Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 14(1) - Outubro 2013

RELATOS DE CASO

O Mapa falante como instrumento do processo ensino-aprendizado do aluno de medicina: Relato de experiência

Map-speaker as an instrument of the teaching-learning of medical students: Experience report

 

Ana Lúcia Ferreira1; Maria de Fátima Wakoff Pereira2

1. Doutorado - Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ
2. Médica do Programa de Atençao Primária à Saúde da Faculdade de Medicina/UFRJ

 

Endereço para correspondência:

Instituto de Puericultura e Pediatria Martagao Gesteira
Departamento de Pediatria
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rua Bruno Lobo nº 50 - 3º andar. CEP: 21941-612

 

Resumo

OBJETIVO: Relato de uma experiência de ensino médico em Atenção Primária à Saúde, com o foco na identificação e prevenção de risco aos acidentes domésticos na infância.
MÉTODOS: Destaca-se o Método Criativo Sensível, na modalidade Mapa Falante, como uma ferramenta que privilegia as atividades de grupo, bem como a construção do conhecimento compartilhado.
RESULTADOS: O processo de construção do mapa trouxe visibilidade quanto aos riscos para acidentes na casa visitada, assim como proporcionou aos alunos de Medicina a oportunidade de vivenciarem o enfoque multidimensional das ações de cuidado à saúde.
CONCLUSÕES: A integração entre os alunos, a família, a equipe da creche e os profissionais da ESF foi facilitada pela construção e discussão do mapa, criando um espaço que favoreceu aos participantes a identificação de recursos exeqüíveis de promoção e de prevenção de saúde.

Palavras-chave: Cuidado da Criança.Acidentes Domésticos. Ensino. Equipe Interdisciplinar de Saúde.


Abstract

OBJECTIVE: Report of an experience of medical education in primary health care focused on risk identification and prevention of childhood's domestic accidents.
METHODS: The Creative Sensitive Method, in mode Map-speaker, stands out as a tool that favors group activities, as well as the construction of shared knowledge.
RESULTS: The preparation of the map has brought visibility to the risks for accidents in the home visit, as well as provided to medical students the opportunity to experience the multidimensional approach of the actions of health care.
CONCLUSIONS: The integration of students, family, staff and childcare professionals FHS was facilitated by the construction and discussion of the map, creating a space that encouraged participants to identify feasible resources of promotion and health prevention.

Keywords: Child Care.Accidents.Teaching. Patient Care Team.

 

INTRODUÇÃO

Os alunos do terceiro período da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) têm, como disciplina obrigatória, a Atenção Integral à Saúde (AIS). Os objetivos desta disciplina são: compreender o conceito de saúde integral; identificar a importância dos determinantes sociais no processo saúde-doença-cuidado e da Atenção Primária à Saúde na formação médica; e conhecer o Sistema Único de Saúde (SUS), seus princípios e diretrizes, no contexto da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esses alunos são alocados em pequenos grupos em Unidades da ESF do município do Rio de Janeiro, durante uma manhã por semana, no decorrer de todo o semestre letivo, sob a supervisão de professores da FM.

Como forma de sistematizar a integração entre alunos, comunidade e ESF em um desses campos de estágio, foi utilizado o mapa falante ou mapa-território-cotidiano(1,2) como um projeto piloto, com 5 alunos, no segundo semestre de 2010.

O objetivo deste artigo é relatar a primeira experiência da utilização do Mapa Falante na disciplina Atenção Integral à Saúde do curso de Medicina da UFRJ.

 

O MAPA FALANTE E SUAS DIVERSAS APLICABILIDADES

A área da saúde, em especial a enfermagem, tem utilizado o Método Criativo e Sensível (MCS) para a produção de dados de pesquisa e para o trabalho com pacientes. Neste método, criatividade e sensibilidade são valorizadas na produção de dados da pesquisa e as dinâmicas têm por objetivo facilitar a expressão dos sujeitos da pesquisa e evitar a dicotomia entre razão e emoção. Este método aglutina sensibilidade com discurso teórico, através de idéias coletivas e da linguagem artística, valorizando a dimensão social e coletiva do conhecimento (p.263).(3)

O método combina técnicas de coleta de dados já consolidadas na pesquisa qualitativa (entrevista coletiva, discussão grupal e observação participante), com dinâmicas de criatividade e sensibilidade (DCS), que são o seu eixo norteador(4).

As DCS propõem um espaço de discussão coletiva, no qual a experiência vivenciada é abordada por meio de uma produção artística. São várias as DCS relatadas na literatura(3,4,5), dentre elas o Mapa Falante, modalidade que associa conhecimento técnico-científico, arte, criatividade e sensibilidade, de forma simples e lúdica.

A técnica do Mapa Falante foi utilizada pela primeira vez por Monteiro(6) no estudo sobre a rota do álcool na vida dos adolescentes de uma comunidade do município do Rio de Janeiro. Desde então, já foi utilizada para conhecer o saber local no manejo da alimentação de bebês de baixo peso(7), localizar a criança dependente de tecnologia na comunidade partindo da percepção do macro para a micro-realidade de vida dessa criança(8), conhecer as relações estabelecidas entre os familiares e/ou cuidadores de crianças especiais e a comunidade em geral(9), aprofundar conhecimentos sobre as vivências de pessoas com AIDS(10,11) e visualizar as relações estabelecidas entre os protetores de direitos das crianças em situação de violência e a comunidade em geral(12).

O mapa falante tem sido usado também para estudar espaços geográficos, uma vez que está em consonância com o "entendimento de território e de lugar como espaço do cotidiano, vivo, pulsante, em constante transformação. O espaço de levar a vida"(2).

A utilização de um Método Criativo Sensível como estratégia pedagógica de grupo, possibilita múltiplos olhares sobre vários campos de atuação da Atenção Primária à Saúde, envolvendo acadêmicos, profissionais de saúde, equipamentos sociais e a população atendida. A partir do encontro de saberes singulares é que se dá construção do conhecimento coletivo13.

 

A UTILIZAÇÃO DO MAPA FALANTE PELOS ALUNOS DE MEDICINA

Em visita a uma das creches da comunidade, os professores e os alunos de Medicina se depararam com a situação de uma criança de 2 anos que estava com uma queimadura na planta do pé e havia dúvida, por parte da diretora, se a lesão havia sido provocada intencionalmente. A mãe alegou que a criança havia se queimado sozinha, batendo com o pé enquanto dormia na mesma cama onde a mãe utilizava um ferro elétrico para passar roupa.

Foi feita visita domiciliar (VD) com uma agente comunitária de saúde (ACS) e os alunos que haviam estado na creche. Considerando os objetivos de aprendizado na disciplina, foi proposta aos alunos a construção de um mapa falante tendo como tema-objeto os fatores de risco para acidentes domiciliares (figura 1).

 


Figura 1: Mapa Falante da casa visitada, elaborado pelos alunos de Medicina após visita domiciliar com uma Agente Comunitária de Saúde.

 

Foram identificados vários riscos no entorno da casa (acúmulo de lixo, escada íngreme sem corrimão ou qualquer apoio) e em seu interior. A porta da casa tinha fechadura acessível à criança; no único quarto havia uma cama de casal, onde dormiam a criança e a mãe; o chão tinha vários desníveis; a cozinha era estreita, escura, com bancadas em níveis baixos e acessíveis, contendo utensílios como facas, material de limpeza próximo a alimentos e quinas vivas; o fogão estava em nível baixo e o botijão de gás ficava no mesmo local. O banheiro, além de muito pequeno, tinha diferentes níveis de piso: a pia ficava em um nível intermediário, o chuveiro em um nível mais baixo e o vaso sanitário em um nível elevado, oferecendo risco de queda. Segundo o tio, a mãe passava roupa na própria cama, único local disponível para tal, e a criança havia se queimado acidentalmente ao encostar o pé no ferro de passar enquanto dormia.

O mapa foi discutido entre os alunos, os professores e a ACS, apresentado à médica responsável pela família e outros profissionais da ESF, à Direção da creche e à mãe da criança. A suspeita de lesão intencional foi afastada pela equipe de saúde ao final de todo o processo.

 

DISCUSSÃO

O Mapa Falante é considerado como potente instrumento para fazer uma leitura da realidade a partir de suas múltiplas dimensões. Ao construí-lo, os participantes fazem uma representação coletiva de como vêem a situação do território, identificando os pontos positivos e os negativos, o que facilita uma análise crítica da situação encontrada e o planejamento de ações voltadas especificamente para o espaço analisado.

A proposta da construção do mapa falante aos alunos do terceiro período do curso de Medicina (a maioria na faixa etária entre 18 e 20 anos) foi bem compreendida e aceita por eles. Apesar de já participarem regularmente de visitas domiciliares na disciplina, a "missão" de elaborar um desenho que não apenas mostrasse o que viram, mas também fosse capaz de apresentar a outras pessoas o espaço visitado, com seus riscos para a criança, proporcionou integração entre os componentes do grupo e uma discussão profícua para proporem mudanças tanto no espaço físico da moradia quanto nas atitudes dos profissionais em relação à família, visando a proteção da criança.

As oficinas que utilizam as DCS são consideradas adequadas para abordar temas complexos como prevenção da violência contra a criança13 e neste caso o mapa falante permitiu abordar o tema com a família e os profissionais de uma forma leve, a partir dos riscos de acidentes verificados na residência e facilmente visualizados por todos nos espaços onde o mapa foi apresentado pelos alunos.

Quando se trata de fazer diagnóstico diferencial de uma suspeita de violência física perpetrada conta crianças, os acidentes sempre precisam ser considerados14. Estar diante da possibilidade de uma situação de violência mobilizou os alunos e as equipes de saúde e da escola, e o esclarecimento da situação por meio de um método dinâmico, que permite expressões de sentimentos e sensações, mostrou-se pertinente e positivo.

O encontro com a mãe da criança abriu espaço para que ela admitisse suas dificuldades em controlar o filho em uma idade na qual se expõe a acidentes e que demanda supervisão constante, admitindo que utilizava medidas agressivas para coibir seu comportamento inadequado, comportamento culturalmente freqüente em nosso meio. Foi verificado, também, que talvez suas experiências de vida não tenham sido favoráveis para adquirir um comportamento diferente, e que era necessário auxiliar esta mãe a desempenhar a maternagem. Nesse sentido, tanto a equipe da creche quanto a da ESF desempenham um papel peculiar, pela proximidade dos contatos com a família. Esta Clínica da Família conta com a presença de um Conselheiro Tutelar semanalmente, o que pode ser mais um fator de proteção à criança em foco, na medida em que a equipe da ESF pode intermediar um contato entre ele e a família.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Mapa Falante mostrou-se um instrumento capaz de estimular o aluno a desenvolver uma reflexão crítica sobre sua prática. Constatamos que a integração entre os alunos, a família, a equipe da creche e os profissionais da Unidade da ESF, facilitada pela construção e discussão do mapa, criou um espaço que favoreceu aos participantes a identificação de recursos exeqüíveis de promoção e de prevenção de saúde, especificamente em relação à minimização de risco de acidentes domésticos. Trata-se de um instrumento de fácil compreensão, que proporciona integração e, de forma visual e lúdica, permite a identificação de aspectos importantes dos condicionantes de saúde-doença no território.

A partir desta experiência exitosa, a disciplina Atenção integral à Saúde passou a utilizar a construção do Mapa Falante como parte do processo de ensino-aprendizagem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Toledo RF, Pilicioni MCF. A educação ambiental e a construção de mapas-falantes em processo de pesquisa-ação em comunidade indígena na Amazônia. Interacções. 2009;11:193-213. Disponível em <http://hdl.handle.net/10400.15/336>. Acesso em: 22 nov. 2011.

2. Pekelman R, Santos AA. Território e lugar - espaços de complexidade. 2009. Disponível em <http://escoladegestores.mec.gov.br/site/8 biblioteca/pdf/texto01_territorio_e_lugar.pdf>. Acesso em: 02 set. 2011.

3. Bergold LB, Alvim NAT, Cabral IE. O lugar da música no espaço do cuidado terapêutico: sensibilizando enfermeiros com a dinâmica musical. Texto Contexto Enferm. 2006;15(2):262-9.

4. Neves ET, Cabral IE. Empoderamento da mulher cuidadora de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm. 2008;17(3):552-60.

5. Silva LF, Cabral IE, Christoffel MM. As (im) possibilidades de brincar para o escolar com câncer em tratamento ambulatorial. Acta Paul. Enferm. 2010;23(3):334-40.

6. Monteiro V. A imagem do álcool na vida dos adolescentes e sua relação com a prática educativa-dialógica da enfermeira. 1999. Dissertação [Mestrado] - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 1999.

7. Pacheco STA. O saber local das famílias no manejo da alimentação do bebê de baixo peso: implicações para a prática social da enfermagem. 2009. Tese [Doutorado] - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2009.

8. Cunha SR. A Enfermeira - Educadora, as Marias e o José: tecendo a rede de saberes e práticas sobre o cuidado a criança dependente de tecnologia na comunidade. 2001. Tese [Doutorado] - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2001.

9. Vernier ETN. O empoderamento de cuidadoras de crianças com necessidades especiais de saúde: interfaces com o cuidado de enfermagem. 2007. Tese [Doutorado] - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2007.

10. Padoin SMM, Machiesqui SR, Paula, CC, Tronco CS, De Marchi MC. Cotidiano terapêutico de adultos portadores da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Rev. Enferm. Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 2010;18(3):389-93.

11. Machiesqui SR, Padoin SMM, Paula CCC, Ribeiro AC, Langendorf TF. Pessoas acima de 50 anos com Aids: implicações para o dia-a-dia. Esc. Anna Nery. 2010;14(4):726-31.

12. Pierantoni LMM. (Des) caminhos do protetor da criança em situação de violência: subsídios para a ação da enfermagem na equipe de saúde. 2007. Dissertação [Mestrado] - Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2007.

13. Cabral IE. Uma abordagem criativo-sensível de pesquisar a família. In: Althof CR, Elsen I, Nitschke RG (Editores). Pesquisando a família: olhares contemporâneos. Florianópolis: Papa-Livro; 2004. p.127-39.

14. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: SCES; 2010.