Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 22(1) - Março 2022

Relato de Caso

Trombocitopenia neonatal aloimune como causa de hemorragia intracraniana fetal: relato de caso

Neonatal alloimmune thrombocytopenia as a cause of fetal intracranial hemorrhage: Case report

 

Bruno Antunes Contrucci 1; Gustavo Rogério Pinato1; Bruno Barboza de-Oliveira1; Carolina Nascimbeni Rodrigues Cruz1; Nathália de Oliveira Kolln2; Marina Vanzela Lania Teles2; Gustavo Botelho Sampaio3

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v22i1p47-50

1. Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Departamento de Pediatria - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil.
2. Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Departamento de Neonatologia - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil.
3. Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Departamento de Neurocirurgia Pediátrica - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil

 

Endereço para correspondência:

bruno_acontrucci@hotmail.com

Recebido em: 02/06/2021
Aprovado em: 27/09/2021


Instituição: Hospital da Criança e Maternidade/Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Departamento de Pediatria - São José do Rio Preto - São Paulo - Brasil

 

Resumo

A produção de anticorpos maternos contra antígenos plaquetários fetais herdados do pai, e que gera destruição plaquetária significante, define a trombocitopenia neonatal aloimune. Caracteriza-se por intensa plaquetopenia, com expressivo sangramento mucocutâneo pós-natal, além de importante causa de sequelas neurológicas em recém-nascidos decorrentes da hemorragia intracraniana que ocorre tanto intraútero quanto perinatal. Pelo fato de ser subdiagnosticada na prática clínica, buscou-se relatar o caso clínico com o intuito de discutir o diagnóstico, manejo clínico e importância da trombocitopenia neonatal aloimune, que se apresentou com sangramento intracraniano fetal evidenciado durante avaliação ultrassonográfica do pré-natal.

Palavras-chave: Trombocitopenia neonatal aloimune. Trombocitopenia. Transtornos plaquetários. Hemorragias intracranianas.


Abstract

The production of maternal antibodies against fetal platelet antigens inherited from the father, which generates significant platelet destruction, defines neonatal alloimmune thrombocytopenia. It is characterized by intense thrombocytopenia, with significant postnatal mucocutaneous bleeding, in addition to being an important cause of neurological sequelae in newborns resulting from intracranial hemorrhage that occurs both intrauterine and perinatally. Because it is underdiagnosed in clinical practice, we sought to report the clinical case in order to discuss the diagnosis, clinical management and importance of neonatal alloimmune thrombocytopenia, which presented with fetal intracranial bleeding evidenced during prenatal ultrasound evaluation.

Keywords: Thrombocytopenia. Neonatal alloimmune. Thrombocytopenia. Blood platelet disorders. Intracranial hemorrhages.

 

INTRODUÇÃO

A trombocitopenia neonatal aloimune (TNA) é causa frequente de plaquetopenia grave em recém-nascidos, sendo causada por destruição plaquetária mediada por anticorpos maternos da classe imunoglobulina G (IgG) contra antígenos plaquetários (HPA) fetais, os quais são herdados do pai e que estão ausentes da mãe. Tais anticorpos atravessam a barreira placentária, causando redução importante na quantidade de plaquetas circulantes do feto e do recém-nascido.1 O antígeno HPA1 é responsável por mais de 80% dos casos. A mãe, portadora do incomum genótipo HPA-1b1b, produz anticorpos anti-HPA-1a, estimulados pela presença do alelo paterno HPA-1a no feto, ocasionando a incompatibilidade. 2

Notam-se características semelhantes à doença hemolítica por incompatibilidade Rh do recém-nascido e fetal, mas com o equivalente plaquetário. Contudo, a TNA pode afetar a primeira gestação, não sendo necessária sensibilização antigênica prévia. Possui característica de gerar repercussão importante e precoce durante o pré-natal, com tendência a maior gravidade em gestações subsequentes.2

Dentro das etiologias de hemorragia intracraniana (HIC) em recém-nascidos, a TNA representa importante causa, incidindo em 20% de todos os casos, em que cerca de dois terços ocorrem intraútero, principalmente durante o terceiro trimestre de gestação. No pós-natal, quando excluídas infecções congênitas, apresenta-se como causa de um quarto das trombocitopenias graves com ou sem discrasia hemorrágica, evidenciadas por hemorragias mucocutâneas.3,4,5

O diagnóstico é realizado pela pesquisa de anticorpos anti-HPA (MAIPA, monoclonal immobilization of platelet antigens) no soro materno associado à genotipagem plaquetária, que demonstra a existência da incompatibilidade de antígenos plaquetários entre a mãe e o feto. A elucidação diagnóstica se faz necessária devido ao elevado risco de recorrência em gestações futuras.6

O manejo da TNA pode ser dividido em antenatal e pós-natal. Ambos se relacionam para evitar que haja queda acentuada de plaquetas, tanto do feto quanto do recém-nascido, já que tal fato predispõe ao maior risco de sangramentos espontâneos.7 No recém-nascido, a transfusão de plaquetas compatíveis ou não apresenta-se como pedra angular na terapêutica, já que restaura níveis plasmáticos de forma rápida e evita futuros sangramentos. Pode-se utilizar a imunoglobulina humana endovenosa (IgIV), a fim de diminuir a quantidade de anticorpos circulantes, mas ela deve ser associada à transfusão plaquetária, já que sua ação efetiva ocorre apenas em 24-48 horas. 7,8

Já o tratamento materno da TNA é dependente do diagnóstico prévio da suscetibilidade a gerar uma criança incompatível, ou seja, dependente de criança afetada previamente, a fim de gerar suspeita. O uso de imunoglobulina e corticoides associados à ultrassonografia seriada durante o pré-natal consiste no manejo terapêutico mais adequado.9,10

Diante disso, nota-se que pelo fato de não ser realizada a genotipagem plaquetária, a TNA apresenta-se como patologia subdiagnosticada e grave, associada a morbimortalidade significativa. A principal forma de prevenir e reduzir a incidência de acometimento neurológico é através do monitoramento durante o pré-natal com ultrassonografia seriada, tratamento materno com corticosteroides e/ou IgIV e transfusão plaquetária ao recém-nascido acometido.

 

RELATO DE CASO

Durante pré-natal de baixo risco, secundigesta de 33 anos apresentou alteração em polo cefálico fetal em ultrassonografia obstétrica de rotina durante o 3° trimestre de gestação. Foi feita ressonância nuclear magnética fetal com 32 semanas de idade gestacional, sendo observadas múltiplas coleções em parênquima cerebral com aspecto hemorrágico, além de sinais sugestivos de sangramento peri e intraventriculares associados a dilatações compensatórias dos mesmos, e áreas difusas de leucomalácia cística em encéfalo e hemisférios cerebelares (Figura 1).

 


Figura 1. Ressonância Magnética Fetal. Coleções em parênquima cerebral, com distribuição bilateral e assimétrica, caracterizadas por lesões hiperintensas em T1 (Imagem A) e hipointensas em T2 (Imagens B e C), com aspecto de hemorragias. Em hemisfério direito, existe inundação do ventrículo ipsilateral (Imagem B). Coleções são circundadas por extensas áreas de hiperssinal em T2, inferindo edema.

 

Genitora negou tabagismo, etilismo ou uso de qualquer substância teratogênica ou disruptiva durante a gestação. Referiu não apresentar consanguinidade com genitor, e que em gestação prévia não apresentou intercorrências pré-natais e pós-natais.

Tipagem sanguínea O positivo, hemograma e glicemias sem alterações, sorologias para as doenças infecciosas congênitas do grupo TORCHS (toxoplasmose, herpes vírus simples I e II, rubéola, citomegalovírus, hepatite vírus B, HIV e sífilis) e parvovírus B19 negativas. Não apresentou alteração de doppler-velocimetria de artéria cerebral média em ultrassonografia fetal durante a gestação.

Optando-se por parto cesárea, nasce uma criança do sexo feminino, a termo, adequado para idade gestacional, com perímetro cefálico entre percentil 50 e 90 do INTERGROWTH-21ST.11 Não apresentou necessidade de reanimação neonatal, sendo encaminhada ao alojamento conjunto, sem alteração no exame físico e neurológico inicial.

Apresentou hematomas e petéquias difusas pelo corpo associadas a trombocitopenia grave (6.000/mm3) com menos de 24 horas de vida, sendo transferida à Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTI Neonatal) para investigação. Realizou-se transfusão de plaquetas inicialmente, com incremento importante dos valores (58.000/mm3).

Durante evolução, coagulograma inicial apresentava alteração compatível com redução quantitativa de plaquetas. Não apresentava qualquer outra anormalidade em eritrograma, função hepática ou renal, sendo descartadas infecções ou alterações metabólicas como causa da trombocitopenia. Realizou-se ultrassom craniano transfontanela (USTF) no 1° dia de vida, sendo evidenciados sinais sugestivos de hemorragia intracraniana importante difusamente, de caráter agudo, subagudo e crônico, acometendo tanto parênquima e ventrículos quanto cerebelo. No 3° dia de vida, tais achados foram confirmados por angiorresonância de crânio (Figura 2).

 


Figura 2. Ressonância Magnética de Crânio. Múltiplos hematomas hemorrágicos de aspecto subagudo, com predominância em lobo temporal direito demonstrados por hiperssinal em T1 (Imagem B) e hipossinal em T2 (Imagem C), associados hemorragia intraventricular (Imagem B) e edema importante. Hematomas em transição occipitoparietal, bilateralmente (Imagem A), também estão presentes, apresentando aspecto mais agudo (hiperintensidade) quando comparados à lesão temporal (Imagem B).

 

Coletou-se genotipagem de antígenos plaquetários humanos (HPA) dos genitores e do neonato, sendo evidenciado que a criança é HPA-1a1b, mãe HPA-1b1b e pai HPA-1a1a. Realizada a pesquisa de anticorpos antiplaquetários (MAIPA, monoclonal immobilization of platelet antigens) presentes em soro materno, foram detectados anti-HPA-1a, sendo confirmado o diagnóstico de TNA.

Sem necessidade de utilização de imunoglobulina ou novas transfusões, havendo aumento progressivo dos níveis plaquetários até o valor de 221.000/mm3 no 7° dia de vida, recebeu alta hospitalar no 8° dia de vida. Não apresentava qualquer alteração em exame físico neurológico.

Foram realizadas as orientações sobre a condição clínica apresentada aos genitores e a importância de procura imediata do serviço caso haja futura gravidez. A criança apresenta-se em acompanhamento com Neurologia, Neurocirurgia e Hematologia Pediátrica para monitoramento de lesões intracranianas.

 

DISCUSSÃO

A TNA é claramente uma condição clínica subdiagnosticada na prática clínica. De acordo com a literatura atual, a TNA apresenta incidência de 1:1000 nascidos vivos, com cerca de 25% dos casos apresentando sangramento intracraniano importante, em sua maior parte intraútero.

Apresenta-se como causa mais frequente de trombocitopenia grave em neonatos não acometidos por infecções congênitas, e que muitas vezes evoluem com discrasias sanguíneas e sangramentos espontâneos. Tais fatos geram impactos diretos no neurodesenvolvimento fetal e neonatal. 12

Frente ao feto com sangramento intracraniano evidenciado ao acaso durante pré-natal, neonatos com trombocitopenia importante, associados ou não a hemorragias, não sendo justificáveis por outras causas, deve-se suspeitar da TNA. A trombocitopenia <50.000/mm3, não justificada e independente da causa, justifica o rastreio da incompatibilidade plaquetária.12

A terapêutica inicial se baseia no fato de impedir novos sangramentos. Utiliza-se, no neonato plaquetopênico, a transfusão de plaquetas associada ou não à infusão de IgIV. Esta última não deve ser utilizada isoladamente, já que apresenta ação demorada, gerando risco de novos sangramentos, sendo reservada apenas para casos refratários.

A elucidação diagnóstica se faz necessária, sobretudo devido ao elevado risco de recorrência em gestações futuras. Tal rastreio muda prognóstico, já que abordagem pré-natal com ultrassonografia seriada associada ao uso de imunoglobulina humana endovenosa (IgIV) e corticoides impede que haja plaquetopenia intraútero, reduzindo o risco de sequelas neurológicas.

 

REFERÊNCIAS

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5. Brojer E, Husebekk A, Debska M, Uhrynowska M, Guz K, Orzinska A, et al. Fetal / neonatal alloimmune thrombocytopenia: Pathogenesis, diagnosis and prevention. Arch Immunol Ther Exp 2016;64:279-90.

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8. Lieberman L, Greinacher A, Murphy MF, Bussel J, et al. International Collaboration for Transfusion Medicine Guidelines (ICTMG). Fetal and neonatal alloimmune thrombocytopenia: recommendations for evidence-based practice, na international approach. Br J Haematol. 2019 May;1853):549-562.

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11. Villar J, Cheikh I, Victora C, Ohuma E, Bertino E, Altman DG, et al. International Fetal and Newborn Growth Consortium for the 21st Century (INTERGROWTH-21st) International standards for newborn weight, length, and head circumference by gestational age and sex: the Newborn Cross-Sectional Study of the INTERGROWTH-21st Project. Lancet. 2014;384:857-68.

12. Winkelhorst D, Oepkes D, Lopriore E. Fetal and neonatal alloimmune thrombocytopenia: evidence based antenatal and postnatal management strategies. Expert Ver Hematol 2017; 10:729.