Relato de Caso
Transposição dos grandes vasos: relato e prognóstico de paciente operado há 21 anos
Transposition of great vessels: report and prognosis of a patient operated 21 years ago
Caio Bruno Andrade Nascimento; Rafael Chagas Silva1, Gustavo Fernandes da-Silva
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v20i4p151-154
Universidade do Estado de Minas Gerais, Faculdade de Medicina - Passos - Minas Gerais - Brasil
Endereço para correspondência:
Caio Bruno Andrade Nascimento
Recebido em: 24/04/2020
Aprovado em: 2706/2020
Instituição: Universidade do Estado de Minas Gerais, Faculdade de Medicina - Passos - Minas Gerais - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: A transposição dos grandes vasos é uma anormalidade estrutural do coração descrita como uma concordância atrioventricular e uma discordância ventriculoatrial, presente em um a cada 3.000 nascidos vivos, sendo necessária a realização de cirurgia de correção ainda na infância.
OBJETIVO: Relatar o caso de um paciente de 21 anos que havia sido operado para corrigir a doença em 1999, obtendo um bom prognóstico, relacionar com o quadro de hipercolesterolemia familiar e os hábitos de vida do paciente e observar fatores e condutas que contribuíram para um bom desfecho clínico.
DESCRIÇÃO DO CASO: Relatou-se o caso de um paciente que, nascido a termo e cianótico, foi diagnosticado precocemente com transposição dos grandes vasos com comunicação interatrial, descompensou o quadro cianótico no pré-operatório de maneira a ser encaminhado para o centro de terapia intensiva, onde, evoluindo com suspeita de sepse, fora submetido a antibioticoterapia. Foi operado aos sete dias e apresentou insuficiência ventricular esquerda ao sair da circulação extracorpórea, a qual posteriormente teve melhora com êxito. Na adolescência, foi diagnosticado com hipercolesterolemia familiar, dando início a tratamento com estatinas. Atualmente (2020), apresenta-se em classe funcional I e realiza atividades físicas regulares sem queixas.
DISCUSSÃO: A pré-existência da comunicação interatrial foi fundamental para evitar o óbito no momento da descompensação cianótica no período pré-operatório, pois permitiu mistura dos sangues oxigenado e não oxigenado. Paciente apresenta bloqueio de ramo direito como sequela assintomática, ocorrência comum em cirurgias cardíacas.
Palavras-chave: Cardiopatias. Transposição dos grandes vasos. Procedimentos cirúrgicos cardíacos. Pediatria.
Abstract
INTRODUCTION: Transposition of great vessels is a structural abnormality of the heart, described as an atrioventricular concordance and a ventriculoatrial discordance, present in one every 3,000 live births, requiring the execution of surgery in childhood.
OBJECTIVE: To report the case of a 21-year-old patient who was operated on to correct the disease in 1999 and obtained a good prognosis, to relate the disease with familial hypercholesterolemia condition and to observe factors that led to a good clinical outcome.
CASE DESCRIPTION: We reported a case of a full term, cyanotic newborn, who had an early diagnosis of transposition of great vessels associated with atrial septal defect, had a decompensation of the cyanosis in the preoperative period and was referred to the intensive care unit, where, evolving with suspicion of sepsis, was submitted to antibiotic therapy. He was operated on at seven days old and presented left ventricular failure when he left extracorporeal circulation, which was then successfully corrected. In adolescence, he was diagnosed with familial hypercholesterolemia, and started treatment with statins. Currently (2020), The patient is in functional class I and performs regular physical activities without complaints.
DISCUSSION: The pre-existence of an atrial septal defect was fundamental to avoid death from cyanotic decompensation in the preoperative period, since it allowed the mixture of oxygenated and non-oxygenated blood. Patient presents right bundle branch block as an asymptomatic sequel, a common occurrence in cardiac surgeries.
Keywords: Heart diseases. Transposition of great vessels. Cardiac surgical procedures. Pediatrics.
INTRODUÇÃO
A transposição dos grandes vasos (TGV) é uma cardiopatia congênita cianótica decorrente de anormalidade estrutural do coração, sendo representada por uma concordância atrioventricular e uma discordância ventriculoarterial, classicamente caracterizadas por uma aorta anterior e à direita da artéria pulmonar. Devido a isso, o sangue venoso que adentra o ventrículo direito é bombeado para a aorta, retornando posteriormente para o corpo sem passar pela circulação pulmonar, uma vez que as circulações sistêmica e pulmonar são separadas e ocorrem em paralelo.¹ Acomete principalmente o sexo masculino e representa 8% dos casos de cardiopatias congênitas, apresentando incidência de um a cada 3.000 nascimentos, necessitando, por sua vez, de correção cirúrgica ainda na infância.² A correção proposta pelo médico brasileiro Adib Domingos Jatene (1929-2014) consiste em redirecionar a aorta para o ventrículo esquerdo, transferir os óstios coronários para a neoaorta e, por fim, redirecionar a artéria pulmonar para o ventrículo direito.3,4
Ainda no ano de 1950, Blalock e Hanlon se empenharam no desenvolvimento de uma técnica cirúrgica que visava à criação de uma comunicação interatrial (CIA) por meio de uma atriosseptostomia, de maneira que houvesse mistura entre os sangues oxigenado e não oxigenado.5 Posteriormente, Rashkind e Miller propuseram, em 1966, que essa atriosseptostomia fosse realizada via cateter, de maneira a ampliar ou criar uma nova CIA. 6 Todavia, foi somente em 1975 que Jatene desenvolveu sua técnica, por meio da realização da inversão cirúrgica das origens anômalas dos grandes vasos, a qual tem sido amplamente utilizada ainda hoje.4 Ademais, em 1981, Lecompte desenvolveu uma manobra que propunha tornar a artéria pulmonar anterior em relação à artéria aorta,7 manobra esta que, juntamente com a técnica de Jatene, foi efetuada no paciente descrito neste relato.
RELATO DO CASO
C.B.A.N., masculino, nascido a termo a 29 de março de 1999 em um hospital de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, cianótico, 4kg, 52cm, foi encaminhado para uma instituição hospitalar de referência em cardiologia pediátrica no município de Nova Lima, Minas Gerais, poucas horas após o nascimento, com suspeita de cardiopatia congênita grave. Acerca da investigação do histórico familiar do paciente, sua mãe, Gesta 3 Para 2, referiu histórico de uma primeira gestação anembrionada e uma segunda gestação na qual o filho nascera com grave má-formação cardíaca, indo a óbito no quinto dia de vida. Ademais, a mãe não apresentou diabetes pré-gestacional ou gestacional em nenhum momento.
Admitido no hospital de Nova Lima, realizou-se uma radiografia de tórax em incidência ântero-posterior no paciente ao segundo dia de vida, a qual evidenciou uma área cardíaca discretamente aumentada e hiperfluxo pulmonar. Posteriormente, foi solicitada a realização de um ecocardiograma, pelo qual se constatou a existência de uma transposição dos grandes vasos simples associada a comunicação interatrial do tipo ostium secundum.
Inicialmente, o paciente foi tratado na enfermaria, mas apresentou descompensação do quadro cianótico, tendo sido encaminhado para a Unidade de Terapia Intensiva, onde se iniciou terapia de infusão de prostaglandina endovenosa, com o intuito de manter preservado o canal arterial. Dias depois, evoluiu com picos febris e leucocitose, de forma que se julgou conveniente iniciar o protocolo institucional de sepse, sendo prescritos ao paciente cefotaxima e oxacilina endovenosas, evoluindo com melhora do quadro clínico.
No dia 5 de abril de 1999, foi submetido à cirurgia de Jatene ainda em uso de prostaglandina endovenosa. Terminado o procedimento, o retorno ao ritmo sinusal foi espontâneo, apresentando, todavia, disfunção ventricular esquerda na saída da circulação extracorpórea, necessitando de drogas vasopressoras. Após a cirurgia, paciente evoluiu com estabilidade hemodinâmica e precisou de suporte de adrenalina e dobutamina. A extubação foi realizada dois dias após a cirurgia, com boa tolerância e sem apresentação de outras complicações nesse período. Paciente recebeu alta no dia 17 de abril de 1999, tendo sido prescritos no sumário de alta furosemida 0,2 mL, digoxina 0,2 mL e captopril 0,4 mL.
Prosseguidos três anos após a cirurgia, percebeu-se que o paciente obteve bom prognóstico, de forma que apresentou curvas de crescimento pôndero-estatural muito satisfatórias e, em 2002, a família procurou aconselhamento genético de forma que foi constatado que o paciente herdara a condição por meio de um cromossomo X recessivo adquirido pelo material genético materno, tratando-se, portanto, de uma má-formação alossômica recessiva.
Em 2015, aos 16 anos, o paciente foi diagnosticado com hipercolesterolemia familiar, uma condição autossômica codominante que provavelmente fora herdada do pai, apresentando à época valores de colesterol total 238 mg/dL, LDL 167 mg/dL, HDL 43 mg/dL e triglicérides 80 mg/dL. Destarte, iniciou terapia medicamentosa com rosuvastatina cálcica 10 mg ao dia, a qual tem sido realizada até a atualidade (2020). Exame de colesterol total e frações realizado em outubro de 2019 apresentou valores de colesterol total 180 mg/dL, LDL 123 mg/dL, HDL 43 mg/dL e triglicérides 70 mg/dL.
Atualmente (2020), o paciente tem 21 anos e encontra-se em classe funcional I, com exame físico do aparelho cardiovascular sem alterações importantes, pulsos preservados e bulhas normofonéticas com discreto sopro fisiológico na ausculta do foco mitral. Os exames eletrocardiográficos realizados no decorrer dos anos demonstram, como sequela assintomática do ato cirúrgico, um bloqueio de ramo direito constatado pela presença de padrão rSR' na derivação V1, embora não haja alargamento proeminente do complexo QRS. Ademais, paciente realiza atividades físicas regularmente e não refere queixas de cansaço ao esforço, palpitações, angina ou desconforto.
DISCUSSÃO
A TGV apresenta elevada gravidade, sendo necessária a realização de procedimento cirúrgico ainda na infância, que possibilita ao enfermo maior sobrevida, como no paciente deste relato. Em alguns casos, que podem permanecer assintomáticos e o diagnóstico pode ser realizado mais tardiamente, a compatibilidade com a vida geralmente é devida à presença de comunicações que possibilitam a passagem de sangue, sejam elas interventriculares, interatriais ou a persistência do canal arterial. Dessa forma, a gravidade do caso é decorrente da relação do fluxo sanguíneo estabelecida por meio das comunicações.4 Nesse sentido, a preexistência de uma comunicação interatrial e a persistência do canal arterial no paciente descrito foram de fundamental importância nos dias que precederam a cirurgia, uma vez que, se o paciente tivesse nascido com o septo interatrial totalmente intacto, poderia ter vindo a óbito no momento da descompensação do quadro cianótico na enfermaria do hospital de Nova Lima.
A partir das inovações cirúrgicas para correção da TGV, o tratamento definitivo passou a representar uma correção completa. Entretanto, lesões residuais podem ocorrer nesses pacientes, relacionadas com a técnica cirúrgica escolhida ou mesmo com a condição patológica do paciente, como por exemplo, disfunções ventriculares, arritmias, insuficiência valvar e estenoses. Por essa razão, alguns pacientes precisam de cirurgias subsequentes para correção dessas lesões.8 O paciente abordado não apresentou intercorrências e sequelas importantes na realização do procedimento, embora tenha apresentado bloqueio de ramo direito, o qual normalmente se apresenta de modo assintomático, como no caso estudado. Recorda-se, ademais, que arritmias cardíacas e bloqueios de condução têm sido apresentadas como umas das complicações mais frequentes no pós-operatório de cirurgias cardíacas.9
Outro aspecto relevante a respeito da TGV é a ocorrência de hipertensão pulmonar, o que reforça a importância do diagnóstico precoce. Além disso, demais complicações são passíveis de ocorrência e podem afetar o bom prognóstico do paciente submetido a correção da transposição, influenciando na capacidade funcional do indivíduo, tanto em relação ao desenvolvimento neurológico como na capacidade física.8 Dessa forma, um dos fatores que contribuíram para o prognóstico favorável do paciente foi o fato de este não ter apresentado hipertensão arterial ou pulmonar em período posterior, uma vez foi realizada a intervenção cirúrgica precoce.
Devido à disfunção ventricular esquerda constatada no período pós-operatório, fez-se a prescrição de um diurético de alça (furosemida) associado a um IECA (captopril) no momento da alta hospitalar, de maneira que contribuíram para redução da pré-carga e da resistência vascular periférica. Nesse quesito, recorda-se que a prescrição de diuréticos, digitálicos e IECA são comumente utilizados no tratamento farmacológico da TGV,10 sendo que, no caso em questão, a escolha da associação da furosemida com o captopril foi fundamental para que se mantivessem favoráveis os níveis de K+ do recém-nascido.
No que se refere ao período anterior à cirurgia, pacientes cujo diagnóstico não é realizado no período neonatal evoluem com maiores chances de complicações, especialmente com hipoxemia grave e consequente acidose metabólica. Ademais, devido a esses pacientes possuírem frequentemente baixas saturações de oxigênio, há maior incidência de falência múltipla dos órgãos e elevação do índice de mortalidade. Os pacientes cujo tratamento ainda não foi realizado e convivem com a TGV representam um grupo de enfermos que possuem ampla comunicação entre as câmaras direita e esquerda do coração, o que permite o fluxo e a mistura dos sangues oxigenado e não oxigenado entre elas. Nesses indivíduos, no entanto, há maiores incidências de insuficiência cardíaca com hepatomegalia e congestão pulmonar. Corrobora-se, dessa maneira, que a intervenção cirúrgica precoce nos pacientes com TGV permite com que essas taxas de complicações sejam menores, reduzindo os casos de eventos mórbidos.11,12
A hipercolesterolemia familiar, presente no paciente do atual relato, é uma doença genética relacionada ao metabolismo de lipoproteínas, caracterizada por aumento excessivo nos níveis de colesterol da lipoproteína de baixa densidade. A doença torna-se preocupante devido à estreita relação com o aumento das taxas de incidência de doença aterosclerótica prematura, sobretudo em homens abaixo de 55 anos e mulheres abaixo de 65 anos, reduzindo drasticamente a expectativa de vida de muitos indivíduos portadores da enfermidade. Dessa forma, a hipercolesterolemia familiar é um problema de grande impacto na saúde mundial, a qual vem sendo tratada por meio de medidas nutricionais associadas à terapia hipolipemiante precoce com manutenção no decorrer da vida, reduzindo assim, o risco de morte prematura.13 Por esse motivo, foram utilizadas estatinas no paciente abordado ainda à época da adolescência, uma vez que, sendo agora um adulto jovem, este apresenta risco considerável de incidência de morbidades ateroscleróticas, o que poderia resultar em posteriores agravos isquêmicos que o tornariam inapto não somente à prática de exercícios físicos, mas também a quaisquer outros esforços físicos. Uma questão levantada é se o fato de a cirurgia ter envolvido a mudança do sítio das coronárias associado à presente dislipidemia poderia gerar risco maior de desenvolvimento de doença coronariana.
A mortalidade e as consequentes morbidades da doença nos portadores de TGV são expressamente reduzidas mediante o diagnóstico e o tratamento definitivo efetuados de forma precoce. Logo, o conhecimento acerca da prevalência e dos principais sinais e sintomas relacionados é de suma importância para a realização de uma correta prevenção de comorbidades, tratamento oportuno e melhora no prognóstico, aspectos estes que, estando mutuamente interligados, foram imprescindíveis para a obtenção de um prognóstico altamente favorável pelo paciente apresentado.
REFERÊNCIAS
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