Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 15(2) - Setembro 2015

Artigo Original

O ponto de vista da família de crianças vítimas de violência perante a ação do Conselho Tutelar

Families' point of view about the action of Child Protective Services in child abuse situations

 

Ana Lúcia Ferreira1; Diogo Ramos Noronha2; Luciane Gaspar Guedes3; Sara Pinheiro Ferreira4

1. Doutora em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ)
2. Graduando da Faculdade de Medicina pela UFRJ
3. Mestre em Medicina pela UFRJ Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG/UFRJ)
4. Fisioterapeuta

 

Endereço para correspondência:

Ana Lúcia Ferreira
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG/UFRJ)
Rua Bruno Lobo nº 50,Cidade Universitária, Ilha do Fundão
Rio de Janeiro, RJ, CEP: 21941-912
Telefone: 2590-4891
E-mail: analuferr@gmail.com

 

Resumo

INTRODUÇÃO: Os Conselhos Tutelares (CT) têm como função primordial garantir os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes brasileiros. Além disso, diante da violência, esses órgãos têm poderes para aplicar medidas que garantam a proteção dessa parcela populacional. Não obstante, muitos profissionais e cidadãos ainda vêm os serviços de proteção à criança e ao adolescente como agências coercitivas e punitivas.
OBJETIVO: Relatar experiências de familiares nos contatos com o CT em decorrência de situações de violência contra crianças ou adolescentes.
MÉTODOS: Entrevistaram-se 30 responsáveis que compareceram em um serviço de acompanhamento às famílias de crianças e adolescentes em situação de violência. Todos tiveram contato com os CT em decorrência desse problema. Foi feita análise de conteúdo, temática, do material transcrito.
RESULTADOS: A orientação às famílias foi a ação mais frequentemente aplicada pelas equipes dos CT. Entre as experiências positivas relatadas pelos entrevistados, ressaltam-se o acolhimento e o apoio emocional; o esclarecimento de dúvidas; o trabalho em rede com a instituição de saúde e a garantia dos direitos das crianças envolvidas. Já em relação às experiências negativas, encontram-se o não atendimento das demandas da família; a discordância das decisões tomadas pelas equipes dos CT; as atitudes dos profissionais consideradas inadequadas; a sensação de impotência familiar perante as decisões dos CT; as dificuldades existentes nos processos de trabalho e a pouca clareza dos papéis institucionais na rede de serviços.
CONCLUSÕES: Há dualidade de reações dos responsáveis diante das medidas tomadas pelos CT, sendo importante que os profissionais da saúde reforcem os aspectos positivos dessa ação de proteção à criança e ao adolescente e de apoio à família, bem como que a atuação das equipes dos CT seja aperfeiçoada.

Palavras-chave: maus-tratos infantis; família; conselhos tutelares.


Abstract

INTRODUCTION: Child Protective Services (CPS) guarantees rights of Brazilian children and adolescents as its main role. In case of violence, CPS responds to protection of them. However, many professionals and citizens still consider children and adolescents protective services as coercive and punitive agencies.
OBJECTIVE: We intend to report family experiences concerning the contact with CPS due to child and adolescents abuse.
METHODS: We interviewed 30 persons responsible for the children and adolescents, who were present during the meeting in CPS, agency responsible for following the family of children or adolescents victims of violence. They contacted with CPS due to this problem. We also analyzed the content of transcribed material.
RESULTS: Family orientation was the most frequent action of CPS. Interviewees reported positive experiences, such as: reception and emotional support; clarification of doubts; teamwork with health institution and guarantee of children and adolescents' rights. They also reported negative experiences, such as: non-achievement of family's demands; disagreement about decision-making of CPS; professional's inappropriate attitudes; feeling of impotence due to CPS's decisions; difficulties of work process and obscureness in the institutional roles of service network.
CONCLUSIONS: There are two different reactions of persons responsible for the children and adolescents in the face of decision-making of CPS. It is important that health professionals reinforce positives aspects of protection actions for children and adolescents, and of support for the families. It is also relevant improving CPS teamwork.

Keywords: child abuse; family; child protective services

 

INTRODUÇÃO

A notificação de casos suspeitos e confirmados de violência contra crianças é obrigatória por parte de profissionais das áreas de saúde e de educação em nosso país, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).1 No entanto, por vários motivos, esse procedimento não é realizado de forma tranquila pelos profissionais,2,3 tampouco é bem aceito por muitos familiares. Entre os principais motivos desse fato, destacamos o medo do envolvimento com questões legais, o desconhecimento sobre as ações que podem decorrer da notificação e a incerteza do que acontecerá no interior da família.

Esse não é um problema que ocorre apenas no Brasil. Nos EUA, onde os profissionais da saúde também são obrigados a notificar os serviços de proteção à criança, algumas razões foram identificadas para o descumprimento da lei, a saber: a incerteza do diagnóstico de abuso nos casos suspeitos, a crença de que os próprios profissionais poderiam intervir melhor que os serviços de proteção e o medo de perder as famílias como pacientes.4 Muitos profissionais e cidadãos veem os serviços de proteção à criança como agências coercitivas e punitivas, em vez de uma alternativa de avaliação e suporte para as situações notificadas.5

Os Conselhos Tutelares (CT) têm como função primordial garantir os direitos fundamentais de crianças e de adolescentes brasileiros. Diante da violação desses direitos, como é o caso da violência, os conselheiros têm poderes para aplicar medidas que garantam a proteção dessa parcela populacional, complementando as ações de saúde cabíveis. Entretanto, também têm dificuldades para lidar com situações de violência, uma vez que as respostas e as ações dependem das especificidades de cada situação. Segundo Gryner e Ribeiro,6seriam alguns desafios dos conselheiros tutelares: receber e escutar cada situação, tomando as decisões necessárias sem burocratizar os atendimentos; perceber a providência mais importante a ser tomada (cuidados médicos, psicológicos, intervenção jurídica, entre outros); receber os familiares sob os efeitos das ações dos serviços que encaminharam; escutar a criança ou o adolescente sem cair em um excesso de perguntas; acolher um familiar que deve ser chamado à sua responsabilidade, sem intimidá-lo. Essas são nuances decisivas na possibilidade de um conselheiro exercer sua função de proteção.

Na literatura nacional, existem poucos estudos a respeito das experiências das famílias com os CT. Na prática, as relações entre instituições, população e CT vêm sendo progressivamente construídas, superando dificuldades comuns a todos os que atuam na proteção à criança, mas ainda há muito a ser conquistado nesse campo.

Este artigo tem como objetivo relatar as experiências de familiares nos contatos que tiveram com os CT em decorrência de situações de violência contra crianças ou adolescentes. Acreditamos que, ao dar visibilidade aos relatos dessas famílias, possamos auxiliar os profissionais das áreas de saúde e de educação, bem como as equipes dos CT, a lidar com a questão de maneira mais aproximada à realidade.

 

MÉTODOS

Entrevistaram-se todos os responsáveis que compareceram para consultas entre abril e dezembro de 2009 ao Ambulatório da Família, um serviço que acompanha famílias de crianças em situação de violência no Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG/UFRJ). Os informantes tiveram contato com os CT em decorrência desse problema. Os alunos do Programa de Iniciação Científica da UFRJ coletaram dados dos prontuários e realizaram entrevistas com base em um roteiro com perguntas semiestruturadas. Após a transcrição, procedeu-se à análise de conteúdo (temática) do material. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IPPMG.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entrevistaram-se 30 responsáveis: 22 mães, 4 pais, 2 avós, 1 padrasto e 1 tia materna, dos quais 10 eram os próprios autores da agressão. Os casos estudados envolveram 26 crianças e 4 adolescentes, sendo 22 violências intrafamiliares, 6 extrafamiliares e, em 2 casos, ambos os tipos. Quanto à natureza da violência, 13 casos de abuso sexual, 11 de negligência, 8 de abusos físicos, 5 de abusos psicológicos e 1 de Síndrome de Munchausen. 25 casos eram confirmados e 5 suspeitos.

Esse perfil expressa a experiência do referido serviço desde o início de suas atividades em 1996, haja vista que se atendem mais crianças do que adolescentes em virtude das próprias características da instituição. Em geral, elas são trazidas pelas mães por razão de violência intrafamiliar, em sua maioria. Além disso, o abuso sexual predomina entre os casos encaminhados para o atendimento, possivelmente por tratar-se de um serviço de saúde especializado que dispõe de experiência e de equipe multidisciplinar para o acompanhamento.

Os responsáveis tiveram contato com quatro dos dez CT do município do Rio de Janeiro existentes na época, bem como com CT de outros cinco municípios da Baixada Fluminense. Três responsáveis não souberam identificar o CT com o qual tiveram contato. Pouco mais da metade dos casos havia sido notificada antes de iniciar o acompanhamento no serviço estudado (18/30).

Como o Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG/UFRJ) é um hospital universitário de referência, recebe pacientes de outros municípios e de fora da sua área programática, o que explica os contatos dos responsáveis com diferentes CT. Pelo fato de o Ambulatório da Família ter por objetivo o acompanhamento das famílias, é comum que as notificações sejam realizadas por serviços que prestam o primeiro atendimento em outra instituição, antes do encaminhamento.

Entre as ações previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como próprias dos CT, as mais relatadas pelos familiares entrevistados foram orientações (20/30), encaminhamento para serviço de saúde (18/30), acompanhamento da família pelo próprio CT (8/30), assinatura pelos pais de um termo de responsabilidade (7/30), encaminhamento para abrigo (5/30), para delegacia ou Instituto Médico Legal (IML) (4/30) e para Juizado da Infância e da Juventude ou Ministério Público (4/30).

A prática mostra que, após a notificação do serviço de saúde ao CT, a família pode, até mesmo, não ser contatada por esse órgão. Em geral, há convocações para conversas na sede do CT e visitas à residência da família. Embora o afastamento das crianças de suas famílias ocorra raramente e demande envolvimento da justiça, essa ação mobiliza a sociedade e, muitas vezes, faz com que famílias e profissionais aleguem temer a notificação.

Um estudo realizado em Minas Gerais também demonstrou que a ação mais frequentemente implementada em face dos agentes agressores foi a orientação, enquanto a maioria das vítimas foi encaminhada para serviços de saúde.7 Na Cidade de Maringá, priorizaram-se as medidas de orientação concernentes aos direitos das crianças e direcionadas aos pais nos atendimentos pelo CT em decorrência de violência doméstica. Alguns casos foram encaminhados para programas na área social, para serviços de saúde mental (voltados para crianças e autores da agressão) ou receberam encaminhamentos para assistência jurídica (guarda legal, definição de responsabilidade ou pensão alimentícia).8

As vivências relatadas nas entrevistas desta pesquisa foram bastante diversificadas, sendo identificadas duas categorias de análise, cujos núcleos de sentido serão apresentados nas subseções a seguir.

Experiências positivas

A literatura internacional apresenta relatos de que os pacientes, em geral, ficam satisfeitos com as ações desencadeadas pelas notificações obrigatórias e de que as famílias se beneficiam com elas.9 De fato, foi possível perceber que esse tipo de experiência positiva também ocorre em nossa realidade. O acolhimento e o apoio emocional recebidos foram assim relatados: "Elas me trataram muito bem, tiraram aquele medo que eu tava, né?"';"Chegando no CT, ela me explicou, conversou comigo, me deixou até bastante calmo."; "[...] lá eu pude me abrir, conversar com ela, entendeu?"; "Ajudaram bastante. Me deram bastante orientação, bastante apoio, que eu mais precisava."

É difícil prever como as orientações, as intervenções e os encaminhamentos serão recebidos pelas famílias, pois é comum que a experiência de ser chamado ao CT, por si só, já traga grande apreensão e desgaste emocional aos responsáveis, seja para tratar de questões relacionadas à violência doméstica,8 seja quando não se sabe o motivo do convite para o comparecimento à sede do CT (situação comum quando o profissional não avisa à família).

Nesse sentido, um contato inicial acolhedor é fundamental para a construção do vínculo positivo com a família, na medida em que se pode desconstruir a percepção de que o trabalho do conselheiro tem fins punitivos, culminando com o afastamento da criança do convívio familiar.

A possibilidade de os CT se constituírem como lugar de referência para os familiares "depende de como a recepção é feita, de como cada vínculo se estabelece com as pessoas que os procuram e de como a articulação com os parceiros da rede é trabalhada" (GRYNER e RIBEIRO, 2010, p. 56).6 Toda a família precisa se sentir acolhida no decorrer da intervenção, o que pode demandar vários encontros entre a equipe do CT e os responsáveis.

O esclarecimento de dúvidas, tão necessário diante de situações complexas como, por exemplo, a violência, foi outro ponto positivo relatado pelos entrevistados. Identificou-se a satisfação com as orientações sobre os procedimentos relacionados a uma situação nova para a família: "Aí ela [psicóloga do CT] tirou muita dúvida em relação a isso [questões legais].";"Então, aí, ela [conselheira] falou: Não, pode ficar despreocupada porque não é isso [tirar a guarda] que a gente vai fazer, a gente vai acompanhar uma denúncia.";"[...] porque ele me deu a orientação, porque se eu não tivesse passado por lá, eu não ia saber como agir."

Além dessas, outras questões mais subjetivas foram esclarecidas: "Aí, a conselheira falou com ele [pai] Você não pode botar drama no seu filho, você tem que conversar com ele."; "Chegando no CT ela me explicou... que não é por causa disso [abuso sexual do filho]... que ele seria... Como se diz? É ... ia mudar o gênero dele só por causa simplesmente de um menino ter tentado isso.";"[...] ela [psicóloga do CT] tirou essa culpa de mim...eu achei que aconteceu por culpa minha, porque eu não olhei, não vigiei, descuidei, confiei demais." Intervenções como essas priorizam a reorganização das dinâmicas familiares em vez das punições, por isso, certamente contribuem para melhorar a situação de violência na qual a família se vê envolvida.

O trabalho em conjunto com a instituição de saúde também foi valorizado pelos responsáveis: "Na primeira vez, ela [conselheira] me ajudou muito e juntamente aqui com o Fundão eu peguei meu filho de volta."; "Através deles [CT] eu conheci esse lado da delegacia, que cuida desses casos. E consegui vir aqui pro Fundão fazer o acompanhamento dela."

O trabalho do CT em parceria com os serviços de saúde para o atendimento às crianças vítimas de violência evidencia um movimento no sentido da formação da rede de atenção, da qual também fazem parte a escola, as organizações sociais e o poder judiciário.2,6 Essa integração é importante não apenas para todos os parceiros, já que suas ações são complementares, mas também para qualquer instituição, que pode e deve assumir o papel disparador das redes de serviços de apoio.

Milani e Loureiro8 constataram que, três anos após as ações do CT, famílias atendidas por denúncia de violência doméstica ainda permaneciam expostas a adversidades de grande impacto para o desenvolvimento infantil. Segundo as autoras, as ações do CT têm um caráter pontual no momento da ocorrência da notificação e, em curto prazo, obtêm resultados favoráveis, mas podem não ser suficientes para a manutenção da efetividade dos benefícios conseguidos de imediato. Por isso, reforça-se a necessidade de medidas preventivas e de acompanhamento das crianças e das famílias. Por conseguinte, é importante o seguimento na rede de atenção e de proteção, de acordo com o Ministério da Saúde.10

Por fim, parece que algumas famílias conseguiram captar a função primordial do CT, que é a garantia dos direitos e da proteção das crianças e dos adolescentes: "[...] eles fizeram um trabalho muito bom em proteção da minha filha."; "[...] eles agiram de uma forma muito correta que foi em rapidez, que foi de uma semana para outra... me mandaram uma pessoa lá para procurar ele [o agressor]."

Experiências negativas

Na prática, percebe-se que a expectativa em relação aos desdobramentos da notificação pode gerar cobranças dos pais à equipe que os notificou. Isso ocorre quando são implementadas medidas com as quais as famílias não concordam ou consideram pouco adequadas e desnecessárias ou, ao contrário, quando há morosidade nas ações que precisariam ser tomadas. Cabe ressaltar que, se o vínculo entre a família e os profissionais de saúde está estabelecido, essas questões são trazidas e discutidas na consulta. Sendo o profissional de saúde um parceiro da família para a proteção da criança, cabe a ele esclarecer as funções do CT e orientar a respeito dos limites de atuação dos CT e do setor de saúde, especialmente nas decisões legais que dependem de ações judiciais, além de manter o acompanhamento e o apoio à família.

Uma das experiências negativas relatadas na pesquisa diz respeito ao não atendimento das demandas da família: "Simplesmente me perguntaram Você quer o papel pra dar entrada na guarda? Ela me deu o papel e nunca mais me ligou, me contatou pra saber como está o caso, a situação... nada!"; "Fizeram nada. CT pra mim é a mesma coisa que nada. Agora eles só aparecem se a mãe bater, se a mãe machucar. Aí, eles vão nas casas tomar as crianças."

O acompanhamento das famílias pelo CT tem o objetivo de monitorar o cumprimento das medidas implantadas pelos conselheiros. Verifica-se que os responsáveis percebem esse caráter de controle quando o CT ocupa um papel de referência para a garantia de direitos, o que é necessário na vida de uma criança quando falta um responsável no lugar de autoridade.

Há também as situações em que a família discorda das decisões tomadas pela equipe do CT: "A assistente social teve lá e tudo, na minha casa. Falou com ele [marido], o mesmo que nada.'; "Deram uma guarda provisória pro pai do meu filho, que sumiu com ele... por uma iniciativa que o CT tomou sem tomar conhecimento de todos os outros fatos. Fui na delegacia, levei toda documentação, e a Vara de Família consertou."

O hiato que separa o que a família espera e o que o CT realmente faz ditará a opinião a respeito da ação e da importância dos conselheiros perante os casos de maus-tratos. Há relatos negativos tanto por ações aquém quanto por ações além do que a família espera. Martins e Jorge11 citam que, entre as várias dificuldades dos CT, se incluem as falhas no sistema de comunicação, a duplicidade de procedimentos e o distanciamento entre o atendimento e o atendido, circunstâncias envolvidas nos relatos mencionados anteriormente.

A imagem do CT perante a população e os profissionais de saúde é calcada nas ações mais invasivas e dramáticas, como, por exemplo, os encaminhamentos para acolhimento institucional, delegacia ou Justiça, de acordo com os relatos: "Agente ficava aterrorizada com medo de ir à padaria, com medo dele [conselheiro] chegar lá e pegar e carregar as crianças."; "É, meu medo era esse: deles pegarem meus filhos sem investigar sem nada, entendeu? Foi um medo e uma angústia."

Alguns entrevistados consideraram as atitudes dos conselheiros inadequadas:"[...] e o homem [conselheiro] disse assim pra mim: Dá essa criança pra tia logo, porque a senhora ainda está brigando por essa criança?"; "E ela [conselheira] foi muito antiética. Ela tomou partido depois que ela soube das duas partes. Tomou partido de ligar inclusive pra mãe do menino e dizer que eu estive lá, as situações que ocorreram. Então, isso me chocou muito." Como podemos observar, parece clara a necessidade de uma capacitação dinâmica e contínua das equipes do CT, a fim deque se construam as possíveis soluções para cada caso em particular.

Além disso, a sensação de impotência familiar em face das decisões do CT foi alvo de queixas: "Ah não! Tem mãe; não posso fazer nada!"; "Tá bom, obrigado."; "Virei as costas e fui embora."; "E eu não tive como me defender. E ele [ex-marido] chegou bem antes que eu. Quando cheguei lá, eles [conselheira e ex-marido] tavam conversando, e eu não sei o que ele ficou falando com ela também."

A situação hierárquica que se forma após a notificação usualmente coloca a família à mercê das decisões tomadas pelo CT, como se seu papel fosse apenas de expectadora em vez de co-auxiliadora na resolução do problema. Esse fato é ainda mais gritante quando não são contempladas as demandas familiares.

As dificuldades existentes nos processos de trabalho do CT também foram identificadas como um aspecto negativo: "Sumiu processo, botaram lá o que não era meu."; "Você não tem que vim aqui, não [no CT]. Espera a carta chegar lá, e a carta até hoje não chegou lá.: As precárias condições de trabalho das equipes e a grande demanda certamente contribuem para esses desfechos relatados.

Adicionalmente, a pouca clareza dos papéis institucionais na rede de serviços foi explicitada pelos entrevistados, descontentes com o andamento dado para as respectivas situações: "Eles [conselheiros] acharam desnecessário tocar o caso afrente... Ele [conselheiro] não deu orientação nenhuma porque já está sendo orientado. Tem psicólogo, tem médico [no hospital] [...]";"Não, graças a Deus [inexistência de acompanhamento por parte do CT]. Eles não bateram na minha porta. [...] eu levei o comprovante que tava sendo atendido aqui no Fundão e não me chamaram mais."

A omissão por parte do CT em atender às queixas foi citada por Bazon,12 que relacionou a subnotificação a uma espécie de filtro em que o próprio CT escolhe o que registra ou não, por lidar com um grande número de ocorrências e por julgar alguns casos como não tão graves. Esse fato acarreta uma visão ainda mais negativa por parte da população perante o CT e sua dinâmica de funcionamento.

 

CONCLUSÕES

Observamos a dualidade de reações dos responsáveis perante as medidas tomadas pelo CT. É necessário que os profissionais identifiquem essa possibilidade e reforcem os aspectos positivos dessa ação de proteção à criança e de apoio à família, contribuindo para uma mudança na imagem do CT. Por outro lado, percebemos que a atuação das equipes do CT precisa de aperfeiçoamento: "É a oportunidade de reconhecer os equívocos e trabalhar os impasses que se apresentam na prática cotidiana, o que pode propiciar uma atuação mais efetiva e transformadora das situações de violência."6

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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11. Martins CBG, Jorge MHPM. A violência contra crianças e adolescentes: características epidemiológicas dos casos notificados aos Conselhos Tutelares e programas de atendimento em município do Sul do Brasil (2002 e 2006). Epidemiol Serv Saúde 2009;18(4).

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