Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 15(1) - Fevereiro 2015

Relato de Caso

Esquistossomose medular

Spinal cord schistosomiasis

 

Hévila Suelen Neri de Lima1; Jullianna de Sousa Farias2; Maria Clara Cordeiro Batista3; Marilia Denise de Saraiva Barbosa4

1. Graduanda em Medicina Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba
2. Graduanda em Medicina Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba
3. Graduanda em Medicina Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba
4. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente- UFPE Professora Adjunta Departamento de Pediatria e Genética - UFPB

 

Endereço para correspondência:

Avenida Manoel Moraes n° 580, Bairro Manaíra
João Pessoa, Paraíba, PB

 

Resumo

A esquistossomose é uma das endemias mais importantes no Brasil, com prevalência aproximada de 10% da população. Qualquer órgão pode ser acometido nas formas ectópicas da doença. Neste trabalho, será relatado um caso de esquistossomose com comprometimento medular. O diagnóstico foi estabelecido por meio da clínica do paciente, incluindo-se a presença de Schistosoma mansoni no exame parasitológico das fezes. O tratamento foi realizado com praziquantel por 3 dias.

Palavras-chave: esquistossomose; esquistossomose medular; Schistossoma mansoni.


Abstract

Schistosomiasis is one ofthe most important endemic diseases in Brazil, with an approximate prevalence of 10% of the population. Any organ may be involved in ectopic forms of the disease. In the following pages will be reported a case of schistosomiasis with spinal cord involvement.The diagnosis was established by clinical signs plus the presence of Schistosoma mansoni in stool examinations.The treatment was performed for three days with praziquantel.

Keywords: schistosomiasis; spinal cord schistosomiasis; Schistosoma mansoni.

 

INTRODUÇÃO

A esquistossomose humana é causada, em sua maioria, por 3 espécies de platelmintos trematódeos, a saber: (i) Schistosoma haematobium, descrito por Bilharz em 1852; (ii) Schistosoma japonicum, reconhecido e nomeado por Katsurada em 1904; e (iii) Schistosoma mansoni, diferenciado do S. haematobium por Sambon em 1907.

A esquistossomose mansônica é uma doença endêmica no Brasil. Uma média de 12 milhões de pessoas são portadoras dessa parasitose; porém, a maioria dos casos está distribuída na região Nordeste do país, embora também existam focos em diversas outras regiões, incluindo várias cidades do Sudeste. Estima-se que de 20% a 30% da população infectada têm comprometimento do sistema nervoso central. Alguns dados obtidos por necropsia demonstraram que a neuroesquistossomose assintomática tem incidência de 3 a 4 vezes maior em comparação à sintomática.

O presente trabalho tem por objetivo esclarecer algumas considerações importantes a respeito do diagnóstico de neuroesquistossomose medular na Pediatria, especificamente nos quadros de dor lombar associados à instalação aguda de paresias ou parestesias de membros inferiores, com retenção urinária. Assim, a instituição do diagnóstico precoce e a rápida introdução da terapêutica anti-inflamatória são fundamentais para a determinação de um melhor prognóstico da doença e para a prevenção de sequelas neurológicas irreversíveis, as quais ocorrem comumente nos casos mais graves e de abordagem tardia. Tudo isso pode determinar a qualidade de vida da criança e seu futuro adulto para o resto da vida.

 

RELATO DE CASO

S.E.S., 9 anos, negra, procedente da Cidade de Conde, no Estado da Paraíba. Paciente com história de dor lombar intensa, que associava ao peso da mochila escolar, procurou o Complexo de Pediatria Arlinda Marques no dia 5 de junho de 2014. Na anamnese, relataram-se fezes de consistência amolecida e com frequência aumentada, de 10 a 12 episódios por dia, havendo também raios de sangue. Além disso, reportou-se dor lombar que piorava com a posição sentada, sem outras queixas em demais sistemas.

Já no exame físico, apresentou Laseguè positivo, sem mais alterações. Foi avaliada por um ortopedista, que, com o auxílio de exames complementares (hemograma, velocidade de hemossedimentação VHS, radiografia do quadril e coxa), não associou o quadro clínico da paciente à patologia ortopédica e solicitou avaliação complementar com a Neurologia.

No dia 6 de junho de 2014, a paciente foi examinada por um especialista, que detectou o seguinte na história pessoal: dificuldade de urinar associada à dor ao ficar na posição sentada, bem como banhos diários no que relatou ser "rio em frente à escola". Então, o profissional levantou estas hipóteses diagnósticas: impotência funcional de membros inferiores; comprometimento coxofemoral bilateral; polirradiculite esquistossomótica.

Solicitaram-se os seguintes exames, acompanhado dos resultados: (i) hemograma - Hg = 11.3, Ht = 32.1, leucócitos totais = 11.800, sendo segmentados = 73, bastonetes = 4, eosinófilos = 8, linfócitos típicos = 14, plaquetas = 366 mil; (ii) VHS = 30; (iii) PCR= 5; (iv) parasitológico de fezes ovos de Schistosoma mansoni; (v) USG das vias urinárias aspecto ecográfico normal; e (iv) USG de quadril aspecto ecográfico sem alterações. Tendo diagnóstico final, pela neurocirurgia, de polirradiculite esquistossomótica. Foi encaminhada posteriormente ao serviço do Hospital Municipal de Valentina para tratamento e acompanhamento clínico. O tratamento específico com praziquantel foi instituído à paciente.

 

DISCUSSÃO

A mielorradiculopatia esquistossomótica (MRE) é a forma mais comum da doença esquistossomótica do sistema nervoso central (SNC) e tem relação estreita com a esquistossomose mansoni.

A prevalência da mielorradiculopatia esquistossomótica em área endêmica não é conhecida. Como o número de casos relatados vem aumentando de forma rápida e progressiva, admite-se que ocorrem falhas na notificação de casos novos e que a morbidade, dessa forma, da doença tem sido subestimada.

Os homens são mais acometidos pela MRE, o que pode ser explicado, em parte, por sua maior exposição ocupacional. A idade das pessoas acometidas pela MRE varia entre 1 e 68 anos, com média de 26 anos; porém, existe um pequeno percentual na faixa pediátrica, principalmente dos 8 aos 10 anos.

A princípio, apresenta-se clinicamente com dor lombar ou nos membros inferiores, evoluindo para disfunção vesical, fraqueza de membros inferiores, parestesia e raros casos de impotência sexual, em adultos.

O quadro clínico surge de forma aguda ou subaguda, com piora progressiva e acumulativa de sinais e sintomas, instalando-se o quadro clínico neurológico completo em 15 dias geralmente.

Em algumas vezes, essa evolução pode ser lenta e ocorrer ao longo de meses e anos. A dor lombar ou em membros inferiores regride ou desaparece à medida que outros sinais e sintomas vão surgindo ou se tornando mais evidentes. Alguns casos podem ter melhora clínica espontânea, mas há recorrência das manifestações neurológicas meses ou anos depois.

As regiões da coluna vertebral mais acometidas são a torácica baixa ou a lombar. Quando o cone medular é acometido, a paraplegia com flacidez e arreflexia, bem como a disfunção esfincteriana e sensitiva dominam o quadro clínico. Já a espasticidade e a alteração no nível sensitivo ocorrem em virtude do acometimento mais alto da medula.

Historicamente, há relato do primeiro registro de esquistossomose ectópica em 1889, feito por Yamagiwa, 15 anos antes de o agente etiológico, S. japonicum, ser descrito. O paciente em questão apresentou história de episódios recorrentes de epilepsia, e o exame post mortem do cérebro revelou a presença de granulomas, em que havia grande número de estruturas que foram identificadas, oportunamente, como ovos de S. japonicum. Em 1905, relatou-se a presença de granulomas no hemisfério cerebral esquerdo de um indivíduo com história de epilepsia e hemiplegia à direita, por Shimamura e Tsunoda.

Esses pesquisadores também observaram lesões esquistossomóticas no segmento lombar da medula espinhal de um segundo paciente com história de mielite transversa. Em 1913, Ferguson descreveu a presença de ovos de Schistosoma no SNC de um egípcio que morreu com paraplegia e esquistossomose na bexiga. Em 1911, realizou-se a primeira descrição de lesões ectópicas do S. haematobium, por Day e Kenawy. Eles encontraram ovos do parasita em granulomas medulares. Em 1930, identificou-se o S. mansoni como causador de mielopatia esquistossomótica em um paciente que residira no Brasil.

Em 1948, Faust publicou uma revisão sobre a esquistossomose ectópica. Com isso, concluiu a importância de atrair a atenção médica para a doença e o necessário esforço diagnóstico, uma vez que o número de casos era suficientemente grande e as complicações resultantes muito graves.

Após esse estudo de Faust, os trabalhos de revisão da literatura vieram reforçar a importância das manifestações ectópicas da esquistossomose, com ênfase no acometimento do SNC. Em 1985, Scrimgeour e Gajdusek encontraram relato de deposição de ovos no cérebro de 17 pacientes infectados pelo S. mansoni, bem como de 4 pacientes infectados pelo S. haematobium. Em outra revisão da literatura, publicada em 1999, a autora recuperou 231 casos de MRE descritos entre 1930 e 1996. Em 181 casos, a doença foi atribuída ao S. mansoni, e, em 29 casos, ao S. haematobium. Já em 1 caso, os ovos de ambas as espécies foram identificados no tecido medular. Por meio desses relatos, foi impossível afirmar que é uma doença de importante relevância para a saúde pública.

O diagnóstico baseia-se na clínica da lesão neurológica torácica baixa ou lombar alta, na comprovação de exposição à esquistossomose por técnicas microscópicas ou sorológicas e na exclusão de outras causas de mielite transversa. O padrão ouro é realizado por meio da biópsia ou necropsia; no entanto, pelos riscos e pelas sequelas em relação ao processo invasivo na medula espinhal, não é muito utilizado na prática clínica. Por isso, a laminectomia medular continua sendo importante nos casos em que há dúvida aceca do diagnóstico ou sinais de bloqueio medular.

A análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) dos pacientes com MRE revela alterações inespecíficas: elevação discreta a moderada do conteúdo proteico em 95% dos casos; níveis normais de glicose; pleocitose em 91% dos casos, com predomínio de linfócitos; presença de eosinófilos em 41% dos casos; e anticorpos anti-Schistosoma. A sorologia demonstra a presença de anticorpos contra antígenos do Schistosoma no soro para o diagnóstico da infecção. Podem ainda ser utilizados os métodos de demonstração do agente nos exames de urina, fezes e sorologias.

Como métodos de imagem, estão disponíveis a mielografia e a mielotomografia computadorizada, que podem revelar aumento irregular do diâmetro medular e defeito de enchimento com ou sem bloqueio do canal medular, bem como espessamento de raízes nervosas de cauda equina. A forma granulomatosa da doença medular é a mais frequentemente diagnosticada por esses métodos de imagem, pois causa aumento do volume medular.

A ressonância magnética também pode revelar alterações em praticamente todos os casos de MRE, como, por exemplo, aumento do diâmetro da medula espinhal ou de raízes nervosas de cauda equina nas imagens ponderadas em T1; hiperintensidade do sinal em T2 na região acometida, representando aumento do conteúdo de água (edema); e captação heterogênea de contraste (eventualmente homogênea) devido à quebra da barreira hematoencefálica.

O praziquantel é a droga de escolha no tratamento da neuroesquistossomose, pois penetra bem a barreira hematoencefálica (atinge no SNC de 15% a 20% das concentrações plasmáticas) e pelo surgimento na África de S. mansoni resistente à oxamniquina. Ao praziquantel, deve ser associado um corticoide, mas a dose e a duração de ambos ainda não foram definidas e podem ser variáveis.

 

CONCLUSÃO

Concluímos que se trata de uma doença de forma mais grave e incapacitante da infecção pelo Schistosoma mansoni, cuja prevalência em área endêmica tem sido subestimada. O diagnóstico baseia-se na presença de sintomas neurológicos decorrentes de lesões da medula espinhal em nível torácico baixo ou lombar alto, na demonstração da infecção esquistossomótica por técnicas microscópicas ou sorológicas e na exclusão de outras causas de mielite transversa. O diagnóstico precoce e o tratamento precoce e adequado, com esquistossomicidas e corticosteroides, mostram-se eficazes na maioria dos casos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Bina JC; Prata A. Tratamento da esquistossomose com oxamniquina (xarope) em crianças. Rev Soc Bras Med Trop 1996 Jul/Ago.

2. Silva LCS; Maciel PE; Ribas JGR; Pereira SRS; Serufo JC; Andrade LM et al. Mielorradiculopatia esquistossomótica. Rev Soc Bras Med 2004 Mai/Jun.

3. Lo DS; Rodrigues JC; Grisi SJ; Neto LB; Cavinatto JN. Neuroesquistossomose medular: relato de um caso com sequelas graves. Artigo de revisão da divisão de Pediatria do Hospital Auxiliar de Cotoxó do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 2005.

4. Lambertucci CM; Antunes CM. Mielorradiculopatia esquistossomótica Schistosomal myeloradiculopathy. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 2004 Mai/Jun;37(3):261-72.