Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 22(1) - Março 2022

Relato de Caso

Síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada ao Sars-Cov-2: relato de caso

Pediatric multisystem inflammatory syndrome associated with Sars-Cov-2: case report

 

Bárbara de Lima Lacerda1; Bárbara Bertolino Ravagnani1; Bianca Prado e Silva1; Laís Santos Nunes1; Nathália Antunes dos Santos1; Valdir Rubi Ecke Júnior1; Vanessa Geron1; Maísa Moscardini Moreira Herker Souza1,2

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v22i1p51-56

1Fundação Santa Casa de Misericórdia de Franca, - Franca - São Paulo - Brasil

2Orientadora

 

Endereço para correspondência:

barbarallacerda@hotmail.com

Recebido em: 26/06/2021
Aprovado em: 31/12/2021


Instituição: Fundação Santa Casa de Misericórdia de Franca, - - Franca - São Paulo - Brasil

 

Resumo

INTRODUÇÃO: A infecção pela Covid-19 iniciada na China em 2019 disseminou-se rapidamente pelo mundo, atingindo sobretudo adultos e idosos. Em abril de 2020, no entanto, houve a identificação de uma síndrome inflamatória multissistêmica (MIS-C) com predomínio em crianças e adolescentes. Essa síndrome se manifesta de diferentes formas, podendo assemelhar-se à síndrome de Kawasaki e ao choque tóxico e evoluir para choque, a maioria cardiogênico, com elevação de enzimas musculares cardíacas.
OBJETIVO: Relatar o caso de duas crianças infectadas pelo vírus SARS-CoV-2 que evoluíram com MIS-C e refletir sobre a importância do reconhecimento precoce e rápida instituição de tratamento para a enfermidade.
DESCRIÇÃO DO CASO: Trata-se de um relato de caso de dois pacientes distintos que apresentaram a MIS-C após contraírem o vírus SARS-CoV-2. Os dois casos apresentaram sintomas e evoluções diferentes, embora ambos preenchessem critérios diagnósticos para a síndrome.
DISCUSSÃO: Entre os critérios clínicos da MISC, observam-se com maior frequência manifestações como febre, sintomas gastrointestinais, comprometimento cardíaco e elevação de marcadores inflamatórios. Tratando-se de uma síndrome nova relacionada à Covid-19, é de grande relevância a documentação de novos casos para o melhor reconhecimento e manejo da complicação que acomete principalmente a faixa etária pediátrica.

Palavras-chave: Pediatria. Síndrome de Linfonodos Mucocutâneos. COVID-19.


Abstract

INTRODUCTION: Covid-19 infection begun in China in 2019 spread quickly throughout the world, reaching mainly adults and elderly. In April 2020, however, a multissistemic inflammatory syndrome (MIS-C) with a predominance in children and adolescents was identified. This syndrome manifests in different ways, and may resemble Kawasaki syndrome and toxic shock, and evolve to shock, most cardiogenic, with elevation of cardiac muscle enzymes.
OBJECTIVE: To report the case of two children infected by SARS-COV-2 virus that have evolved with mis-C and reflect on the importance of early and rapid recognition of treatment for illness.
CASE DESCRIPTION: This is a case report of two distinct patients who presented MIS-C after contracting the SARS-COV-2 virus. The two cases presented different symptoms and evolutions, although both fill diagnostic criteria for the syndrome.
DISCUSSION: Among the clinical criteria of MISC, there are more frequently manifestations such as fever, gastrointestinal symptoms, cardiac commitment and elevation of inflammatory markers. In the case of a new syndrome related to CUVD-19, it is of great relevance the documentation of new cases for the best recognition and management of the complication that mainly affects the pediatric age group.

Keywords: Pediatrics. Mucocutaneous Lymph Node Syndrome. COVID-19.

 

INTRODUÇÃO

A infecção pelo vírus SARS-CoV-2 iniciada na China no fim de 2019 rapidamente disseminou-se pelo mundo. Inicialmente, a pandemia atingiu sobretudo adultos e idosos, sem registros em crianças.1 Contudo, em abril de 2020, o Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra emitiu alertas após a identificação de uma síndrome inflamatória multissistêmica designada MIS-C, que acomete predominantemente crianças 1-6 semanas após infecção pelo SARS-CoV-2.2

Essa síndrome se manifesta de diferentes formas, podendo assemelhar-se à síndrome de Kawasaki e ao choque tóxico.3 Os pacientes afetados normalmente apresentam manifestações sistêmicas, principalmente febre alta persistente, além de conjuntivite não purulenta, dor abdominal, vômitos, diarreia, exantemas e edema de mãos e pés. Podem evoluir rapidamente para choque, a maioria cardiogênico, com elevação de enzimas musculares cardíacas.4,5,6

O objetivo deste trabalho é relatar casos de duas crianças que desenvolveram MIS-C após infecção pelo Covid-19, bem como as manifestações clínicas apresentadas e o manejo terapêutico ofertado. A documentação de uma síndrome rara e ainda pouco conhecida é de grande importância, dada a necessidade do reconhecimento precoce e da rápida instituição terapêutica, evitando desfechos desfavoráveis.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Caso 1

ABA, sexo masculino, 3 anos, previamente hígido, iniciou com febre de 38°C e vômitos. No pronto-socorro infantil solicitaram exames laboratoriais, observando-se anemia normocrômica e normocítica e pancitopenia em hemograma (Tabela 1).

 

 

O paciente foi admitido em regular estado geral, prostrado, ativo e reativo, descorado, hidratado, afebril, saturando 96% em ar ambiente, com frequência respiratória de 26 incursões por minuto (ipm), sem alterações à ausculta pulmonar. Estava taquicárdico, com frequência cardíaca de 140 batimentos por minuto (bpm). Apresentava distensão abdominal, dor difusa à palpação superficial e profunda, fígado palpável três centímetros abaixo do rebordo costal, descompressão indolor, além de edema bipalpebral 1+/4+. Iniciaram-se diurético, antibiótico, sintomáticos e monitorização contínua.

Inicialmente foi interrogado quadro viral e arbovirose, sendo solicitados novos exames laboratoriais (Tabela 1) e de imagem, o qual apresentou proteína C-reativa elevada e granulações tóxicas finas em 60% dos neutrófilos. A radiografia torácica evidenciou aumento de infiltrado intersticial e radiografia de abdome revelou alças intestinais distendidas. A ultrassonografia de abdome demonstrava hepatoesplenomegalia.

Nos dias subsequentes, o paciente evoluiu com piora do quadro, apresentando febre de 38ºC, hipotensão, taquidispneia, frequência respiratória de 60 ipm, saturando 92% em ar ambiente, redução do murmúrio vesicular à direita com crepitações difusas. Seguiu com piora do edema bipalpebral (2+/4+), da distensão e dor abdominal. Foi ofertado oxigênio por cateter nasal, com monitorização e solicitação de novos exames laboratoriais (Tabela 1).

Apresentando anemia importante, redução da hemoglobina para 7,0g/dl e plaquetopenia (60.000/mm³), optou-se pela realização de transfusão de um concentrado de hemácias. No dia seguinte, exames de controle mostraram aumento de hemoglobina e plaquetas, passando para 9,9g/dl e 188.000/mm³, respectivamente.

Com piora do quadro, solicitou-se tomografia computadorizada (TC) de tórax e abdome, evidenciando opacidades pulmonares difusas em vidro fosco, consolidações em bases pulmonares, derrame pleural bilateral, aumento cardíaco, confirmando hepatoesplenomegalia.

Diante dessas alterações, um ecocardiograma foi solicitado, revelando aumento de câmaras cardíacas direita e esquerda, manutenção do desempenho sistólico ventricular, pequena insuficiência valvar mitral e tricúspide, hipertensão arterial pulmonar (38mmHg) e fração de ejeção de 59%. Havia discreto derrame pericárdico sem alterações hemodinâmicas. Com isso, instituiu-se terapia com o cardioprotetor Sildenafil inicialmente a 0,5mg/kg/dose, via oral, de 8 em 8 horas e Dexametasona 0,15mg/kg/dose,via oral, de 6 em 6 horas por 5 dias.

Após a instituição da terapia com corticoide, o paciente evoluiu com melhora do estado geral e da distensão abdominal, porém manteve fígado palpável. Manifestou melhora importante do edema bipalpebral e de membros inferiores. O exame de quimioluminiscência previamente solicitado para Covid-19 mostrou reatividadepara IgM e IgG (Tabela 1), evidenciando infecção prévia pelo coronavírus.

Nessa ocasião, foi levantada a hipótese diagnóstica de MIS-C, confirmada a partir da associação de evidências clínicas e laboratoriais de inflamação ativa, disfunção de múltiplos órgãos, com acometimento cardíaco, além de alterações nos exames de imagem e exclusão de infecções bacterianas ou outras causas. O paciente finalizou a corticoterapia com Dexametasona, evoluindo com estabilidade clínica, recebeu alta com uso do cardioprotetor supracitado e agendamento para seguimento ambulatorial.

Caso 2

RDSR, sexo feminino, 9 anos, previamente saudável, apresentou febre de 39°C associada a tosse seca e exantema pruriginoso pelo corpo. Evoluiu com edema bipalpebral, dispneia, dor abdominal e hiporexia. Relatou resfriado um mês antes do início dos sintomas, negando contato prévio com casos positivos para Covid-19.

No pronto-socorro infantil, foram solicitados hemograma, urina tipo I e PCR, sem alterações e teste rápido para Covid-19 com IgM negativo e IgG positivo (Tabela 2), além de radiografia de tórax, demonstrando infiltrado peri-hilar em base pulmonar direita.

 

 

Na admissão, apresentou-se em regular estado geral, corada, hidratada, afebril, taquidispneica, com frequência respiratória de 58 ipm, diminuição do murmúrio vesicular e crepitações em base de hemitórax direito à ausculta; saturando 94% em ar ambiente. Ao exame abdominal, referiu dor à palpação profunda em fossa ilíaca esquerda, sem descompressão dolorosa e visceromegalias. Mantinha edema bipalpebral, evidente também em lábio superior e membros inferiores 1+/4+. Sem demais queixas.

Correlacionando a história clínica ao exame físico e contato prévio com o vírus SARS-CoV-2, levantou-se a hipótese diagnóstica de MIS-C, sendo solicitados novos exames laboratoriais (Tabela 2) e de imagem para elucidação do caso.

Foram solicitados D-dímero, creatinina fosfoquinase (CPK) e creatina fosfoquinase fração Mb (CKMB), troponina, desidrogenase láctea (DHL) e ferritina, exceto pela CPK, todos os demais mostraram-se alterados (Tabela 2). Devido à suspeita de MIS-C, foram iniciados corticoterapia e sintomáticos no primeiro dia de internação.

Na tomografia de tórax, evidenciou-se velamento de padrão misto e espessamento dos septos interlobares, predominando nos lobos inferiores, com aspecto alveolar nos segmentos pôstero-inferiores bilateralmente, derrame pleural de médio volume de aspecto livre bilateral, acentuação da trama vascular peri-hilar e derrame pericárdico.

O eletrocardiograma evidenciou ritmo sinusal com intervalo PR prolongado, hipertrofia de ventrículo esquerdo (QRS apiculado em V5 e V6) e oscilação da linha de base em DI, DII, aVR e aVF. Frente ao derrame pericárdico e às alterações no ECG, realizou-se um ecocardiograma, que evidenciou fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 69%, sem demais alterações.

Devido à persistência de crepitações em base de hemitórax direito, foi solicitada uma nova TC de tórax, demonstrando opacidades mal definidas em bases pulmonares posteriores e opacidades em vidro fosco difusas,com persistência do derrame pleural bilateral e de área cardíaca aumentada.

O exame para Covid-19 com método de quimioluminescência, solicitado no início da internação, mostrou-se reagente para a imunoglobulina IgG e não reagente para IgM (Tabela 2). Assim, concluiu-se por evidências clínicas e por exames complementares que a paciente desenvolveu MIS-C em decorrência da infecção prévia pelo SARS-CoV-2.

Firmado o diagnóstico e instituído uso de Dexametasona, a paciente evoluiu com melhora do quadro clínico e resolução completa dos sintomas. Recebeu alta hospitalar e encaminhamento para seguimento ambulatorial.

 

DISCUSSÃO

Este artigo descreve dois casos de crianças infectadas pelo vírus SARS-CoV-2, as quais evoluíram com síndrome inflamatória multissistêmica (MIS-C), um estado hiperinflamatório severo que acomete a faixa etária cerca de 4-6 semanas após a infecção viral.

Os primeiros registros da síndrome foram em abril de 2020 na Inglaterra. Diante da pandemia do SARS-CoV-2, entre março e junho de 2020, foram identificados 783 casos no mundo. No Brasil, até setembro de 2020, houve registro de 380 casos de MIS-C temporalmente associada à Covid-19 em crianças e adolescentes de 0-19 anos, predominantemente no sexo masculino (54,3%), em crianças menores de 0-4 anos (40,1%) e de 5-9 anos (31,7%).7,16 Com relação à mortalidade, o Ministério da Saúde contabilizou um total de 46 óbitos entre 736 casos de MISC no período de 1º de abril de 2020 até 13 de fevereiro de 2021, demonstrando boa evolução da doença na maioria dos casos.7,16

Para o diagnóstico de MIS-C, o Center for Disease Control and Prevention (CDC) estabelece necessidade de confirmação da infecção pelo SARS-CoV-2 com soroconversão ou exposição prévia 4 semanas antes do início dos sintomas da Covid-19.8 O paciente deve apresentar características como febre persistente, marcadores laboratoriais de atividade inflamatória como neutrofilia, linfopenia, elevações de PCR, VHS, D-dímero, ferritina, DHL, IL-6, procalcitonina e evidência de disfunção única ou de múltiplos órgãos (choque, comprometimento cardíaco, respiratório, renal, gastrointestinal e/ou neurológico), com outras características clínicas e laboratoriais, além da exclusão de outra causa infecciosa. A detecção de SARS-CoV-2 por RT-PCR não é obrigatória, sendo mais frequente a presença de anticorpos.8

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde (MS) abrangem grande parte dos critérios sugeridos pela CDC, estabelecendo como aspectos diagnósticos em crianças e adolescentes de 0-19 anos, febre igual ou maior a três dias associada a dois dos critérios: exantema ou conjuntivite não purulenta bilateral ou sinais de inflamação mucocutânea; hipotensão ou choque; características de disfunção miocárdica, pericardite, valvulite ou anormalidades coronárias (incluindo achados do ecocardiograma ou elevações de troponina/pró-BNP); evidência de coagulopatia (TP, TTPA, D-dímero elevado) e problemas gastrointestinais agudos (diarreia, vômito ou dor abdominal).8,9 Ademais, deve haver elevação de marcadores inflamatórios como VHS, PCR ou procalcitonina, não apresentar outra causa de inflamação microbiana, além de evidência de infecção pelo Covid-19 ou contato prévio com pacientes que obtiveram confirmação diagnóstica para o Covid-19.8,9

Em relatos publicados, pode-se observar que febre persistente, sintomas gastrointestinais, comprometimento cardíaco e elevação de marcadores inflamatórios são frequentemente documentados como principais manifestações relacionadas à MIS-C.10 Em estudo publicado no Reino Unido, dos 783 casos relatados, 71% apresentaram sintomas gastrointestinais, com predomínio de dor abdominal. A febre foi presumida em todos os casos e 68% apresentaram comprometimento fisiológico grave, com maior acometimento cardiovascular. Os marcadores inflamatórios mostraram-se elevados na maioria dos casos e a evidência de infecção atual ou passada por SARS-CoV-2 esteve presente em 58% dos quadros.11 Segundo os casos relatados neste artigo, ambos os pacientes preencheram critérios que corroboram o diagnóstico de MIS-C, com manifestações clínicas e alterações laboratoriais semelhantes às frequentemente relatadas na literatura.

Quanto ao tratamento, ainda não há diretrizes bem estabelecidas; contudo, têm sido descritos tratamentos de suporte, proteção cardiovascalar, uso de antiplaquetários e anticoagulação; terapias com imunomoduladores, corticoesteroides e antivirais são consideradas em casos graves. Destaca-se que a maiora apresenta desfecho favorável.10,12,13,14

O uso de corticoesteroide é preferencialmente administrado em pacientes com comprometimento miocárdico; a dose e o tipo de corticoide variam conforme a relação de gravidade do caso. A duração da MIS-C oscila conforme o início do tratamento, mas a média de hospitalização em um serviço com capacidade para tratamento avançado é de 7 dias. A evolução clínica dos pacientes precocemente tratados é consideravelmente positiva, mas há algumas complicações como aneurismas coronarianos, miocardiopatias, pneumopatias, doença renal aguda, tromboses e neuropatias, que devem ser monitoradas em ambulatório posteriormente à internação.13,17, 18

Deve-se ressaltar que os quadros aqui relatados obtiveram boa evolução com corticoterapia, notada pela melhora clínica e redução de marcadores inflamatórios. Ambos receberam alta com seguimento ambulatorial assegurado, sendo este de grande importância num período de pelo menos um ano após diagnóstico inicial.10

Como um síndrome recém-surgida, com variação clínica, de rápida evolução e patogênese não bem elucidada, faz-se necessário que o pediatra compreenda a apresentação da MIS-C, de forma a reconhecer e realizar o manejo oportuno desta. Nesse sentido, a documentação de casos novos é de grande relevância para se traçar estratégias relacionadas à conduta terapêutica e ao estabelecimento de protocolos seguros e padronizados.15,16

 

REFERÊNCIAS

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