RELATOS DE CASO
Sífilis congênita: evidência de oportunidades perdidas durante o prénatal
Congenital syphilis: evidency of missed opportunities during prenatal care
Danielle Kwamme Latgé1; Danyelle Machado Hott2; Gustavo Potratz Gonçalves2; Jéssica Fracalossi Feijó2; Layni Storch2; Stefani Ribeiro de Almeida3; Thaís Dias Vieira Paradelas2; Ivete Martins Gomes4; Arnaldo Costa Bueno5; Claudete Aparecida Araújo Cardoso6
1. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal Fluminense - Médica Pediatra Neonatologista
2. Acadêmicos de Medicina pela Universidade Federal Fluminense Estudante de Medicina
3. Médica pela Universidade Federal Fluminense Médica
4. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal Fluminense Médica Infectologista Pediátrica
5. Doutorado em Ciências Médicas pela Fundaçao Oswaldo Cruz/IFF Médico Pediatra Neonatologista e Professor Adjunto de Pediatria do Departamento Materno Infantil da Universidade Federal Fluminense
6. Pósdoutorado em Doenças Infecciosas pela Universidade da Califórnia em Berkeley Médica Infectologista Pediátrica e Professora Adjunta de Pediatria do Departamento Materno Infantil da Universidade Federal Fluminense
Endereço para correspondência:
Danielle Kwamme Latgé
Rua Dr. Mário Viana 438, bloco 1, apto. 1.203 Santa Rosa
24241002 - Niterói - RJ
Email: dklatge@gmail.com
Resumo
OBJETIVO: Documentar as oportunidades perdidas durante o prénatal, enfatizando sua importância no contexto da sífilis congênita (SC), por meio do relato de três casos de SC atendidos no Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense (HUAPUFF), com desfecho desfavorável.
DESCRIÇÃO DO CASO: A despeito da existência de métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento eficazes, a SC no Brasil ainda se constitui em um grave problema de saúde pública. Foram selecionados três casos com evolução clínica desfavorável, capazes de refletir a importância de uma assistência integral à gestante e ao recém-nascido para a erradicação da SC. Caso 1: Lactente, masculino, com diagnóstico de SC aos 3 meses, internado na enfermaria de Pediatria para tratamento da doença. Segue em acompanhamento ambulatorial. Caso 2: Recém-nascido, masculino, pré-termo, com quadro clínico de SC grave, evoluiu com óbito. Caso 3: Recém-nascido, feminino, prétermo, necessitou de reanimação na sala de parto. Com quadro clínico de SC grave, segue em acompanhamento ambulatorial.
DISCUSSÃO: A qualidade da assistência pré-natal possui grande relevância para a redução da morbimortalidade materna e neonatal, sendo determinante na redução das taxas de transmissão vertical da sífilis. O controle da doença fundamenta-se na triagem sorológica e no tratamento adequado das gestantes e de seus parceiros. De fácil diagnóstico com os testes disponíveis e de tratamento eficaz com a penicilina, a sífilis é caracterizada como evento sentinela que indica baixa qualidade na assistência prénatal e reforça a necessidade de intensificação das ações preventivas e de controle de cura, visando interromper a cadeia de transmissão da doença.
Palavras-chave: Diagnóstico, sífilis, sífilis congênita, prénatal.
Abstract
OBJECTIVE: We aim to document missed opportunities during prenatal care, emphasizing its importance in the context of congenital syphilis (CS), reporting three cases of CS treated at Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense (HUAPUFF) with unfavorable outcome.
CASE DESCRIPTION: Despite the existence of methods of effective prevention, diagnosis and treatment, CS in Brazil still constitutes a serious problem of public health. Three cases were selected with an unfavorable evolution, in order to reflect the importance of comprehensive care to the mother and to the newborn for eradicating SC. Case 1: Infant, male, diagnosed with SC at 3 months old, admitted into pediatric ward for treatment of the disease. He follows in attendance. Case 2: Newborn, male, preterm, SC with severe clinical background. He died. Case 3: Newborn, female, preterm, SC with severe clinical background. It was required resuscitation in the delivery room, and she follows in attendance.
DISCUSSION: The quality of prenatal care has great significance for the reduction of maternal and neonatal morbidity and mortality, being decisive in reducing vertical transmission rates of syphilis. Disease control is based on serological screening and appropriate treatment of pregnant women and their partners. Easily diagnosed with the available tests and effective treatment with penicillin, syphilis is characterized as a sentinel event which indicates low quality of prenatal care and reinforces the need for strengthening preventive and therapeutic control, aiming to break the chain transmission of the disease.
Keywords: Diagnostics, syphilis, congenital syphilis, prenatal.
INTRODUÇÃO
A sífilis congênita (SC) constitui um evento sentinela, cuja ocorrência sugere falhas no funcionamento da rede de atenção básica ou da integração com o sistema de saúde. A doença é decorrente da disseminação hematogênica do Treponema pallidum da gestante não tratada ou inadequadamente tratada para o concepto. Um terço das gestações de mulheres infectadas pelo T. pallidum não tratadas ou inadequadamente tratadas pode resultar em perda fetal; e outro terço, em casos de SC.1
Embora o agente etiológico seja conhecido, o modo de transmissão estabelecido, o tratamento eficaz e de baixo custo, com excelentes possibilidades de cura, a SC ainda persiste como um grave problema de saúde pública. Esse agravo é responsável por deformidades ósseas, lesões neurológicas e outras sequelas, além dos efeitos em termos de mortalidade, prematuridade, baixo peso ao nascer e complicações agudas.2 A abordagem correta da SC durante o prénatal tem o potencial de reduzir a incidência da doença para menos de 0,5/1.000 nascidos vivos.1
Entre janeiro de 1998 e junho de 2012, foram notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) 80.041 casos de SC em menores de 1 ano de idade. A região Sudeste registrou 36.770 (45,9%) desses casos; a Nordeste, 25.133 (31,4%); a Norte, 6.971 (8,7%); a Sul, 6.143 (7,7%); e a Centro-oeste, 5.024 (6,3%). Em 2011, foram notificados, no Brasil, 9.374 novos casos de SC em menores de 1 ano de idade, dos quais 4.083 (43,6%) na região Sudeste, a qual continua a ser a região com maior notificação. Com relação à taxa de incidência de SC no Brasil, em 2011 observou-se uma taxa de 3,3 casos por 1.000 nascidos vivos; porém, as regiões Nordeste e Sudeste apresentaram as maiores taxas nesse ano, 3,8 e 3,6, respectivamente. Das unidades federativas, o Rio de Janeiro foi a que apresentou a maior taxa de incidência em 2011 (9,8 por 1.000 nascidos vivos).3
Em geral, no país, as maiores proporções de casos de SC ocorrem em crianças cujas mães têm entre 20 e 29 anos de idade (52,7%), possuem escolaridade entre a 5ª e a 8ª série incompleta (25,8%) e realizaram prénatal (74,5%). De acordo com o Ministério da Saúde, das mulheres que foram identificadas com sífilis no Brasil em 2011, durante o prénatal, apenas 11,5% tiveram seus parceiros tratados. No período de 1998 a 2011, o número de óbitos por SC, declarados no Serviço de Informação de Mortalidade, foi de 1.780, sendo 925 óbitos (52%) no Sudeste (758 no Estado do Rio de Janeiro, o que corresponde a 42,6% do Brasil); 505 (28,4%) no Nordeste; 159 (8,9%) no Sul; 135 (7,6%) no Norte; e 56 (3,1%) no Centro-oeste3,4.
O objetivo do presente trabalho é demonstrar as consequências das oportunidades perdidas de tratamento da SC no prénatal, por meio do relato de 3 casos, entre os vários casos de SC tratados no HUAP-UFF, que apresentaram evolução grave ou fatal, cujas mães não foram adequadamente diagnosticadas ou tratadas para sífilis durante a gestação ou o parto.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFF (CAAE: 0147.0.258.00011).
DESCRIÇÃO DO CASO
Caso 1
CSC, 23 anos. G3 P2 A1. Realizou 6 consultas de prénatal em unidade básica de saúde. Apresentou resultado de VDRL reagente (1:2) durante o prénatal, sem tratamento durante a gestação. Parceiro não foi tratado na época. Teve ainda VRDL reagente (1:32) no periparto, sem orientação para tratamento do recém-nascido (RN).
DSA., masculino, nasceu de parto cesáreo em outra unidade de saúde do Estado do Rio de Janeiro, a termo, com peso ao nascer de 3.290g, sem intercorrências. O recém-nascido era assintomático e teve alta no 3º dia de vida. Aos 3 meses de idade, foi internado com quadro de hepatoesplenomegalia e anemia grave, necessitando de hemotransfusão.
Nessa internação, foi realizado VDRL da mãe e do lactente, com os seguintes resultados: 1:24 e 1:16, respectivamente. O VDRL do líquor do lactente foi não reagente, e a proteinorraquia de 109 mg/dL. Foi realizada radiografia de ossos longos, evidenciando discreta reação periosteal na diáfise femoral bilateralmente. A tomografia computadorizada de crânio foi normal. Emissão otoacústica evidenciou alteração à direita. Foi realizado tratamento com penicilina cristalina por 10 dias, recebendo alta para seguimento ambulatorial.
À admissão no ambulatório, apresentava-se com hepatoesplenomegalia e com VDRL reagente (1:16) após 1 mês do tratamento. Após 3 dias, o VDRL foi repetido, com resultado reagente (1:64), e pesquisa positiva de anticorpo antiTreponema pallidum (TPHA). Na ocasião, o lactente foi reinternado para novo tratamento da SC com 10 dias de penicilina cristalina. O exame do líquor à admissão na enfermaria foi normal.
Após a alta hospitalar, a criança seguiu para acompanhamento ambulatorial no HUAPUFF, sem intercorrências.
Caso 2
AAPA, 24 anos, G1 P0 A0, 5 consultas de prénatal em unidade no Estado do Rio de Janeiro, com diagnóstico de sífilis na 29ª semana de gestação, com VDRL de 1:16, sendo tratada com 2 doses de penicilina benzatina. Parceiro tratado, porém sem comprovação do tratamento.
DEPR, masculino, idade gestacional pelo método Ballard de 34 semanas, nasceu de parto normal, no HUAP, Apgar 3/6/9, pequeno para a idade gestacional (PIG), com peso ao nascer de 2.000g. Apresentou desconforto respiratório precoce, necessitando de ventilação com pressão positiva e intubação orotraqueal na sala de parto. Foi encaminhado, em seguida, para a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN), ictérico (3+/4+), abdome distendido, peristalse reduzida, hepatoesplenomegalia, importante com circulação colateral em abdome, equimoses em face e edema palpebral.
Exames laboratoriais evidenciavam VDRL reagente (1:16), anemia, leucocitose e plaquetopenia importante com sangramento pelo tubo orotraqueal e coto umbilical. Recebeu transfusões de concentrados de hemácias e plaquetas. Foi iniciado esquema antimicrobiano com penicilina cristalina e gentamicina para SC e sepse neonatal precoce provável. Fundoscopia normal, ultrassonografia transfontanela com hemorragia intracraniana grau I à esquerda. Não foram realizados punção liquórica e radiografia de ossos longos devido à gravidade do quadro clínico.
Evoluiu com estabilidade clínica, melhora do leucograma e hemoculturas negativas apesar de apresentar-se febril. Necessitou de nutrição parenteral, terapia ventilatória invasiva e apresentou discrasia sanguínea. No 19º dia de vida, apresentou hipoxemia e bradicardia evoluindo para parada cardiorrespiratória. A reanimação foi realizada sem sucesso, e o paciente foi a óbito.
Caso 3
GGCR, 17 anos, G1 P0 A0, 4 consultas de prénatal, com diagnóstico de sífilis na 24ª semana de gestação, com VDRL 1:4. Realizou tratamento inadequado, com 1 dose de penicilina benzatina, sem relato de tratamento de parceiro. Ao final da 30ª semana de gestação, apresentou quadro de infecção do trato urinário (ITU) e perda líquida, sendo submetida à internação hospitalar durante 3 dias para tratamento. Após 24h da alta, apresentou dor no baixo ventre, sendo novamente internada, quando foi realizado o parto cesáreo. No dia do parto, VDRL materno foi reagente (1:32).
MEGN, feminino, idade gestacional pelo método DUM de 31 semanas, parto cesáreo devido a sofrimento fetal agudo. Nasceu no HUAPUFF, com Apgar 1/1/6, AIG, com peso ao nascer de 1.570g. Foi reanimada na sala de parto com intubação orotraqueal, ventilação com pressão positiva, massagem cardíaca externa, sendo transferida, em seguida, para a UTI neonatal.
Durante internação na UTI, RN apresentou primeiro VDRL 1:1024, hemograma evidenciou anemia, plaquetopenia e leucocitose. Fundoscopia mostrou-se alterada, com opacidade em cristalino. Não foi coletado líquor devido ao grave estado da paciente. Radiografia de ossos longos foi normal. TC de crânio evidenciou hemorragia intracraniana grau III, ventriculomalácia moderada supratentorial e focos hemorrágicos em absorção no cerebelo. Ao exame neurológico, paciente apresentava síndrome motora (hipotonia global e redução da mobilidade espontânea) e síndrome mental (hipoatividade), sendo a hipótese diagnóstica encefalopatia crônica não progressiva em evolução, secundária ao insulto hipóxicoisquêmico ou à SC. Foi instituído tratamento para SC com penicilina cristalina por 10 dias além de gentamicina para sepse por Enterococcus faecalis. Recebeu alta após 48 dias de internação, sendo encaminhado para acompanhamento ambulatorial.
Nenhuma das três mães era infectada pelo HIV.
DISCUSSÃO
A sífilis durante a gestação ainda acomete uma proporção significativa de mulheres no Brasil. Esse fato impacta a sobrevida dos recémnascidos, uma vez que, em mulheres não tratadas durante a gestação, a taxa de transmissão vertical é de 70% a 100% nas fases primária e secundária da doença. Além disso, a SC apresenta elevada morbimortalidade, podendo chegar a 40% das crianças infectadas5.
A qualidade da assistência na gestação e no parto é determinante na redução da transmissão vertical da sífilis. No Brasil, em 2000, o Ministério da Saúde (MS) lançou o Programa de Humanização do PréNatal e Nascimento, cujos objetivos são assegurar a ampliação do acesso, da cobertura e da assistência prénatal, parto e puerpério no país, assim como reduzir a morbimortalidade materna e perinatal.
Para isso, o programa estabeleceu critérios de atenção como, por exemplo, a realização de um número mínimo de 6 consultas, além de triagem sorológica com um exame de VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) na 1ª consulta e outro por volta da 30ª semana de gestação. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o MS preconizam, ainda, a realização de um 3º exame de VDRL no momento do parto, para todas as gestantes, considerando a perda de oportunidades de realização do exame durante o acompanhamento prénatal. Na ausência de teste confirmatório (treponêmico), devem considerar-se, para o diagnóstico de sífilis, as gestantes com VDRL reagente, em qualquer titulação, desde que não tratadas anteriormente de forma adequada.5-8
O teste rápido para sífilis é uma ótima estratégia para não se perderem oportunidades de diagnóstico, por ser de fácil execução e permitir o início imediato do tratamento nas unidades de atenção primária à saúde. Os testes treponêmicos utilizam sangue total, soro ou plasma e podem ser lidos entre 5 e 20 minutos. No entanto, a eliminação da SC em nosso país ainda representa um grande desafio aos gestores e aos profissionais da saúde.9
Em 2004, a despeito dos esforços do MS para reduzir a incidência de SC para um caso ou menos a cada 1.000 nascidos vivos, a prevalência de sífilis em parturientes foi de 1,6%, aproximadamente 4 vezes maior que a prevalência da infecção pelo HIV. Em 2005, estimase ter havido cerca de 50.000 parturientes infectadas e 12.000 nascidos vivos com SC no país; porém, desses, apenas cerca de 5.000 casos foram notificados ao MS, apesar de a SC ser uma doença de notificação compulsória nacional desde 19865,9.
Tendo em vista que a causa, o diagnóstico e o tratamento desse agravo são bem estabelecidos, os dados revelam a necessidade de implantação de estratégias públicas de controle da infecção mais eficazes, com foco, principalmente, na assistência prénatal. Nos casos relatados, podemos observar que as falhas no diagnóstico e no tratamento da doença ocorreram durante o prénatal, embora pudessem ser evitadas a morbidade e a mortalidade observadas.
Ao longo dos últimos anos, várias outras estratégias foram lançadas, objetivando o controle da transmissão vertical de doenças infecciosas, incluindo a SC. Em 2006, o MS lançou o Pacto pela Saúde, cujo objetivo principal é a redução da mortalidade maternoinfantil. Em 2007, foi publicado o Plano Operacional para a Redução da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis. Em 2008, foi publicada a Portaria nº 325/GM do MS, a qual fixou prioridades para o Pacto pela Vida, incluindo a redução da mortalidade infantil e materna e o fortalecimento da capacidade de resposta às doenças emergentes e às endemias. Em 2011, foi instituída a Rede Cegonha, que visa a assegurar à mulher uma rede de cuidados e à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis. Entre as ações do componente prénatal da Rede Cegonha estão a prevenção e o tratamento das doenças sexualmente transmissíveis, com disponibilização de testes rápidos de sífilis e HIV.
Além desses, vale ressaltar que a Organização PanAmericana da Saúde (OPAS) aprovou o Plano de Ação para a Eliminação da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis Congênita, estabelecendo metas para o ano de 2015, que incluem a redução da taxa de incidência de SC para menos de 0,5 por 1.000 nascidos vivos9.
Apesar de todos esses esforços, na prática, a realidade é diferente, e inúmeros RN ainda necessitam de tratamento específico, muitas vezes com internação hospitalar, devido às falhas na assistência prénatal, conforme se observa nos casos relatados. Além disso, um grande número de casos de SC, tanto precoce quanto tardia, ainda faz parte do cotidiano dos pediatras.
Dessa forma, a ocorrência desse agravo entre crianças tornase um evento sentinela que demonstra a ineficiência do cuidado prénatal e reforça a necessidade de intensificação das ações preventivas. Essas ações são de suma importância devido à alta morbimortalidade da doença, dada à potencialidade de acometimento de vários órgãos, podendo levar à morte fetal ou neonatal, além de sequelas neurológicas e esqueléticas. A ocorrência de SC em recém-nascidos cujas mães receberam assistência prénatal revela que as oportunidades de triagem, diagnóstico e tratamento dessas gestantes não estão sendo aproveitadas5,10-12.
Dos 3 casos relatados, percebese que todas as gestantes obtiveram o diagnóstico de sífilis durante a gestação; porém, duas receberam tratamento inadequado, e outra sequer foi encaminhada para tratamento. Quanto aos parceiros, nenhum recebeu tratamento, o qual é considerado adequado quando realizado com o número de doses de penicilina benzatina recomendado para cada fase da doença. De acordo com as Diretrizes para o Controle da Sífilis Congênita do MS, considerase tratamento inadequado durante a gestação o uso de terapia não penicilínica ou penicilínica incompleta (tempo ou dose); instituição de tratamento dentro dos 30 dias anteriores ao parto ou término da terapia preconizada menos de 30 dias antes do parto; manutenção de contato sexual com parceiro não tratado; ausência de confirmação de decréscimo dos títulos reagínicos; ou evidência de reinfecção (incremento dos títulos reagínicos em, pelo menos, 4 vezes). Nesses casos, o RN deve ser investigado e tratado para SC.5
Recomenda-se que a penicilina seja dispensada e administrada nas unidades básicas de saúde, pois o encaminhamento de pacientes para unidades hospitalares e prontos-socorros, devido ao receio de ocorrência de reações anafiláticas com a administração da penicilina, dificulta a implantação do tratamento imediato e efetivo. A ocorrência de reações alérgicas é estimada em 2% por curso de tratamento, e as reações anafiláticas ocorrem em apenas 0,01% a 0,05% dos pacientes tratados com penicilina.
Segundo recomendação da CONITEC/MS/2015, o receio de ocorrência de reação anafilática não deve ser impeditivo para a administração da penicilina nas unidades de atenção básica de saúde para tratamento de sífilis nas gestantes. Por conseguinte, essas unidades devem estar preparadas para lidar com situações emergenciais, como, por exemplo, o uso de adrenalina e o encaminhamento de casos mais graves para os centros de referência12,13.
Quanto mais precocemente a sífilis primária for tratada, maior será a possibilidade de os exames sorológicos tornarem-se não reagentes. Todavia, mesmo após a cura, os testes treponêmicos podem permanecer reagentes por toda a vida. A infecção pelo T. pallidum não confere imunidade permanente; por isso, é necessário diferenciar entre a persistência de exames reagentes (cicatriz sorológica) e a reinfecção pelo T. pallidum.14
Percebe-se, portanto, que a presença da infecção materna no periparto reflete possível falha na assistência prénatal e persistência da doença congênita, devido à sua magnitude. Além disso, sequer pode ser chamada "evento sentinela", pois reforça a tese de que as atividades básicas e de baixo custo necessárias à sua eliminação, que deveriam ser realizadas nas ações de rotina do cuidado prénatal, não mudam o quadro. Logo, esse cenário demonstra um nível insuficiente de controle da doença e que a meta, pactuada pelo país há 15 anos, ainda não foi alcançada.15
Os casos relatados e o problema proposto apontam as características da área de investigação de uma unidade em particular; mas, com certeza, podem extrapolar para diversos serviços de neonatologia pelo Estado do Rio de Janeiro e pelo país, sendo essa a razão de os autores proporem o relato e a discussão para reflexão.
Os exemplos selecionados confirmam a necessidade de reforço nas políticas públicas já bem estabelecidas em documentos do MS. A avaliação do risco à saúde, assim como o impacto econômico causado pela falta da assistência adequada, deveria fazer parte das discussões cotidianas de todos os profissionais da saúde.
Há necessidade de revermos os conceitos de acesso e utilização dos serviços de saúde no Brasil, assim como a qualidade. Podemos tomar como base o estudo de doenças prevalentes como, por exemplo, a sífilis, conforme proposto neste relato de caso. Adicionalmente, intervenções são necessárias na área perinatal, com a finalidade de realizar procedimentos realmente efetivos com intuito de reduzir desfechos desfavoráveis.
Conclui-se que a ocorrência de SC evidencia as oportunidades perdidas de diagnóstico e, principalmente, de tratamento da gestante e de seus parceiros, mantendo a cadeia de transmissão e ocasionando a elevação da morbimortalidade da criança. Dessa forma, reforçase a necessidade de melhorar a qualidade da assistência prénatal visando à prevenção da doença.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à equipe de Neonatologia do HUAPUFF e à Dra. Juliènne Martins Araújo pelo atendimento dos pacientes participantes deste estudo.
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