Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 14(1) - Outubro 2013

Editoriais

Escolhendo um presente

 

Anna Tereza M. Soares de Moura

 

É comum organizarmos as agendas a partir dos feriados nacionais e o ano parece passar cada vez mais rápido com o aumento do número de festas e dias de recesso. Algumas datas são clássicas e levam à grande mobilização social, pois não se quer perder a oportunidade de interromper um pouco a rotina pesada do dia a dia e relaxar. Os feriados também movimentam o comércio de maneira especial. Além do Natal, os Dias das Mães e o Dia das Crianças são considerados como oportunidades de boas vendas e geração de lucro. Logo se observa uma agitação na mídia, que oferece ofertas quase irresistíveis dos últimos lançamentos para entretenimento infantil. Assim, conforme se aproxima o Dia das Crianças, cresce a ansiedade dos pais relacionada à escolha dos presentes. As possibilidades são muitas, quase infinitas, cada vez mais especiais, supersônicas, atraentes e psicodélicas!

Quais os programas da TV preferidos do momento? Existe algum lançamento de filme com personagens já disponíveis nas lojas de departamento como bonecos, jogos ou fantasias? E para as meninas, quais as tendências para a próxima estação, o que elas vão querer vestir no verão? O que a nova boneca pode fazer além de dançar e cantar? E as últimas novidades em jogos eletrônicos? Será que existe necessidade de atualizar o videogame ou comprar novos jogos eletrônicos? O novo celular já oferece todas as possibilidades? A corrida às lojas e shoppings da cidade, enfrentar filas intermináveis, compras parceladas no cartão de credito, tudo isso já começa a preocupar os pais, que querem aproveitar a data para agradar seus filhos.

E as crianças? O que elas gostariam de ganhar de presente?

Em meio a uma época onde o consumo dita as normas sociais e a necessidade de ter é a sua grande mola propulsora, é difícil encontrar uma criança que não tenha um desejo real de ganhar um presente especifico. Nas escolas, nos condomínios, nos clubes as crianças percebem que sempre existe um algo a mais, alguma coisa que elas ainda não têm. Assim como seus pais, se sentem ansiosas diante deste aparente descompasso entre aquilo que tem e o que poderiam ter.

Mas será que a criança tem outros desejos? Quais os seus verdadeiros sonhos?

Talvez elas pudessem desejar uma maneira diferente de comemorar. Seus pais aproveitariam o Dia das Crianças para ficar até mais tarde na cama e contar histórias. Poderiam ser historias "verdadeiras", aquelas que aconteceram em outros tempos, quando os pais ainda eram crianças, com seus amigos de infância, primos e avós. Ou quem sabe contar as histórias que estão nos livros, aqueles que até hoje ainda não tinham sido abertos. E se o programa fosse procurar fotos antigas dos álbuns para ver como era a vida quando os pais eram jovens e estavam na escola, o que vestiam, ou procurar as caretas que o tio engraçado gostava de fazer nas festas de aniversário.

Talvez as crianças pudessem pedir para fazer um passeio - um pouco de exercício para variar - levando a bicicleta antiga ou aquela bola já usada. Quem sabe levar algumas das muitas bonecas que precisam de um pouco de ar para voltar a ser interessantes e mais saudáveis. Um piquenique na praia, em um parque ou até na garagem ou playground poderia se transformar numa grande aventura. O almoço não precisaria ser em restaurante da moda ou em lanchonetes "descoladas", mas em casa mesmo. E a sobremesa um brigadeiro na colher, ou um bolo que não vai crescer, mas que a receita foi conseguida depois de um carinhoso telefonema para a avó.

São muitas as possibilidades de fazer do Dia das Crianças um dia diferente - um dia para estar juntos. Para exercitar as escolhas em conjunto, combinar o programa de maneira a que todos possam se divertir, independente da idade. Cada um entenderia os desejos dos outros, de cada irmão ou irmã, daria a vez e esperaria a sua vez. Um dia onde o presente seria a atenção, a escuta, o diálogo, o carinho.

Este talvez seja o presente que as crianças precisam receber. Acreditar e perceber que são queridas e apoiadas, independente do dia ou da data do calendário. Saber que suas opiniões têm importância, que seus medos são conhecidos, que seus desejos não podem ser todos atendidos, mas que seus pais estarão lá, juntos. As crianças não precisam de mais brinquedos neste feriado. Elas não precisam de mais equipamentos eletrônicos para brincar sozinhos, em seus quartos no seu computador individual, duelando com a própria habilidade de se isolar.

As crianças precisam experimentar algo fundamental para a construção de suas personalidades e estrutura emocional - a vida em família. Uma verdadeira família, que pode ser considerada como o primeiro grupo de construção social da realidade. É um espaço de produção de cuidado e proteção, de aprendizagem de afetos e de construção de identidades para todos os seus membros e em especial, para a criança. Não existe dúvida de que o olhar, o cuidado e a atenção que a criança recebe de seus pais, são fundamentais para o seu pleno desenvolvimento. A partir da interação que estabelece com seus primeiros cuidadores, a criança vai desenvolvendo expectativas relacionadas aos outros, a si própria e aos seus futuros relacionamentos. Quando esta importante relação está baseada principalmente em ganhos materiais e desejos rapidamente atendidos, os pais perdem a oportunidade de estabelecer um vínculo forte e verdadeiro com seus filhos.

Aos pediatras cabe um papel fundamental na busca destas relações construídas de maneira positiva. Ao promover uma avaliação ampliada da saúde infantil, levando em consideração aspectos sociais, da família e do ambiente onde a criança vive, o pediatra pode colaborar com a inclusão social de um sujeito integrado. Esta visão diferenciada tem como objetivo contribuir com os pais a preparar a criança para alcançar competências e habilidades importantes, como o cuidado com os outros, a autoestima e o exercício da cidadania.

A prática pediátrica tem uma dimensão que vai além da assistência clínica, e que é revestida de amplitude, significado e complexidade. Ao atuar desta maneira, o pediatra pode colaborar na busca pelo bem estar global da criança e do adolescente, reforçando a importância de uma relação afetuosa e positiva entre pais e filhos, onde os sentimentos valem mais do que os brinquedos e presentes. Onde o amor é exercitado diariamente, de maneira ampla, firme e segura. Inclusive no Dia das Crianças.

 

Profa. Dra. Anna Tereza M. Soares de Moura
Departamento de Pediatria - Faculdade de Ciências Médicas / UERJ
Programa de Pós Graduação em Saúde da Família - Curso de Medicina / UNESA
Editora Chefe da Revista de Pediatria SOPERJ
Fellow FAIMER - 2013