Revisoes em Pediatria
Noticação dos maus tratos: uma estratégia de proteção a crianças e adolescentes
Viviane Manso Castello Branco
"É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
"É dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."Parece um poema. Na verdade é um poema. Parece a síntese do belo com o bom. Prá completar a síntese há que tornar essa norma verdadeira e justa. Isso talvez se obtenha ( que sabemos nós da concretização da verdade e da justiça?) transpondo para a organização social esses princípios gerais constitucionais dos direitos de crianças e adolescentes." (Edson Sêda)
O artigo 227 da Constituição, citado acima, contém a síntese dos compromissos assumidos pelo povo brasileiro ao assinar a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança. Os países que assinaram este documento se comprometeram a adotar providências para construir um estado social em que direitos das crianças e adolescentes sejam respeitados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - , lei federal 8.069 de 13 de julho de 1990, que regulamenta o artigo 227 da Constituição, se baseia na Doutrina da Proteção Integral. Segundo Sêda (1996), esta doutrina traz em sua base a concepção de que, além da dimensão civil e da política, a cidadania apresenta uma dimensão social, ou seja, o "poder que a pessoa exerce de manifestar vontade eficaz para ter atendidas suas necessidades básicas sempre que elas forem ameaçadas ou violadas". Dessa forma, a primeira manifestação de cidadania se dá quando a pessoa, qualquer que seja sua idade, exerce o direito de não ser ameaçada nos direitos humanos fundamentais. A nova lei trata do exercício da autoridade e da liberdade, de direitos e deveres de todos: de pais, filhos, cidadãos em geral e servidores públicos. A mudança de enfoque doutrinário da "situação irregular" para a "proteção integral" implica enormes mudanças na essência da política, que passa a abranger não os "menores em situação irregular", como o antigo Código de Menores, mas todas as crianças e adolescentes do Brasil.
O ECA institui também os Conselhos Tutelares, órgãos permanentes e autônomos, encarregados pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, cujos membros são eleitos pelos cidadãos locais para mandato de três anos. Os conselheiros têm como atribuições:
- aplicar medidas de proteção com relação à família, à saúde e à educação - incluir crianças e adolescentes em programas de apoio social, educativo e financeiro - requisitar os serviços públicos necessários acionar o Ministério Público e Autoridade Judiciária para garantir os direitos assessorar o poder público no orçamento para programas de atendimento - fiscalizar entidades e programas de atendimento a crianças e adolescentes
Os artigos 13 e 245 (anexo 1) do ECA estabelecem a obrigatoriedade dos profissionais de saúde notificarem aos Conselhos Tutelares as situações suspeitas ou confirmadas de maus tratos contra crianças e adolescentes. É importante que esta notificação seja entendida dentro do espírito da lei, que é o de garantir a proteção das crianças e adolescentes. Notificar portanto, não deve implicar em julgar o caso e sim, em dividir com outros setores da sociedade essa responsabilidade pela proteção da criança e do adolescente, objetivo maior da atuação do pediatra. A construção da parceria com os Conselhos Tutelares é um desafio importante que está colocado para os serviços de saúde e que certamente trará benefícios para o enfrentamento da violência contra a criança e o adolescente.
Ciente da necessidade de fortalecer as notificações aos Conselhos Tutelares, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro implantou em 96 uma ficha e promoveu treinamentos, em parceria com a ABRAPIA e Conselho Regional de Psicologia, para favorecer a prevenção, a identificação e a abordagem inicial das situações de maus tratos nas unidades da rede básica. Esta experiência de acompanhar o processo de sensibilização das unidades para a atuação frente às situações de violência doméstica tem permitido a identificação das dificuldades mais freqüentes.
Alguns obstáculos à notificação:
o desconhecimento do ECA, do fluxo de notificação e dos instrumentos necessários para este procedimento
a falta de capacitação do profissional para a identificação dos maus tratos, das situações de risco e dos sinais de alerta
o medo de represália por parte da família, do agressor e/ou da comunidade
a falta de retaguardas adequadas, levando a sensação de que o profissional vai expor a família e a situação da criança ou adolescente não vai ser resolvida
o isolamento do profissional na unidade, que se vê com um caso complexo, sem ter com quem conversar, sem saber como proceder e sem ter para onde referir
o medo de perder a confiança por parte da família, principalmente nas situações em que há carência de recursos comunitários e
o atendimento na unidade de saúde, mesmo com todas as limitações, acaba sendo a única possibilidade de acompanhamento
a falta de entrosamento prévio entre profissionais de saúde e conselheiros tutelares gerando desconfiança sobre os desdobramentos do caso
a inexperiência de alguns conselheiros tutelares, que muitas vezes desencadeiam ações consideradas equivocadas pelos profissionais de saúde
Apesar das dificuldades, gradativamente os profissionais vêm percebendo que a atuação do Setor Saúde tem inúmeras limitações e que a parceria com os Conselhos Tutelares, estabelecida a partir da notificação pode ajudar na abordagem dos casos.
Possibilidades da notificação:
permite, através do Conselho Tutelar, o envolvimento de outras instituições que poderão ser mobilizadas para dar o suporte necessário ao caso favorece a diminuição ou mesmo a interrupção da violência, bem como a identificação de outras crianças e adolescentes que podem estar sendo abusados na mesma família; a notificação se constitui portanto numa importante estratégia de prevenção possibilita o acesso a recursos sociais tanto para as crianças quanto para a família, tais como creche, escola, emprego, grupos de auto ajuda ( NA, AA ), bolsa de alimentos, projetos de acesso à moradia, entre outros fortalece a criação de uma rede de apoio e vigilância auxilia na abordagem dos casos de negligência com relação a observância das orientações médicas (não aplicação de vacinas, interrupção de tratamentos de doenças graves, não realização de cirurgias, alta a revelia, entre outros)
A análise dos casos notificados tem possibilitado à SMS-RJ mapear algumas das necessidades dos serviços de saúde e orientar a definição de estratégias de atuação através da própria SMS ou do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, no qual tem assento, favorecendo dessa forma, a qualificação da atenção a crianças e adolescentes.
Em junho de 99 a Secretaria de Estado de Saúde através da resolução 1354, publicada no D.O de 14/7/99 tornou obrigatória a notificação de maus tratos em todo do Estado do Rio de Janeiro também à própria SES. Foi elaborada uma ficha que deve ser preenchida e enviada a SMS de cada município, para posterior repasse à SES. Segundo orientação da SES, as Secretarias Municipais, a exemplo da SMS-RJ, poderão desenvolver suas próprias fichas desde que contenham as informações da ficha da SES. Tanto o ECA quanto a resolução da SES incluem os pediatras que atendem em consultórios e clínicas particulares. Para que se possa ampliar as notificações sugerimos algumas recomendações:
Recomendações para favorecer a notificação dos casos:
a) Para os profissionais: conhecer o Estatuto da Criança e do Adolescente; buscar conhecimento teórico sobre os maus tratos, situações de risco e sinais de alerta; procurar criar um vínculo com a família de modo a fundamentar melhor os casos suspeitos antes de notificar; procurar conhecer os conselheiros tutelares da região onde está situado o consultório ou unidade de saúde.
b) Para os serviços: divulgar o ECA, a ficha de notificação e a importância da identificação dos maus tratos a todos os setores / especialidades que atendam crianças e adolescentes: Emergência, Ambulatório, SPA, Enfermaria, Maternidade, Pediatria, Clínica Médica, Odontologia, Ginecologia, Ortopedia, entre outros; estabelecer parceria com o Conselho Tutelar da área, antes mesmo de surgirem os casos de maus tratos, para que ambos conheçam os limites e possibilidades de cada setor; organizar uma equipe multidisciplinar (poderá se constituir num Comitê de Direitos da Criança e do Adolescente), que se responsabilizará pela discussão e abordagem dos casos, pela notificação e acompanhamento dos mesmos, e pelo estabelecimento de parcerias com serviços de referência e demais setores da comunidade; encarar o caso como responsabilidade da unidade de saúde como um todo e não somente dos profissionais que atenderam à criança / adolescente; a direção deve se responsabilizar pela notificação ; não encarar a notificação como um mero ato burocrático; ao encaminhar a ficha de notificação ao Conselho Tutelar deve ser estabelecido um contato telefônico para
que juntos, Saúde e Conselho, definam a melhor conduta para o caso. Quando os profissionais da unidade de saúde estiverem atendendo uma situação que percebem que podem atender sozinhos, este fato pode e deve ser informado ao Conselho. Desta forma o mesmo só se mobilizará caso a família não volte para o atendimento ou a unidade entenda a necessidade de envolvimento de outros recursos comunitários; manter contato com os Conselhos Tutelares de forma a acompanhar os desdobramentos do caso; a responsabilidade da unidade não deve cessar com a notificação. Nos casos graves, caso seja necessário, pode ser buscado apoio no Juizado da Infância e Juventude e/ou na Promotoria de Justiça da Infância e Juventude.
É fundamental que todos colaborem neste esforço de identificação e notificação das situações de maus tratos. O levantamento destas informações certamente poderá subsidiar a implementação de políticas públicas que favoreçam a prevenção da violência e garantam a proteção de nossas crianças e adolescentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COSTA, A.C.G.; CURY,M.; MORAES, E. S.; RIVERA, D.; SILVA, A. F. A. Brasil Criança Urgente: a Lei. São Paulo, Columbus Cultural Editora, 1990
SÊDA, EDSON. A Proteção Integral: Um Relato sobre o Cumprimento do Novo Direito da Criança e do Adolescente na América Latina. Campinas, Edição Adês, 1996
ANEXO 1
Artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente que estabelecem a obrigatoriedade da notificação dos maus tratos:
Capítulo I: Do direito à vida e à saúde Artigo 13 - Os casos de suspeita ou con rma ção dos maus tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.
Capítulo II: Das infrações administrativas
Artigo 245 - Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré escola ou creche de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou con rma ção de maus tratos contra crianças e adolescentes. Pena: multa de três a vinte salários de referência, aplicando- se o dobro em caso de reincidência
ANEXO 2
Telefones Úteis
Conselhos Tutelares do Rio de Janeiro Centro - 2502-7122 Laranjeiras - 2205-3798 Vila Isabel - 2569-5722 Méier - 2595-7086 Ramos - 2290-4762 Madureira- 3390-6420 Jacarepaguá - 2446-6508 Bangu- 3332-3744 Campo Grande - 3413-3125 Santa Cruz - 3395-0988
1ª Vara de Justiça da Infância e da Juventude Tel.: 2502-6613
2ª Vara de Justiça da Infância e da Juventude Tel.: 2263-5184
Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente - (DPCA) Tel.: 3399-3681
Coordenadoria das Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude Tel.: 2550-9121
Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Tel.: 2299-3561