e culturalmente determinado. Traz à reflexão que ser pai ultrapassa os determinantes biológicos, sendo mais valorizados o desejo, o afeto e o exercício da lei enquanto representante social maior, ao passo que protege e dá segurança à criança, rumo a um desenvolvimento psíquico saudável na infância e na vida adulta.

Palavras-chave: função paterna; lei; desenvolvimento psíquico saudável.


Abstract

In this article, we aim to think about paternal role at construction of father-child bond, in a certain social and culture context. We bring the discussion that being a father exceeds biological determinants. Therefore, wishes, affection and law application are more valued elements when the father is the most important social tutor, as well as he protects and gives security to his child, toward a healthy psychological development in the childhood and adult life.

Keywords: paternal function; law; healthy psychological development.

 

INTRODUÇÃO

Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.

Goethe, Fausto, cena I.

Freud1 postulava que pai era suposto saber, ou seja, aquele que a mãe dizia ser o pai isso em uma época em que não existia o teste do DNA. Com os atuais avanços das biotecnologias, basta um exame de sangue para esclarecer, do ponto de vista genético, quem é o pai da criança.

Este artigo aborda a questão da paternidade enquanto construção simbólica da função paterna na relação com a criança, considerando que a vinculação, o afeto e a lei colocados disponíveis pelo pai farão grande diferença na história de vida da criança e seu consequente equilíbrio psíquico nas etapas de desenvolvimento posterior.

Paternidade e maternidade são muito mais que função biológica de gerar e colocar no mundo, de acordo com Manfrói, Macarini e Vieira.2 São funções da ordem do afeto, como aquilo que afeta e transforma, permitindo simbolização e construção da subjetividade da criança como ser único e desejado pelo pai, em uma relação de pertencimento e de limites que protegem e inserem a criança nos âmbitos social e cultural.

 

DISCUSSÃO

Para a psicanalista francesa Françoise Dolto,3 toda criança é marcada por uma história familiar que a antecede, o que acontece desde antes do nascimento, a partir do desejo dos pais e de suas fantasias em relação a uma possibilidade de maternidade e paternidade. Mesmo crianças que não foram conscientemente desejadas, já existiram para seus pais em algum momento de suas vidas, como se as brincadeiras infantis de papai e mamãe fossem precursoras do que um dia seria a função de pai e mãe.

Durante os primeiros anos de vida, a criança, em função de sua dependência e imaturidade biológica natural, necessita ser cuidada, protegida e orientada por adultos próximos e disponíveis, os quais são, geralmente, o pai e a mãe e, na falta desses, de adultos cuidadores que desempenhem essa função.4 Função essa entendida como o atuar estabelecendo relações entre pessoas, fatos e sentidos. Nesse aspecto é mais valorizada que a marcação biológica da genética, sendo construção simbólica no entrelace com o desejo de quem assume "ser pai", independentemente da filiação e da parentalidade formal. Pai é um nome apresentado pela mãe à criança; se não for assim, não se pode falar em função paterna, mas em genitor.

A construção da paternidade

As ciências da saúde hoje, principalmente a Psicologia, concordam que a função paterna é tão importante e estruturante para a criança quanto a função materna, embora ainda seja pouco estudada e pesquisada na relação direta entre pais e filhos.5 Ao longo da História, o homem restringiu seu relacionamento com os filhos pelo contato com a mãe da criança, sendo pai apenas dos filhos legitimamente reconhecidos; sendo pai pelo uso verbal das palavras nas horas de que dispunha; ou sendo pai ao assegurar a garantia financeira da família.

Com as mudanças socioculturais do século XX, os papéis de pai e de mãe modificaram-se. Hoje, espera-se do pai muito mais que ser somente provedor ou coadjuvante na criação dos filhos, estando ou não junto à mãe da criança. A função paterna e a forma como é exercida pelo adulto cuidador são precursoras do que mais tarde a criança vai estabelecer de vínculos afetivos com os demais, seja na relação de namoro e casamento, seja na maternidade e na paternidade.

Portanto, acredita-se que, na tríade familiar, a criança tece os laços que desenvolverá para si em vínculos futuros. Ao sentir-se amada, cuidada e protegida pelo pai em um vínculo de afeto, ela acreditará que, no futuro, terá direito a esse afeto vindo de outros e, assim, construirá bases mais sólidas de relacionamento afetivo e de pertencimento.

O que é ser pai? Quais suas funções no mundo contemporâneo?

Araújo6 mostra-nos que "a paternidade deve ser entendida como uma construção social, de acordo com um ideal cultural, com o tempo e as condições próprias".6 A função paterna é da ordem do simbólico, como aquilo que é percebido pela criança, e, inúmeras vezes, é muito diferente do ser pai real. Trata-se da construção de subjetividade mediada pelo desejo e pela lei social. Por conseguinte, exigem-se presença e investimento afetivo e contínuo do pai, em uma construção que não cessa, pois, em cada etapa do desenvolvimento, são esperadas do pai atuações diferentes, mantendo, porém, a matriz afetiva e da lei.

Exatamente por ser construção vincular entre o pai e a criança, alguns pré-requisitos se tornam essenciais nesse processo, a saber:

1. A criança precisa sentir-se amada e protegida de perigos comuns do dia a dia, sendo o pai aquele que dá o contorno e o limite do ambiente.

2. A criança precisa sentir-se importante para o pai, o qual a fará sentir-se assim com gestos carinhosos, inclusão em sua vida pessoal e profissional, com tempo disponível para cuidar, ouvir o que a criança tem a dizer, brincar, conversar etc.

3. A criança precisa confiar no pai e sentir-se em segurança com ele, o qual pode conquistar isso sendo presença constante no dia a dia, contando histórias que a incluam, desenhando juntos coisas que a interessam, vivenciando hábitos comuns do dia a dia etc.

4. A criança precisa sentir que o pai lhe ensina coisas da vida e é referência de regras e modos de convivência, considerando-se os valores e os estilo de vida familiar e social.

5. A criança precisa sentir que o pai também coloca limites à mãe, principalmente no que diz respeito a seus caprichos e relacionamento com a criança.

6. A criança precisa sentir que o pai a ajuda a inserir-se no mundo social, sendo referência de quem ser e como ser.

7. A criança precisa sentir que o pai a ensina a suportar limites e adiar instintos e que se submeter à lei dá segurança e proteção, mesmo que, a princípio, não os entenda e queira negociar ou burlar as leis.

Cabe ao pai não somente ser o representante da lei social, mas também submeter-se à mesma lei, pois a criança aprenderá muito mais por exemplo do que por palavras. A obediência à lei é um ato de filiação e de ordem social, sendo, inclusive, agente de equilíbrio e de inserção no mundo de forma adequada e construtiva.7

A construção da paternidade precisa ser exercida no vínculo com a criança, com empenho e desejo do pai nessa função. É preciso desejar e instrumentalizar-se para a função, e a mãe deve favorecer esse contato, tendo consciência de que é função do pai ser agente de separação da díade mãe-criança e que, assim, é melhor para o desenvolvimento saudável. Cabe à mãe inserir o pai na relação com a criança, de forma valorizada e de pertencimento, abrindo mão de ser absoluta para a criança, incluindo e também exigindo do pai o contato maior e de mais qualidade com a criança, naquilo que é universo infantil e de hábitos comuns.8

O pai mostra à criança que é capaz de ser individual e separada, sendo única em um mundo maior. Ao pai, cabe mostrar ao filho que a vida é cheia de frustrações e faltas e que mesmo assim é possível sobreviver e ser feliz, desde que aprenda a lidar com as dores, as decepções e as perdas. Tudo isso faz parte do que se chama realidade e mundo social. Ser pai é assumir para a criança a incompletude da vida e que nem por isso ela fica menos bela. Constrói-se, assim, a matriz do futuro adulto saudável de amanhã.

Quando isso não acontece e quando o pai mantém para a criança a onipotência do "tudo pode", perde-se a chance de educar e ser referência positiva, e a criança fica perdida e sentir-se-á enganada quando da primeira frustração e não saberá confiar em outros, podendo surgir sintomas fóbicos e de alheamento ao mundo e ao outro. Muitas crianças fixam-se em si mesmas e não percebem que há outros no mundo, inclusive seus pais. Desenvolvem comportamentos inadequados, como se o mundo e as pessoas estivessem todas para servir-lhe, o que é sinal de alerta para psicólogos e educadores.

Muitos pais recusam-se a função de ser autoridade e lei para os filhos e não assumem o seu lugar de ser adulto e referência, identificando-se com os mesmos e, às vezes, nem querem parecer pais, mas amigos dos filhos, o que parece confundir as crianças, deixando-as sem ter com quem se identificar na construção de uma subjetividade particular.

Para Matos,9

a relação com o pai deve apresentar-se como distinta e revigorante para a evolução psíquica da criança, e quando este não ocupa o seu lugar, a construção da identidade infantil fica ameaçada, conduzindo a psicopatologia.9

Quando a criança não encontra, no ambiente familiar, o limite da lei e da palavra do pai, passa a acreditar que ela pode ser a lei e, então, quer submeter os outros a sua própria lei.10 Nesses momentos, é comum surgir cenas de agressividade e violência, interesse por drogas, roubos e condutas antissociais. A falta de limites claros é considerada por Outeiral et al.11 "uma das causas mais graves de delinquência de jovens, uma vez que ficam sem exercitar sua capacidade de pensar, de ser criativo e espontâneo".11

Na função paterna, não há espaço para improvisação, mas para aprendizagens constantes e estruturantes, pois a criança também ajuda o pai a ser paterno e a constituir-se enquanto tal. Grossmann e Grossmann12 concluíram em estudo que:

crianças cujos pais as incentivaram a explorar o ambiente e que vivenciaram com seus cuidadores sentimentos de segurança e proteção, desenvolvem maior capacidade de se relacionar positivamente com outros e tem mais condições de transferir essas expectativas para outros relacionamentos na infância, adolescência e idade adulta.12

Pesquisa de Araújo6 mostra que os filhos esperam dos pais limites e que nem sempre encontram, ficando o relacionamento com o pai mascarado por um prazer contínuo que não leva a situações favoráveis no futuro.

O social que muda

Observa-se que as mudanças sociais das últimas décadas têm se refletido na forma como as famílias se comportam e criam hábitos na relação entre pais e filhos. A entrada acentuada das mulheres no mercado de trabalho, sua opção pela maior profissionalização e a crescente mobilização geográfica das famílias exigiram mudanças nas funções materna e paterna.

Nesse sentido, podemos observar como cada vez é mais comum pais levarem e buscarem as crianças na creche e na escola, assim como participarem das reuniões, estarem presentes no período de adaptação escolar, sendo os cuidadores e os responsáveis quando alguma situação de emergência ocorre. Não raro, os pedidos de guarda das crianças têm sido realizados por pais, ficando como o primeiro responsável por elas.

Por conseguinte, os pais ocupam o lugar de cuidadores, ao mesmo tempo em que precisam continuar sendo lei social e firmeza nos relacionamentos com os filhos. Os papéis alternam-se e exigem novas configurações nas famílias, as quais também saem do modelo predominantemente pai-mãe-filhos, para outros que surgem e buscam validação.13O âmbito social do século XXI é marcado por famílias com diferentes configurações, em que as funções de maternidade e paternidade saem do modelo tradicional, e nem sempre o pai biológico, o pai social e o pai de direito estão concentrados na mesma pessoa. Sendo assim, as relações estabelecidas dentro da família levam a novos jeitos de exercício da paternidade, que, inclusive, perde o seu lugar central dentro da família.

Torna-se cada vez mais comum a paternidade enquanto a função de poder ser exercida por aquele que detém o poder econômico na família, independentemente das questões de sexo. Alguns autores contemporâneos falam, inclusive, em declínio da paternidade que ainda não encontrou uma forma mais confortável para seu exercício, sendo ainda muito dependente do exercício da maternidade ou de quem a exerce.

A família, na atualidade, passa por dificuldades referenciais diante das mudanças contextuais que vem sofrendo, o que Roudinesco14 chama "rede familiar", em que as possibilidades de parentesco e nominações são muitas: pai, mãe, filhos, padrastos, madrastas, meio irmãos, agregados, entre outros.

Percebe-se que há uma crise no exercício da função paterna que busca um lugar de maior validação e reconhecimento, sendo, muitas vezes, parceiros (ou não) de mulheres fortes e autossuficientes, o que deixa o pai ainda mais perdido e não validado no lugar de boa referência para a criança. Alguns pais têm se dirigido ao Estado e às instâncias jurídicas procurando apoio e suporte à educação dos filhos, o que Decourt15 chama "terceirização da função paterna".

Há um perigo ao desenvolvimento saudável da criança quando o pai não se autoriza como referência para a criança, muitas vezes, por acreditar que não tem condições psicológicas para isso, que seu tempo de infância foi outro, que não se sente em condições de educar a criança e que não sabe construir relações de segurança e limites para a criança, sentindo-se impotente e fragilizado, o que é ruim para a criança.

Defende-se que a função paterna seja ocupada por pessoas que aceitem seu lugar de direito, sem que, para isso, percam a referência de ser suporte emocional da mãe e da criança nas etapas norteadoras do desenvolvimento.

 

CONCLUSÕES

A função paterna vem assumindo, ao longo da História, vários momentos que mostram a vinculação entre pai e criança, considerando-se os âmbitos social e cultural, desde provedor econômico da família a representante da lei social que oportuniza pertencimento e limites, oferecendo segurança. Espera-se do pai do século XXI que seja alguém que cuida, ama e protege, em uma relação vincular e de presença qualificada que se constrói no dia a dia, sem perder o lugar de ser aquele que faz surgir a marca da lei no psiquismo da criança, em prol de adultos mais integrados, considerando-se a cultura e o ambiente social em que estão inseridos.

O exercício da função paterna é considerado aquilo que vai dar contorno ambiental à criança, protegendo-a de perigos e preparando-a para a convivência pacífica com os demais, garantindo-lhes o pertencimento e o vínculo de forma gratificante e inclusiva, ao mesmo em tempo que é matriz dos futuros vínculos afetivos que a criança desenvolverá com outros ao longo da vida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Freud S. Totem e tabu. Edição Standard de Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

2. Manfrói EC, Macarini SM, Vieira ML. Comportamento parental e o papel do pai no desenvolvimento infantil. Rev Bras Cresc Desen Hum. 2011; v.21, n.1, p.5.969.

3. Dolto F. No jogo do desejo: ensaios clínicos. 2 ed. São Paulo: Ática, 1996.

4. Winnicott D. Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

5. Camus JL.O verdadeiro papel do pai. Porto: Ambar, 2002.

6. Araújo SMB. A ausência da função paterna no contexto da violência juvenil. Simpósio Internacional de Adolescente; 2005.

7. Lago TMVM. Função paterna e comportamentos delinquentes [dissertação]. Lisboa: Universidade de Lisboa; 2009.

8. Winnicott D. Teoria do relacionamento paterno infantil (1960). In: Winnicott D. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas; 1990.

9. Matos M. Adolescência, representação e psicanálise. Lisboa: Climepsi; 2005.

10. Barros FO. Do direito ao pai. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

11. Outeiral J. et al. Apud Araújo SMB. A ausência da função paterna no contexto da violência juvenil. In: Simpósio Internacional de Adolescente. 2005. São Paulo.

12. Grosmann e Grosmann. Apud Manfrói EC, Macarini SM, Vieira ML. Comportamento parental e o papel do pai no desenvolvimento infantil. Rev Bras Cresc Desen Hum; 2011;21(1), p.5.969.

13. Borges MLSV. Função materna e função paterna, suas vivencias na atualidade [dissertação]. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia; 2005.

14. Roudinesco E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

15. Decourt MCC. Psicanálise e família: a terceirização da função paterna na contemporaneidade [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2004.