Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 10(2) - Dezembro 2009

RELATOS DE CASO

Pneumonia lipóide exógena na criança - importância da história no diagnóstico

Exogenous lipoid pneumonia in children - the importance of history to diagnosis

 

Maria Aparecida Soares de Souza Paiva1; Sandra Mara Moreira Amaral 2; Cinthia de Souza Pedrozo 3

1. ex-chefe do Setor de Pneumologia do Serviço de Pediatria do Hospital dos Servidores do Estado (Pneumologista do Centro de Diagnóstico e Tratamento de Doenças Respiratórias da Clínica Pediátrica do Centro Médico Barrashopping Membro do Comitê de Doenças Respiratórias da SOPERJ).
2. Ex- médica do Setor de Pneumologia do Serviço de Pediatria do Hospital dos Servidores do Estado (Médica aposentada do Ministério da Saúde- HSE).
3. Mestrado em Saúde da Criança e Adolescente pela Universidade Federal Fluminense (Tecnóloga da Faculdade de Medicina da Universidade Gama Filho).

 

Endereço para correspondência:

Maria Aparecida Soares de Souza Paiva
Rua Voluntários da Pátria, 445 sala 1101 Botafogo
Rio de Janeiro - RJ 22270-000

 

Resumo

OBJETIVO: Alertar para os riscos da aspiração de óleo mineral para os pulmões e ressaltar a importância da anamnese no diagnóstico.
DESCRIÇÃO: Relatamos os casos de dois pacientes com 14 e 18 meses com pneumopatia persistente e fatores de risco para aspiração,nos quais a história clínica dirigida levantou a hipótese diagnóstica de pneumonia lipóide por aspiração de óleo mineral, comprovada pelo lavado broncoalveolar (LBA), não sendo necessária biópsia pulmonar.
COMENTÁRIOS: A aspiração de óleo é provavelmente sub-diagnosticada. Em alguns países é um problema de saúde importante devido a hábitos tradicionais, folclóricos ou por prescrição médica inadequada. Os quadros clínico e radiológico são variáveis e inespecíficos. Freqüentemente o diagnóstico é feito retrospectivamente após os achados de biópsia. Alertamos para as pneumonias por óleo mineral no diagnóstico das pneumonias crônicas persistentes não responsivas aos tratamentos habituais. O grau de suspeição é importante porque a informação da ingestão geralmente não é espontânea.

Palavras-chave: pneumonia lipóide, óleo mineral, criança

SUMMARY

OBJECTIVE: To warn the pediatricians about the risk of mineral oil aspiration into the lungs and to emphasize the importance of history to diagnosis.
DESCRIPTION: The authors report two cases of persistent pneumonia in children aged 14 and 18 months with high risk of aspiration.The specific question about the intake of mineral oil raised the diagnosis, confirmed by bronchoalveolar lavage. Lung biopsy was not required Oil aspiration pneumonia is a rare, but probably underestimated.condition. In some countries it is an important health problem due to traditional habits or to inappropriate medical prescription.The clinical and radiological features are variable and nonspecific. Usually the diagnosis is confirmed only after lung biopsy findings. Mineral oil pneumonia should be included in the differential diagnosis of chronic pneumonia unresponsive to usual treatment. The index of suspicion is important because the information about mineral oil intake usually is not spontaneous.

Palavras-chave: pneumonia, lipid, mineral oil, child

 

INTRODUÇÃO

A pneumonia lipóide exógena por óleo mineral é causada por aspiração aguda ou crônica. A forma aguda pode ocorrer acidentalmente, geralmente por administração forçada ou em situações peculiares como no tratamento de sub-oclusão intestinal por Ascaris lumbricoides . A crônica, silenciosa, resulta principalmente da administração freqüente do óleo mineral por hábitos regionais ou iatrogenia como ocorre no tratamento de constipação intestinal . Agrava o problema a existência de fatores de risco para aspiração em crianças como baixa idade, malformações oronasofaríngeas ou gastrointestinais, disfunção da deglutição, refluxo gastroesofágico, doenças neuromusculares, síndrome de Down, entre outras.

O óleo mineral não provoca o reflexo da tosse e inibe o movimento ciliar do epitélio brônquico, atingindo os alvéolos de forma silenciosa(1). As aspirações, particularmente as microaspirações, podem então passar desapercebidas pois não há engasgo ou sufocação e os pais não as relacionam ao quadro respiratório que leva ao atendimento médico. Quando a administração é forçada, a resistência da criança perturba a fisiologia da deglutição ou provoca vômitos propiciando aspirações (2).

A pneumonia lipóide é de difícil diagnóstico porque mimetiza várias doenças.O quadro clínico varia na dependência do tipo, freqüência e volume aspirado. A febre é um sinal infreqüente. O paciente pode ser oligossintomático ou se apresentar com insuficiência respiratória de graus variáveis. No exame radiológico têm sido descritas massas pseudo-tumorais, condensações alveolares de extensão variável especialmente nos segmentos posteriores e pneumonia intersticial, sendo característica a persistência das imagens apesar de tratamentos antimicrobianos. A tomografia computadorizada evidencia além destes achados, imagens em vidro fosco, espessamento septal interlobular e áreas hipodensas sugestivas de gordura (entre -150 e -30U Hounsfield). Também tem sido descrito padrão de "crazy-paving"(3-7).

A broncoscopia com lavado bronco-alveolar (LBA)(8,9) deve ser o método diagnóstico inicial identificando macrófagos com vacúolos cheios de lipídeos. É importante realizar a coloração "oil red" ou Sudan. A espectrofotometria/cromatografia comprova a origem exógena do lipídio. O aspecto leitoso ou oleoso do lavado levanta a suspeita de pneumonia lipóide, sendo referido em até 40% dos casos. Uma série em adultos ressalta a importância do exame de escarro no diagnóstico(10).

É referida a associação de pneumonia lipóide com infecção por micobactérias atípicas. O mecanismo pelo qual os lipídeos atuariam sobre a patogenicidade das micobactérias não é bem conhecido, possivelmente há um papel dos lipídeos na proteção das micobactérias, propiciando superinfecção (11,12).Outros germes relatados são Aspergillus e Nocardia(13). No material obtido devem ser pesquisados agentes infecciosos especialmente nos pacientes que apresentam febre.

A biópsia pulmonar será indicada quando esses exames não comprovarem o diagnóstico. Uma boa história clínica permite evitar a biópsia.

 

DESCRIÇÃO DOS CASOS

Caso 1-Paciente com 1 ano e 2 meses, sexo masculino, foi encaminhado para investigação diagnóstica apresentando quadro febril e radiografia de tórax com condensação quase total do pulmão direito, imagens cavitárias e desvio do mediastino para direita (figura 1A) sem melhora após alguns esquemas de antibióticos. Apresentava malformação ano-retal, agenesia renal direita, bexiga de esforço, megaureter, hidronefrose à esquerda e válvula de uretra posterior. Havia história de internação aos 10 me-ses por pneumonia.

 


Figura 1A - RX de tórax do paciente do caso 1- Condensação total do hemitórax direito com cavitações.

 

O paciente era desnutrido (P= 6650g), taquipneico , com murmúrio vesicular diminuído à direita, ausência de ânus, eliminando fezes por fístula perineal e usava sonda vesical de alívio. Hipoxemia com pO2 58-60 mm Hg. Investigação cardiológica normal. PPD não reator e lavado gástrico negativo para micobactérias. Após a internação, a anamnese complementar dirigida revelou o uso crônico de óleo mineral para tratamento de constipação, inclusive em internação hospitalar prévia. Foi indicada broncoscopia com lavado broncoalveolar (LBA) que evidenciou imagem em espelho do pulmão esquerdo e o líquido recuperado era de aspecto leitoso, sendo realizada intensa lavagem. O exame foi negativo para infecções e a coloração específica com oil red mostrou presença de macrófagos com vacúolos de gordura em mais de 50 células. A tomografia evidenciou extenso infiltrado posterior com cavitações sugestivo de pneumonia (figura 1B). Suspenso o óleo mineral e corrigidas as malformações ano-retais e urológicas. Foi iniciada fisioterapia respiratória e a evolução foi favorável.

 


Figura 1B- Tomografia computadorizada com as mesmas alterações evidenciadas pelo RX de tórax.

 

Caso 2- Paciente com 1ano 6m , sexo masculino, foi internado no nosso hospital para investigação. Apresentava estigmas de síndrome genética com alterações faciais, hipodesenvolvimento psico-motor, abalos e convulsões. Trazia exames preliminares: teste do pezinho, T3, T4, TSH normais, investigação para infecção congênita negativa. TC de crânio normal. No mês anterior havia sido internado em UTI de outra instituição devido a crises convulsivas e febre. Neste evento a radiografia de tórax inicial era normal. Medicado com anticonvulsivantes com melhora, mas evoluiu com quadro de pneumopatia, (figura 2) não respondendo a alguns esquemas de antibióticos. Desnutrido (P= 7360g) , FR 46-52 irpm, MV diminuído à direita, alterações do cabelo sugestivas de síndrome de Menkel. A investigação para micobactérias foi negativa. Observamos distúrbio da deglutição às mamadas. A anamnese dirigida revelou que o paciente, mesmo estando sedado pelo uso dos anticonvulsivantes, foi medicado várias vezes com óleo mineral na UTI para tratamento de constipação, em geral de maneira forçada. Foi indicada broncoscopia flexível e LBA. A coloração pelo oil red evidenciou macrófagos com grânulos de gordura e material oleoso entre as células (figura 3).

 


Figura 2- RX de tórax do paciente do caso 2- Infiltrado misto bilateral, notando-se extensa condensação alveolar no hemitórax direito.

 


Lavado bronco-alveolar - coloração pelo oil red - macrófagos com óleo no interior. Presença de óleo livre entre as células

 

Suspenso óleo mineral e prescrito corticosteroide, mantido por 2 meses com melhora. Fez fisioterapia respiratória e foi encaminhado ao geneticista e fonoaudióloga.

 

DISCUSSÃO

O óleo mineral é um subproduto da destilação do petróleo. Diferentemente dos óleos animais é emulsificado mas não hidrolizado pela lipase pulmonar. É ingerido pelos macrófagos que infiltram alvéolos, septos inter-alveolares, vasos e gânglios linfáticos regionais. Posteriormente formam-se granulomas tipo corpo estranho com células gigantes e fibrose. Nesta fase também pode-se observar a presença extracelular de óleo resultante da fragmentação dos macrófagos. As aspirações de outros tipos de óleos - vegetais e animais - levam a reações tissulares diferentes. Os vegetais (oliva, soja) não causam reação e são removidos pela expectoração, os de origem animal (leite, manteiga) são hidrolizados e causam intensa inflamação hemorrágica e necrose(5, 10,11,14). A histologia dessas lesões foram extensivamente estudadas por Pinkerton(15).

A pneumonia lipóide por aspiração de óleo mineral deve ser incluída no diagnóstico diferencial das pneumonias crônicas persistentes em crianças, principalmente nas de tenra idade e/ ou com fatores de risco. O diagnóstico tardio compromete a evolução porque os pais não são alertados para a suspensão da administração do óleo com perpetuação da reação inflamatória e suas conseqüências, postergando ou inviabilizando qualquer forma de tratamento.Não encontramos estudos sistemáticos sobre as conseqüências a longo prazo deste tipo de aspiração, sendo contudo relatados casos com persistência de distúrbios funcionais e alterações radiológicas por vários anos(16). Nossos casos foram acompanhados por 5 anos e evoluíram gradativamente para melhora clínica e radiológica.

Revisão da literatura revela que freqüentemente os autores conseguiram o diagnóstico por medidas mais invasivas geralmente biópsia pulmonar e, apenas após o laudo histopatológico, foi refeita a história clínica e verificada a ingestão do óleo(3, 5, 9), reforçando a importância deste questionamento na anamnese mesmo não havendo fatores de risco.

Orientados pela história clínica dirigida obtivemos o diagnóstico de nossos casos com LBA evitando a biópsia. No paciente do caso 1 a anamnese foi dirigida ao ser constatada grave malformação ano-retal que dificultava extremamente a eliminação fecal, porém sabemos que a micro-aspiração silenciosa pode ocorrer em crianças normais com obstipação intestinal crônica para as quais o óleo mineral é prescrito inadvertidamente. No caso 2 identificamos como fatores de risco a sedação por anticonvulsivantes e o déficit neurológico com disfunção da deglutição. O grau de suspeição é importante.

Muitos casos publicados relacionam estas pneumonias com o tratamento da semi-oclusão por Ascaris lumbricoides, comum no nosso meio. Os protocolos para manuseio adequado desses casos devem incluir uso de sonda nasogástrica bem posicionada e sob supervisão médica cuidadosa.

Outras causas de aspiração relatadas na literatura são: uso de brilho labial com sabor para crianças, uso de vaselina na sonda nasogástrica(16) , uso de Vick Vaporub(17), gotas nasais oleosas e hábitos tradicionais em populações específicas (3,9). Em adultos há relato de inalação de partículas de óleo dispersas no ar em ambiente profissional(9) e em alterações do trato digestivo como ocorre na doença de Chagas. Essas possibilidades devem ser pensadas em adolescentes.

As pneumonias lipóides endógenas também apresentam macrófagos com gordura no LBA São um grupo de doenças raras decorrentes de obstrução brônquica, embolia gordurosa, proteinose alveolar e doenças de depósito lipídico e devem constar do diagnóstico diferencial(18).Mais uma vez a história é importante.

O tratamento é um desafio com resultados incertos. A administração do óleo deve ser suspensa e não há consenso na terapia com antiinflamatórios ou lavados broncopulmonares(1, 14-19). Recentemente um trabalho brasileiro enfatizou este último procedimento(20). Somente no caso número 2 foi utilizado corticosteróide por apresentar lesão intersticial e hipoxemia, além de condensação alveolar. No caso 1 devido à urgência da cirurgia para corrigir as malformações ano-retais e uretrais, foi realizada uma lavagem pulmonar à direita.

A pesquisa de agentes infecciosos deve ser realizada. Em nossos casos foi negativa.

O acompanhamento prolongado dos pacientes pelo período de 5 anos permitiu-nos observar suas evoluções, muito favoráveis apesar da gravidade inicial.

Alertamos para a iatrogenia pois nossos pacientes receberam óleo mineral por prescrição médica apesar da existência de fatores de risco para aspiração. Os pediatras devem estar atentos para o problema pois deve ser diagnosticado e pode ser evitado.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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21. Agradecimentos: Dr Paulo J.Dickstein ( expneumologista e broncoscopista do Serviço de Pediatria do HSE) por seu companheirismo e valiosa colaboração.