Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 10(2) - Dezembro 2009

Ponto de Vista

Piomiosite bacteriana

 

Marcos Vinicius da Silva Pone1; tamiris Moura2

1. Mestre em Doenças Infecciosas e Parasitárias - Chefe do Setor de Doenças Infecciosas em Pediatria do IFF/FIOCRUZ.
2. Graduanda em Medicina - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.

 

 

Piomiosite é definida como uma infecção bacteriana aguda primária da musculatura esquelética. Não ocorre em decorrência da extensão de uma infecção contígua em tecido celular subcutâneo ou óssea.1

Apesar de tradicionalmente descrita em países tropicais tem sido relatada mais frequentemente nos países temperados nos últimos anos. Enquanto nos países tropicais ocorre em geral em crianças previamente hígidas, nos países temperados tem sido relacionada a adultos com doenças de base como diabetes mellitus, doenças reumatológicas e cirrose hepática.2 Apesar de pouco valorizada a associação com doenças hematológicas neoplásicas foi recentemente revista, tendo sido encontrados 44 casos, sendo 25% destes em pacientes com leucemia linfocítica aguda e 16% em pacientes com mieloma múltiplo.3 Uma associação cada vez mais comum é com adultos com aids em estágio avançado e baixa contagem de linfócitos T CD4. Acredita-se que o aumento do número de casos nos países temperados nos últimos anos seja decorrência da elevada prevalência nesta população.4

Há prevalência maior em indivíduos do sexo masculino. Infecção multifocal pode estar presente em 10-20% dos casos. Os músculos da coxa, panturrilha, nádegas, extremidades superiores e íleo psoas são comumente acometidos. Os músculos da extremidade inferior são quatro vezes mais acometidos do que os da extremidade superior.2

Algumas dúvidas persistem sobre sua patogênese. Acredita-se que ocorra uma bacteremia transitória e disseminação para um músculo que tenha sofrido alguma lesão, em geral trauma. A musculatura é relativamente resistente à infecção, sendo descrita em menos de 0,5% dos casos a partir de uma bacteremia. O trauma serviria então como facilitador para implantação da bactéria. História de trauma é observada em menos de 30% dos casos, o que sugere que pequenos traumas, mesmo que não reconhecidos, possam estar envolvidos.4 No Brasil, toxocaríase foi associada ao desenvolvimento subsequente de piomiosite, talvez pelo dano muscular que provoca.5

Atraso no diagnóstico é comum com tempo médio para diagnóstico de 14 dias. As manifestações clínicas podem ser correlacionadas com a evolução da lesão em três estágios: invasão, supuração e sepse. No primeiro estágio, quando ocorre a implantação da bactéria no músculo, há febre baixa, anorexia e sintomas locais leves como dor localizada, edema, contração da musculatura e limitação da mobilidade. Há progressão do quadro com febre alta e exacerbação dos sinais flogísticos com calor, hiperemia e flutuação no local. O diagnóstico é em geral realizado neste estágio, que corresponde à formação dos abscessos -fase supurativa. Caso não haja diagnóstico pode haver disseminação da infecção com repercussão sistêmica, fase séptica.2

O diagnóstico é confirmado por estudos de imagem. Alterações específicas podem não ser notadas no início do quadro. Aumento de partes moles pode ser observado em radiografias simples, mas o valor deste achado é limitado. O ultrasom pode evidenciar hiperecogenicidade indicativa de aumento da musculatura por edema, com áreas de hipoecogenicidade por necrose muscular. A tomografia computadorizada (TC) detecta o edema muscular e as coleções fluídas com captação aumentada do contraste. A ressonância magnética (RM) é o exame com maior sensibilidade para o diagnóstico precoce. Define a localização e a extensão do dano muscular.6

Leucocitose, neutrofilia e aumento dos marcadores inflamatórios são observados, mas inespecíficos. O diagnóstico etiológico é estabelecido por hemoculturas e/ou cultura de material aspirado por agulha ou drenado na cirurgia. Staphylococcus aureus é o patógeno mais comum sendo responsável cerca de 90% dos casos. Streptococcus pyogenes (grupo A) é o segundo agente mais comum. Outros agentes foram descritos como Streptococcus dos grupos B, C e G, Haemophilus influenzae, Aeromonas hydrophila, Fusobacterium sp., Bartonella sp., Klebsiella pneumoniae e outros bacilos Gram negativos, anaeróbios, Salmonella sp., Candida sp., Cryptococcus, Mycobacterium tuberculosis e M avium intracelulare.6

Estudos recentes nos EUA descrevem um aumento de incidência de S. aureus resistentes à meticilina adquiridos na comunidade (CA-MRSA) nos casos de piomiosite. Estudos microbiológicos revelaram que os pacientes que fizeram infecção por CA-MRSA com cepas positivas para exotoxina leucocidina Panton-Valentine (pvl) apresentaram maiores abscessos e maior necessidade de drenagem. Este achado demanda uma mudança da cobertura antibiótica empírica inicial nestas localidades.7

O tratamento isolado com antibióticos pode ser suficiente no primeiro estágio, pois não há uma coleção de pus que possa ser individualizada e drenada. Nos estágios subsequentes o tratamento consiste de antibioticoterapia adequada associada à abordagem cirúrgica. O esquema antibiótico inicial deve incluir um agente com boa cobertura para S. aureus como a oxacilina. Posteriormente esta deve ser modificada de acordo com o resultado das culturas e do teste de sensibilidade, o Streptococcus do grupo A por exemplo é melhor tratado com a combinação de Penicilina G e Clindamicina. A cobertura para CA-MRSA com Clindamicina ou Vancomicina, apesar de justificada na terapêutica empírica inicial em alguns serviços de outros países, depende em nosso meio do isolamento deste agente nas culturas. O tempo de tratamento preconizado varia consideravelmente entre 3 e 6 semanas. Terapêutica prolongada é geralmente indicada nos casos de lesões múltiplas, graves ou por germes como Mycobacterium spp. Inicialmente venosa pode haver progressão para terapia oral após a melhora do paciente. O prognóstico é excelente com recuperação completa. A taxa de mortalidade é menor que 1%.1

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Crum-Cianflone NF. Infectious Myositis. Clin Microbiol Rev. 2008;21(3):473-94.

2. Small LN, Ross JJ. Tropical and Temperate Pyomyositis. Inf Dis Clin N Am. 2005;19:981-9.

3. Falagas ME, Rafailidis PI, Kapaskelis A and Peppas G. Pyomiositis associated with hematological malignancy: case report and review of the literature. Int J Infect Dis. 2008;12:120-5.

4. Crum NF. Bacterial Pyomyositis in the United States. Am J Med. 2004;117:420-8

5. Rayes AA, Nobre V, Teixeira DM. Tropical Pyomyositis and Human Toxocaríasis: a Clinical and Experimental Study. Am J Med. 2000;109(5):422-5.

6. Torralba KD, Quismorio FP Jr. Soft tissue infection. Rheum Dis Clin North Am 2009;35(1):45-62.

7. Pannaraj PS, Hulten KG, Gonzalez BE, Manson EO Jr and Kaplan SL. Infective Pyomiositis and Myositis in Children in the Era of Community-acquired, Methicilin-resistant Staphylococcus aureus infection. Clin Infect Dis. 2006;43:953-60.