Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 3(1) - Junho 2002

Revisoes em Pediatria

Erros laboratoriais: importância do requisitante para a sua prevenção

 

Paulo Terra

Médico, Livre-docente em patologia clínica, M.Sc. em bioquímica

 

Resumo

Erros de laboratório não se explicam apenas por falhas de sua equipe. Parte deles é condicionada por falhas organizacionais do hospital. É dever de todos estudar a patogenia das falhas e buscar a harmonia. No Brasil, há deficiência de núcleos formadores de médicos especialistas porque os cursos de graduação de muitas faculdades de medicina não incluem a medicina laboratorial. Esta se propõe a produzir laudos, e não apenas resultados. Laudos exigem cultura especializada e dependem de o especialista, após orientar o paciente, participar da colheita (melhor seria coleta) e da fase analítica. Quando a relação entre o requisitante e o especialista é de abertura, confiança e respeito mútuos, há menos erros. Os grandes laboratórios dependem de convênios e os pequenos, de centrais de terceirização. Ainda não se definiu o modelo que enseja maior autonomia e menor relação custo/benefício.

 

É engano supor que os erros laboratoriais são de responsabilidade exclusiva dos laboratórios. Dispondo-se a refletir sobre a solução do problema, qualquer médico compreenderá que: primeiro, a ajuda do requisitante é indispensável; segundo, criticar indefinidamente os laboratórios não trará benefício. Muitos dos assim chamados erros laboratoriais são reflexos de falhas relacionadas com: a) escolha do patologista clínico; b) natureza da relação entre o médico requisitante e o médico do laboratório; c) pertinência das reivindicações ao laboratório; d) viabilidade do atendimento nas condições impostas pela realidade; etc. Às vezes, ao criticarem o laboratório, os colegas estão criticando, inconscientemente, seus próprios critérios. Schcolnik & Schcolnik valorizam a abordagem sistêmica do erro, na qual não há a preocupação exclusiva de identificar grupos pessoais responsáveis por ele, e sim a de identificar todas as falhas organizacionais da instituição que o provocaram. Os serviços de saúde devem se mostrar capazes de admitir a existência de falhas que condicionam erros nos diversos setores da instituição, inclusive no laboratório. Sem analisá-las e eliminá-las, pouco valerão o avanço tecnológico e os modernos métodos laboratoriais.

Ainda que se reunam médicos de um mesmo hospital, dificilmente haverá consenso deles sobre o que seja um bom laboratório. Para ilustração, basta imaginar um teste de múltipla escolha. Bom laboratório é aquele que:

a) possui automação que o capacite a fazer qualquer exame e fornecer todos os resultados com precisão e rapidez

b) reconhece que sua atividade é paramédica, e se limita a ser eficiente nas áreas tecnológica e administrativa, evitando intromissões

c) reconhece que uma "atividade meio" é hierarquicamente subordinada à "atividade fim", propondo-se a atender incondicionalmente aos pedidos do requisitante, sem incomodá-lo com perguntas ou ponderações

d) atende o paciente com o mínimo de perguntas, para que não haja risco de elas interferirem negativamente na relação do mesmo com o requisitante

e) produz laudos elaborados criteriosamente e no tempo certo, isto é, no tempo estabelecido por um bom estudo da relação custo/benefício.

Sem buscar o consenso, será difícil resolver o problema. E para chegar ao consenso é preciso que todos analisem o problema com profundidade.

1 - Por que os médicos brasileiros têm dificuldade de definir o que é um bom laboratório

A patologia clínica foi reconhecida como especialidade médica ainda na primeira metade do século passado. Mesmo no Brasil, a especialidade já é oficialmente reconhecida há algumas décadas. Mas as nossas faculdades de medicina, em sua grande maioria, não têm a disciplina de medicina laboratorial no curso de graduação. Disto resultam:

a) grande obstáculo para a formação de médicos especialistas;

b) desprestígio da medicina laboratorial;

c) desorientação quanto à ética do relacionamento entre requisitante e patologista clínico;

d) desconhecimento do significado de uma especialidade importante na medicina atual;

e) perda de oportunidade de treinamento para os médicos em geral.

Se todo colega tivesse consciência mais exata do tipo da ajuda que o médico patologista clínico pode oferecer, os benefícios seriam grandes. Ainda hoje, muitos supõem que as preocupações do especialista se restringem aos problemas de execução das técnicas geradoras dos resultados. Se fosse verdade, a comunidade científica internacional não teria reconhecido a natureza médica da especialidade, uma vez que os problemas restritos à obtenção de resultados são resolvidos com mais propriedade por bioquímicos, biólogos e engenheiros do que por médicos. A resistência das faculdades de medicina à introdução da patologia clínica nos cursos de graduação é, sem nenhuma dúvida, o maior empecilho para a constituição de bons núcleos da especialidade. Quanto mais núcleos houver, melhores as perspectivas de boas soluções. E vice-versa.

2 - O que é patologia clínica / medicina laboratorial

Medicina laboratorial é o nome atualmente proposto para a patologia clínica. Tem as vantagens de caracterizar a natureza médica da especialidade e de evitar a velha confusão entre patologia clínica e anatomia patológica. Grosso modo, desconsiderando algumas exceções, assim se distingue a anatomia patológica da patologia clínica: a primeira colabora com o diagnóstico estudando sobretudo os tecidos sólidos, a segunda colabora com o diagnóstico estudando sobretudo as secreções e os fluidos biológicos - principalmente o sangue. A primeira se relaciona mais com as patologias de tratamento cirúrgico; a segunda, mais com as patologias de tratamento clínico. A equipe técnica de um laboratório médico é multidisciplinar. As pessoas de nível superior são, principalmente, químicos, bioquímicos, biólogos, engenheiros e médicos, sem contar os administradores de empresa. O coordenador é o médico patologista clínico, subentendendo-se que coordenação não caracteriza superioridade hierárquica no sentido científico. Para os laboratórios de terceirização, não há a mesma exigência de o coordenador ser médico. Por exemplo, em um laboratório destinado a fazer dosagens hormonais para laboratórios médicos, as equipes de trabalho são semelhantes mas, enquanto no laboratório médico a "atividade fim" é a produção de laudos (uma atividade médica), no outro, a "atividade fim" é a produção de resultados, permitindo que o coordenador seja químico ou bioquímico, independentemente de a equipe incluir, como deve incluir, médicos consultores (no exemplo, endocrinologistas e patologistas clínicos).

3 - O papel do patologista clínico na medicina moderna

Sobreira e Sanches assinalam que, no atendimento do paciente em laboratório médico, podem acontecer falhas nas três etapas: pré-analítica, analítica e pós-analítica. Haverá muito menos falhas se o atendimento for coordenado, do início ao fim, por patologista clínico. A seqüência das atribuições do patologista clínico é:

a) antes da colheita, fornecer ao paciente as instruções mais adequadas ao seu caso e captar dados (condições físicas, uso de medicamentos interferentes, etc.) visando à posterior integração deles com os resultados, para produzir o laudo;

b) durante a colheita, estar presente para captar mais dados (sobre as condições de colheita, sobre o quadro clínico, etc.) interessantes ao mesmo fim;

c) na fase analítica, participar do critério de escolha do método mais adequado para atender ao objetivo visado, dentro dos limites das condições da colheita, das condições clínicas do paciente, do uso de medicamentos interferentes, do tempo disponível para a informação, etc.;

d) transmitir à equipe encarregada da fase analítica -pertença ela ao próprio laboratório ou a laboratório de terceirização- o máximo de informações, a fim de ela poder participar do critério de escolha do método e do controle de qualidade sobre o resultado;

e) após a fase analítica, integrar dados relativos a ela e à fase pré-analítica, e produzir o laudo contendo os esclarecimentos que o requisitante deseja e comentários de interesse. Devido ao contato direto do paciente com o patologista clínico, é quase certo haver perguntas do primeiro ao segundo.

Nas respostas, a postura ética do patologista deve ser eqüidistante da intromissão e da omissão. Mesmo assim, é inevitável a possibilidade de mal-entendidos. O recurso é tentar minimizá-los. Preconizar sua profilaxia pela omissão é ruim. A absoluta transparência com o paciente é uma das recomendações principais do novo código de conduta profissional, recentemente elaborado por um grupo de instituições médicas, entre elas a SociedadeAmericana de Medicina Interna e a Federação Européia de Medicina Interna. Outra atribuição do patologista clínico é contatar o colega requisitante, para solicitar ou fornecer informações, em qualquer etapa em que seja necessário, para fins de agilização, esclarecimento ou economia.

Apesar das muitas variáveis influenciadoras dos resultados, aquelas cujas interpretações mais interessam ao requisitante são as ligadas à doença. Cabe ao especialista ser diligente quanto a produzir laudo que facilite a interpretação do requisitante. Devem ser registradas as eventuais presenças de variáveis não induzidas pela doença, exceto as de influência desprezível. Estas podem ser omitidas, a fim de preservar a objetividade do laudo. Um bom laudo pode levar o requisitante a conclusões às quais o resultado puro e simples não conseguiria levar.

Na produção do resultado, é dispensável a atuação direta do patologista clínico, mas não a sua ajuda. Como é dele a responsabilidade pelo atendimento, sua participação é necessária em todas as fases, inclusive a analítica. É preciso que tenha cultura sobre os fundamentos dos métodos, a fim de poder se integrar com a equipe da fase analítica, transmitindo informações úteis e participando dos critérios - sejam os de escolha do método ideal para o caso, sejam os de controle de qualidade (dos resultados e do sistema de trabalho da equipe).

As melhores interpretações são as que se fazem pela conjugação de conhecimentos dos dois médicos - o requisitante e o patologista clínico. Melhor, ainda, é a participação de toda a equipe. Detalhes sobre determinado exame de laboratório -sobretudo se recentemente introduzido na prática- podem, às vezes, ser menos conhecidos pelo patologista clínico do que por especialista em outra área da medicina. Isto não descaracteriza a patologia clínica como especialidade médica. São muito numerosos os parâmetros laboratoriais e quase sempre se referem a concentrações de substâncias em fluidos biológicos - sangue (principalmente) e outros (urina, etc). Para fazer com que tais concentrações sirvam ao objetivo clínico visado, é preciso levar em conta inúmeros fatores, alguns dos quais exigem conhecimentos muito específicos (de fisiologia, de patologia, de física e de matemática aplicadas) para serem bem interpretados. A transmissão destes conhecimentos ao requisitante, quando feita de modo superficial, pode levar a falsas e perigosas convicções. Cabe ao patologista clínico ajudar a evitá-las. Pode-se ilustrar por meio de dezenas de situações em cada aparelho - digestivo, respiratório, urinário, etc. O propósito aqui não é listá-las, e sim exemplificar. Sejam dois exemplos sobre o aparelho urinário.

3.1. Estudando portador de nefropatia cuja creatininemia se estabilizou em 3 mg/dL

Dizer que sua creatininemia está elevada porque ele "excreta mal" as substâncias nitrogenadas pode levar à falsa impressão de que sua excreção urinária de creatinina tenha se tornado menor do que era antes da instalação da nefropatia. A certeza de que a quantidade excretada é a mesma antes e depois da doença é indispensável, até porque sem isso não se poderá fazer bom critério comparativo entre a importância clínica da creatininemia e a do clearance como elementos de estimativa do fluxo glomerular. É preciso conhecer o fundamento da determinação do clearance, em suas bases matemática, fisiológica e patológica, para saber que a estimativa do fluxo glomerular por seu intermédio (o que inclui o achado correspondente à massa de creatinina urinária em tempo fixo) não acrescentará praticamente nenhum benefício em relação ao fluxo glomerular estimado com base na simples creatininemia isolada (desde que se conheça a altura da criança ou, o sexo, o peso e a idade do paciente adulto). São poucas as exceções, tais como as variações da massa muscular, o edema em formação, a gravidez, etc. A freqüência de vieses de interpretação é aproximadamente a mesma nos dois casos porque se, por um lado, a estimativa por cálculo baseado na creatininemia é um tanto prejudicada face a variações individuais, por outro, a determinação experimental do clearance também não reflete com exatidão o fluxo glomerular, inclusive por estar mais sujeita a erros nas fases pré-analítica e analítica.

3.2. Estudando urina de criança, colhida em saco coletor

Quando as fases pré-analítica e analítica são controladas por patologista clínico, ele saberá as diferenças entre a progressão geométrica do crescimento bacteriano e a progressão aritmética do volume urinário produzido em igual período, tornando-se relativamente fácil esclarecer no laudo as dúvidas sobre os resultados obtidos. Para a integração das duas progressões, ele precisa saber os tempos aproximados de permanência da urina na bexiga e de duplicação da população bacteriana. De posse destas informações e de outras - sobre a densidade, os elementos anormais e a sedimentoscopia, ele quase sempre poderá elaborar laudo conclusivo. Eventuais dúvidas que persistam podem ser esclarecidas pelo estudo comparativo com outras amostras colhidas no mesmo dia. Um critério laboratorial bem estabelecido limita muito as indicações de cateterismos vesicais e de punções suprapúbicas baseadas na desconfiança do pediatra quanto a resultados de urinas colhidas em saco coletor. Analisando os princípios científicos do método de contagem de colônias, não se encontram motivos nem para desconfiança incondicional quanto a urinas colhidas em saco coletor (mesmo que a colheita tenha sido feita em casa) nem para a troca periódica do mesmo - exceto quando há contaminação com fezes ou gotas de urina (ambas fáceis de serem observadas visualmente). Fora disso, a troca estaria contra-indicada, por causa das lesões cutâneas que tende a provocar.

Por outro lado, é possível comprovar a inconveniência de a correlação clinicolaboratorial ser feita com base em tabelas. Estudando os assim chamados valores normais ou valores referenciais, Galen demonstrou que eles pouco ajudam nas conclusões sobre a doença, independentemente da abordagem estatística empregada para suas respectivas obtenções.

4 - Alternativas e controvérsias na organização dos laboratórios

São muitas as opções. O usuário pode escolher a organização que lhe pareça mais benéfica, mas com a preocupação de evitar decisões empíricas. É melhor que se respeitem algumas premissas básicas, como a de a equipe técnica do laboratório apresentar graus suficientes de empenho, de profundidade científica, de consciência ética e de cuidado. Siqueira, professor emérito da UFMG, entende que a ética e o cuidado constituem a essência de nossa profissão e de que sem eles não há relação médico-paciente. Aplicando-se este preceito a todas as especialidades, inclusive a patologia clínica, a conclusão é de que é preferível os laboratórios terem médicos patologistas clínicos durante o expediente.

Melhor ainda é a organização ensejar que cada paciente seja acompanhado pelo mesmo patologista clínico, na seqüência orientação prévia, coordenação da colheita, produção do laudo específico. Cabe a pergunta: proceder de acordo com este planejamento força uma despesa inviável ou deixar de proceder assim é que força uma economia inviável? Até certo ponto, depende da expectativa de cada um. Por exemplo, a seguinte dúvida, levantada pelo mesmo autor acima referido, diz respeito ao tipo de profissional que queremos: "técnicos médicos ou cidadãos médicos"?

4.1. O porte dos laboratórios médicos

Os pequenos laboratórios têm a seu favor principalmente a relação direta médico-paciente, com as conseqüentes vantagens disto sobre o controle de qualidade. Têm contra si, principalmente, o problema da insuficiência de capital, o que os obriga a hipertrofiar a dependência a laboratórios de terceirização e limita investimentos continuamente necessários para a modernização do equipamento e para a contratação de pessoal - esta no sentido de manter a equipe em nível de especialização ajustado às exigências do progresso científico.

Os grandes laboratórios têm a seu favor, principalmente, a capacidade de investir em equipamentos e em pessoal, além de maior autonomia na parceria com os laboratórios de terceirização. Têm contra si, principalmente, a dependência compulsória a convênios e o tratamento impessoal a pacientes e médicos.

O que é preferível: os laboratórios médicos funcionarem à semelhança de consultórios médicos ou à semelhança de grandes empresas? Só o tempo definirá os benefícios sustentáveis e, portanto, a relação custo/benefício ideal. Como em outras áreas da medicina, "os efeitos das mudanças a curto prazo podem ser avaliados, mas não os de longo prazo", conforme assinala Siqueira. À parte hipóteses não comprovadas, é impossível prever o porte laboratorial a ser consagrado pelo futuro. Custo e benefício são variáveis independentes. O fator de consagração do grande ou do pequeno laboratório não será nem uma nem outra isoladamente, e sim a relação entre elas. Sejam dois exemplos para ilustrar o benefício da diminuição dos erros laboratoriais: a) pode ser necessária a compra de aparelhos muito caros. Isso aumenta o custo mas, como o benefício também aumenta, o que importa é a proporção dos aumentos; b) se a opção do futuro for a de laboratórios funcionando à semelhança de consultórios médicos, esteja implícito que, exigir-se-ão numerosos módulos pequenos, porque a demanda será grande. Mais uma vez, não importa o custo, e sim a relação entre ele e o benefício.

4.2. Laboratórios de hospitais

Em hospital público, o paciente é obrigado a suportar a minimização dos serviços de hotelaria. Em hospital privado, não. Mas a excelência nos serviços de hotelaria, às vezes, é conseguida a expensas de aumentar demasiadamente a relação entre o trabalho administrativo e o trabalho técnico. O ideal é a eqüidistância dos extremos: por um lado, não impor ao paciente o desconforto e o mau gosto; por outro, não hipertrofiar a burocracia a ponto de desvirtuar o sentido essencial do atendimento médico. Se prevalecerem, no hospital, as exigências administrativas, a equipe técnica do laboratório estará condenada a trabalhar sob pressão constante de cobranças financeiras e burocráticas - feitas, algumas vezes, por pessoas voluntariosas ou sem consciência dos efeitos negativos de suas exigências. Estas podem aumentar erros.
Quando o hospital possui vários laboratórios, as chefias devem ser integradas sob coordenação única, como em qualquer outra especialidade. No início do século passado, quando a patologia clínica não existia como especialidade médica, foi idealizado um sistema de laboratórios independentes (um para rotinas, outro para técnicas especiais, outro para pesquisas, outro para atender ao serviço tal, etc., chefiados por vários especialistas). Hoje se sabe que a falta de integração dos laboratórios aumenta a relação custo/benefício e que a chefia exercida por especialista estranho à medicina laboratorial agrava este problema e propicia erros.

Outro aspecto: há menos erros quando os que exercem "atividade fim" compreendem que os colegas em exercício de "atividade meio" não são seus subordinados hierárquicos. O laboratório exerce "atividade meio". Isso não justifica o uso de sua equipe técnica para secretariar médicos, pacientes ou administradores. A questão não é de vaidade e sim de validade - ou seja: de evitar prejuízo para a qualidade do serviço técnico. Haverá vantagem em um pediatra proceder como subordinado hierárquico do cirurgião que lhe pediu para avaliar o risco cirúrgico de seu paciente? Não importa que o cirurgião esteja exercendo uma "atividade fim" e o pediatra, uma "atividade meio". Poderia ser o contrário: o cirurgião ser chamado para dissecar uma veia. Em cada caso, aquele que está exercendo a "atividade meio" estará subordinado ao interesse médico daquele que está exercendo a "atividade fim", mas o sentido desta subordinação não se confunde com o hierárquico. O Código de Ética Médica prevê isso, ao estabelecer que "as relações do médico com os demais profissionais em exercício na área de saúde devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e independência profissional de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente". E, ainda, que "é vedado ao médico deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e de tratamento a seu alcance em favor do paciente". Por exemplo: se, por falta de autorização de outro colega, um patologista clínico deixa de realizar um exame necessário, estará transgredindo o Código de Ética Médica. Flechner refere que só se conseguirão bons resultados quando a atmosfera entre o requisitante e o patologista for, de parte a parte, de confiança, de respeito e de abertura - com o máximo de troca de informações. O autor considera fundamental o patologista conhecer a indicação clínica para o pedido, e menciona o seguinte: o requisitante que a omite sob a alegação de assim estar testando a honestidade do laboratório está, na verdade, jogando um jogo perigoso com a vida de seu paciente, e o patologista que aceitar suas regras estará sendo conivente com ele. O laudo depende da indicação clínica porque os valores preditivos, a sensibilidade e a especificidade do método variam conforme o objetivo.

4.3. Tempo de entrega dos resultados

Para definirem este tempo, os laboratórios devem usar relação custo/benefício calcada na harmonização de vários critérios. Nem sempre é vantajoso apressar a liberação do laudo, porque isso impede, por exemplo: a) que um parâmetro Y, determinado depois de X, controle a qualidade do resultado de X precipitadamente liberado; b) que os resultados sejam submetidos à apreciação do patologista clínico, antes de serem liberados; c) que sejam feitas eventuais repetições necessárias. Impõe-se o diálogo entre requisitante e patologista para definir em que momento quem deve concordar com o quê, visando à melhor relação custo / benefício.

4.4. Laboratórios de urgências

Como em qualquer outra especialidade, raramente um plantonista executa toda e qualquer tarefa com eficiência comparável à da equipe de rotina. Como sempre, o melhor é harmonizar os interesses do requisitante e do laboratório em cada caso. Cabe à equipe de rotinas do laboratório trabalhar com a máxima rapidez imposta pela relação custo / benefício, e também cabe a ela procurar atender a pedidos especiais justificados pelo requisitante. Por outro lado, é dever do requisitante restringir, o mais possível, os pedidos de urgência. Por exemplo: em alguns casos, basta pedir ao plantonista para colher o material, deixando a realização do exame para as rotinas do dia seguinte. Colher urina antes de iniciar antibioticoterapia pode ser urgente e, entretanto, o exame pode não ser.

4.5. Automação v.s. trabalho manual conjugado com microcomputadores

Estatísticas comparando automação organizada com trabalho manual desorganizado apresentam viés semelhante ao das que comparam trabalho manual organizado com automação desorganizada. Tauille e Schmitz sustentam que a tecnologia de ponta sofre sérias restrições quando distante do local de fabricação e que a incapacidade doméstica de manter os aparelhos é um fator de freio à automação. Sem entrar neste mérito, o fato é que a automação não é a única alternativa compatível com precisão. Só tem duas vantagens comprovadas: eliminar trabalho manual e ensejar a realização simultânea de grande número de exames, aumentando a velocidade média de alguns conjuntos de informações. Mas automação não aumenta necessariamente a velocidade de um resultado isolado, bem como não diminui necessariamente os erros laboratoriais. Pesquisas realizadas na Universidade de Kiel, na Alemanha, referidas por Kirch, permitiram saber que o número de diagnósticos errados aumentou de 7 para 11%, nos últimos 30 anos. O fato foi creditado a dois problemas principais: os médicos confiam demais em exames de valor não comprovado e os aparelhos são incorretamente operados.

O autor acentua que os médicos jovens confiam cegamente nos aparelhos e se alheam a métodos clássicos. O termo automação é mal definido, dificultando a sua análise. Por exemplo, em relação a um colorímetro, um fotômetro é um equipamento automático. Convém não confundir automação com informatização. Esta pode ser utilizada em associação tanto com trabalho automatizado quanto com o assim chamado trabalho manual. Apesar de a automação ser muito anterior à informática, o termo automação passou a ser usado para designar a associação da automação com a informática. Por analogia, a associação da informática com o trabalho manual pode ser designada semi-automação. Para fins médicos, o trabalho em laboratório não automatizado, quando feito com bons aparelhos e bons reagentes, por equipe competente e amparada por microcomputadores (semi-automação), produz resultados de precisão comparável à dos de um bom laboratório automatizado, conforme está demonstrado em tese de pós-graduação em engenharia, apresentada à COPPE/UFRJ. Muitos parâmetros fornecidos por aparelhos automáticos modernos são meros cálculos feitos pelo microprocessador integrado ao aparelho. Os cálculos poderiam ser efetuados por qualquer microcomputador. A semi-automação tem sobre a automação a vantagem de o controle do programa poder ser feito pelos próprios técnicos do laboratório. Pruden, Tietz e Siggaard-Andersen alertam para a possibilidade de a automação ser uma "benção traiçoeira". É que, na hipótese de o sistema ter sido incorretamente programado pelo fabricante, os erros ficam fora de controle do laboratório. Por fim, há o seguinte: em muitos aparelhos de automação, o uso de reagentes de alta qualidade é compulsório. Isto confere ao sistema uma precisão que independe da automação. Laboratórios não automatizados também podem utilizar reagentes de alta qualidade.

Em suma, a questão de o laboratório optar ou não por automação total está longe de ter a relevância que alguns supõem. O sistema tem vantagens e desvantagens, mas o saldo, em termos de precisão, é o mesmo do da semi-automação. O trabalho automatizado é apenas uma opção que depende do interesse do usuário. Por exemplo, nos EUA, quase ninguém quer realizar trabalho manual; no Brasil, muitos querem e precisam. Coriat entende que a automação acaba gerando desemprego. Rattner complementa, referindo que este acarreta desequilíbrio social por dois mecanismos: perda salarial e perda da oportunidade de treinamento. O treinamento pode propiciar aprendizado científico que compensa deficiências do período escolar. Mas, quando se restringe a operar cegamente aparelhos automáticos, não serve para preencher lacunas culturais. O acúmulo de informações superficiais sobre tecnologia de ponta não traduz cultura científica. Ao adquirirem novos aparelhos, os laboratórios devem ter cuidado. Leite alerta para o marketing ostentatório. Este é semelhante ao de outros produtos, como carros, etc.: novos lançamentos tanto podem representar melhoria da qualidade, quanto simples ostentação. Pior ainda quando as vendas se fazem com base no sofisma de que os aparelhos automáticos são uma alternativa às deficiências de formação científica dos países em desenvolvimento. Operar cegamente aparelhos ajuda, mais do que tudo, a perpetuar estas deficiências.

4.6. Terceirização

Para o fim de planejar e executar as técnicas correspondentes à fase analítica, outros profissionais podem ser mais credenciados do que médicos. Em parte por isso, nas centrais de terceirização, certos exames tendem a ser executados com melhor técnica e com mais economia do que em laboratórios médicos. Acresce que, nestes, a demanda de alguns exames pode ser inferior à necessária para ensejar boa relação custo / benefício na execução interna. Com as facilidades de comunicação e com as atuais técnicas de conservação e de transporte de materiais biológicos, a terceirização passou a ser solução adotada, internacionalmente, para muitos exames.

Entre os aspectos positivos da terceirização, um é dar margem a que os laboratórios médicos se libertem de alguns encargos internos da fase analítica. Cada vez mais, estes encargos têm se limitado às técnicas relacionadas com as rotinas do dia a dia (estas se justificam pela urgência ou porque certos materiais não podem ser transportados). Liberado de parte das tarefas analíticas, o laboratório pode se ocupar mais da parte médica do atendimento. A executar técnicas passíveis de serem terceirizadas, é preferível o patologista clínico usar seu tempo atendendo pacientes, contatatando médicos requisitantes e estudando para produzir os laudos.

Entre os aspectos negativos da terceirização, um é o de estimular conexões diretas, sem a intermediação do laboratório médico. Andriolo refere que hoje, é inadmissível que se pense poder dominar a especialidade de patologia clínica. Centrais de terceirização se destinam ao apoio a laboratórios médicos. Pretender abolir a participação do patologista clínico significa comprometer a qualidade do atendimento dos pacientes. Outro aspecto negativo da terceirização é o que se observa quando o porte do laboratório médico é demasiadamente pequeno, tornando-o muito dependente da central, inclusive quanto a preços. Seria preferível que a parceria fosse simples opção. Dependências compulsórias suprimem liberdades essenciais. É o mesmo que acontece com grandes laboratórios quando se tornam dependentes de convênios.

 

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