Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 22(3) - Setembro 2022

Editorial

Impacto da pandemia por COVID-19 em doenças crônicas neurológicas pediátricas

Impact of COVID pandemic in chronic neurologic pediatric disorders

 

Ana Paula Horokosky Kovacs1; Alexandra Prufer Queiroz Campos Araújo2

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v22i3p105-107

1. Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPMG - Rio de janeiro - RJ - Brasil
2. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de Pediatria - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

 

Endereço para correspondência:

ana.horokosky@gmail.com

Recebido em: 05/12/2022

Aprovado em: 14/12/2022

 

 

IMPACTO DA PANDEMIA POR COVID-19 EM DOENÇAS CRÔNICAS NEUROLÓGICAS PEDIÁTRICAS

Após o surgimento de nova infecção viral causada pelo coronavírus emergir na China, a comunidade científica busca identificar não somente estratégias de prevenção, tratamento e cura, mas também os fatores de risco, comportamento da doença em combinação com patologias de base dos indivíduos e impacto nos aspectos biopsicossociais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou, em 30 de novembro de 2022, 639.132.486 casos confirmados no mundo, incluindo 6.614.082 de mortes pela infecção.1 No Brasil, na mesma data, já haviam sido registrados mais de 35 milhões de casos e cerca de 680 mil mortes, tendo como foco pandêmico a Região Sudeste, que registrou quase 14 milhões de casos confirmados e cerca de 330 mil óbitos.2

Inicialmente, dentro do cenário global caótico com a crescente taxa de contaminação e mortalidade, carência de equipamentos de proteção individual e equipamentos médicos para todos e ausência de medicamentos e vacinas comprovadamente eficazes contra a infecção, as lideranças governamentais globais adotaram medidas de restrição social, como o distanciamento físico, visando permitir a expansão dos sistemas de saúde para melhor responder aos casos da doença enquanto a transmissão viral era reduzida.3 A pandemia e as medidas prementes necessárias para contenção da doença, entretanto, apresentaram impactos econômicos, abalaram a saúde mental dos indivíduos e impactaram os sistemas de saúde saturados, expondo populações vulneráveis, como indivíduos com doenças crônicas, que sofreram com a dificuldade de acesso a atendimento de saúde, realização de procedimentos agendados e indisponibilidade de medicamentos.4 Não obstante, de acordo com pesquisa realizada pelo DataSenado5 (2022), a pandemia alterou a rotina familiar substancialmente e ocasionou sobrecarga dos pais para conciliar o trabalho em home office com o sistema on-line de aulas dos filhos, além de ter afetado o processo de ensino-aprendizagem e acarretado efeitos negativos na sociabilidade, o que envolve também questões emocionais e relacionais das crianças e adolescentes.

Os desafios apresentados pelo cenário pandêmico são ainda maiores para pais, familiares e responsáveis por crianças com necessidades especiais de saúde (CRIANES). Afinal, as CRIANES, devido a sua própria condição de saúde, estão mais propensas a infecções devido à instabilidade no sistema imunológico, frequentes visitas aos serviços de saúde e maior prevalência de comorbidades.6 No contexto pandêmico, com as medidas restritivas, o acesso aos serviços de saúde e cuidados multidisciplinares se tornaram um desafio adicional aos pais e/ou cuidadores de CRIANES.6 Os achados de um estudo realizado pelo nosso grupo de pesquisa corroboram esses impactos em pacientes com distrofia muscular de Duchenne (DMD), em que o acompanhamento multiprofissional foi reduzido pelo cenário pandêmico.7

Um estudo sobre cuidado das CRIANES na atenção domiciliar evidenciou que o sistema de atenção domiciliar (SAD) teve comprometimento no serviço, levando ao cancelamento ou desregulação na periodicidade dos atendimentos, bem como ao adiamento de procedimentos ou alta "precoce" de atendimentos domiciliares.8 Essas medidas influenciam diretamente na assistência em saúde da criança e dos responsáveis, bem como podem impactar na qualidade de vida e progressão da doença de base.

No que concerne ao impacto da pandemia nos cuidados paliativos pediátricos, o cenário é ainda mais preocupante. Os serviços de cuidados paliativos em pediatria sofreram enfraquecimento devido ao colapso do sistema de saúde e ao desvio dos esforços para contenção dos casos de Covid-19. Assim, a interrupção de consultas domiciliares e hospitalares decorrentes do isolamento social e a restrição rigorosa de visitas em hospitais foram alguns dos responsáveis pelo enfraquecimento do serviço.9 Cabe ressaltar que o enfraquecimento do serviço impacta diretamente na qualidade de vida dos usuários e dos familiares.

Em pacientes pediátricos com condições crônicas neurológicas na Itália, um estudo sobre o impacto do lockdown neste grupo ressaltou que a aplicação da telemedicina é efetiva no longo prazo, em especial com a inclusão de suporte social para impedir o isolamento dos pais e da criança, além de não sobrepesar os pais com os cuidados especiais de saúde da criança.10 Destaca-se que, das 514 crianças avaliadas, nenhuma apresentou formas severas da doença.

Uma revisão de escopo levantou questões importantes sobre o impacto nos aspectos sociais de crianças com doenças crônicas. Os autores ressaltam que cenários críticos expõem as crianças com deficiência, devido a suas próprias limitações funcionais e, na ausência de uma resposta humanitária inclusiva, pode haver violação dos direitos da criança pela exclusão de sua rede de apoio social. Os autores também trazem como impacto da pandemia nos serviços de saúde: diminuição das equipes de saúde, ausência de plataforma para telemedicina, escassez de hemoderivados, problemas no sistema de logística e na gestão, bem como difícil acesso ao diagnóstico de doenças.11, 12

As medidas restritivas também impactaram na menor assistência e educação inadequada, em especial para crianças com doenças crônicas e deficiências. Além do isolamento social e dificuldades de acesso às terapias multiprofissionais importantes na sua reabilitação, o enclausuramento aumenta o estresse familiar, o que pode levar ao aumento de violência doméstica contra as crianças, em especial aquelas com deficiências, considerando seu perfil vulnerável 13.

A pandemia trouxe como aprendizado a urgente necessidade de adaptação e inovação para plataformas de telemedicina eficazes que possam atingir, inclusive, a população rural e família em vulnerabilidade social. Ainda, no que diz respeito ao cuidado de crianças com doenças crônicas, atenta-se para a necessidade de apoio psicossocial para prevenir o estresse psicológico crônico e também mitigar os efeitos negativos sobre a saúde mental dos pais, responsáveis e criança.14

Neste número da revista da SOPERJ, um artigo traz mais uma avaliação da consequência indireta da pandemia. Diante do cenário pandêmico e ainda incerto, a perspectiva de novas publicações é certa e necessária para a identificação das consequências desta crise global, tanto positivas quanto negativas. A comunidade científica deve trazer, ao longo dos próximos anos, reflexões sobre os impactos da pandemia e as sugestões de mudança ao sistema de saúde atual, de forma a prevenir e mitigar os efeitos negativos de uma próxima crise.

 

REFERÊNCIAS

1. World Health Organization. WHO COVID-19 dashboard [Internet]. World Health Organization. 2021. Disponível em: https://covid19.who.int/

2. Coronavírus Brasil [Internet]. covid.saude.gov.br. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/

3. Prem K, Liu Y, Russell TW, Kucharski AJ, Eggo RM, Davies N, et al. The Effect of Control Strategies that Reduce Social Mixing on Outcomes of the COVID-19 Epidemic in Wuhan, China. SSRN Electronic Journal. 2020.

4. Borges KNG, Oliveira RC, Macedo DAP, Santos JC, Pellizzer LGM. O impacto da pandemia de COVID-19 em indivíduos com doenças crônicas e a sua correlação com o acesso a serviços de saúde. Rev Cient Esc Estadual Saúde Pública Goiás "Candido Santiago". 2020;6(3):e6000013.

5. Impactos da pandemia na educação no Brasil. DataSenado - Senado Federal. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/materias/pesquisas/impactos-da-pandemia-na-educacao-no-brasil>. Acesso em: 12 ago. 2022.

6. Medeiros JPB, Neves ET, Pitombeira MGV, Figueiredo SV, Campos DB, Gomes ILV. Continuity of care for children with special healthcare needs during the COVID-19 pandemic. Revista Brasileira de Enfermagem. 2022;75(2).

7. Kovacs APH, Sequeira VCC, Kovacs JMHMS, Pereira JÁ, Fortes CPDD, Araújo APQC, Ribeiro MG. Efeito da Pandemia por Covid-19 nos Cuidados de Indivíduos com Distrofia Muscular de Duchenne, 2022. Rev. Bras. Neurol. 58(2):25-30.

8. Lima PMVM. Cuidado às crianças/adolescentes com necessidades especiais de saúde na atenção domiciliar: Percepção da família. 2022. 115f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, 2022.

9. Silva LM, Gonçalves L da S, Colares LM, Macedo MBQ, Pereira MD, Moreira LA, et al. Repercussões da pandemia da Covid-19 na prestação de cuidados paliativos em pediatria. Research, Society and Development. 2022 Jul 27;11(10):e198111032586.

10. Bova SM, Basso M, Bianchi MF, Savaré L, Ferrara G, Mura E, et al. Impact of COVID-19 lockdown in children with neurological disorders in Italy. Disability and Health Journal. 2021 Apr; 14(2):101053.

11. Vasquez L, Sampor C, Villanueva G, Maradiegue E, Garcia-Lombardi M, Gomez-García W, et al. Early impact of the COVID-19 pandemic on paediatric cancer care in Latin America. The Lancet Oncology. 2020 Jun; 21(6):753-5.

12. Antunes BS, Kinalski DDF, Schneider V, Silva AF da, Motta M da GC da. A COVID-19 e as crianças com doenças crônicas: revisão de escopo. Research, Society and Development. 2020 Dec 13;9(12):e5391210748.

13. Zehra C, Gulendam K. Children with Chronic Disease during COVID-19 Pandemic and Nurses' Roles. International Journal of Caring Sciences, 2021 4(3).

14. McLoone J, Wakefield CE, Marshall GM, Pierce K, Jaffe A, Bye A, et al. It's made a really hard situation even more difficult: The impact of COVID-19 on families of children with chronic illness. Shepherd S, editor. PLOS ONE. 2022 Sep 1;17(9):e0273622.