Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 10(2) - Dezembro 2009

Artigo de Reflexao

Violência familiar contra a criança - quanto ainda vamos tolerar?

Family violence against children: for how long would we accept?

 

Anna tereza Miranda Soares de Moura

Doutorado em Saúde Coletiva (Professor visitante adjunto do departamento de pediatria da UERJ Professor adjunto do mestrado profissional em saude da família da UNESA Presidente do Comite de Segurança da SOPERJ).

 

Endereço para correspondência:

Maria de Fátima Pombo March
Rua Otávio Carneiro, 143/611 -Icarai
Niterói-Cep 24230-190

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da SOPERJ em 13/4/2010 e aprovado em 7/6/2010 17:11:51.

 

 

Nem mesmo em tempos de caos na saúde, quando uma grave epidemia revela a fragilidade com que os cuidados com o bem estar da população são encarados pelos órgãos públicos, a violência se intimida. Nem mesmo quando se constata a desestruturação da atenção à saúde destinada aos grupos de risco mais vulneráveis, com morte de crianças em serviços de pediatria sucateados e sem estrutura, a violência recua. Ao contrário, temerosa em perder seu destaque como uma das principais causas de mortalidade infantil, ela segue firme e determinada em seu objetivo de atingir um número cada vez maior de vítimas. Principalmente crianças. Estas são as vítimas preferenciais da violência quando acontece no âmbito familiar. Quando se trata de violência urbana, os principais atingidos são os adolescentes. Nestas duas possibilidades de cenário para a ocorrência da violência, as vítimas são jovens que estão começando a viver. Jovens que diariamente experimentam novas descobertas, crianças que esperam receber cuidado e proteção, afeto e apoio.

Há muito tempo a violência vem batendo na porta dos serviços de saúde, sob as mais variadas formas. Algumas são mais palpáveis, com marcas físicas de fácil observação. Mas na maioria das vezes, as conseqüências da violência são invisíveis, especialmente aquela que atinge as crianças dentro de suas próprias casas. Como se costuma dizer, as marcas da violência ficam encobertas por um muro do silêncio. Mesmo quando os casos chegam ao noticiário, televisão e jornais, consternando a sociedade, é certo que apenas parte do que está por trás deste muro foi revelado. A maioria das vítimas sofre em silêncio. Sem possuir as armas necessárias para pedir socorro, as crianças muitas vezes se sentem culpadas por aquilo que sofrem. Também sentem medo, vergonha e se calam.

Não se pode deixar de apontar os muitos avanços observados no enfrentamento deste grave problema, com mobilização séria e sinceramente dedicada de alguns setores do governo e da sociedade civil organizada. O Estatuto da Criança e do Adolescente, o sistema de notificação de maus tratos, a formação de serviços especializados e sensibilizados para o enfrentamento da violência são alguns dos muitos exemplos a citar. A saúde foi um dos primeiros setores a se debruçar sobre o tema, primeiro como uma contadora de eventos e logo tentando revelar como a violência familiar contra a criança se distribuía entre os grupos de maior vulnerabilidade e quais eram os seus principais fatores de risco. Grupos de pesquisa em todo o país vêm se dedicando à difícil tarefa de entender a ocorrência deste grave fenômeno, trazendo alguns direcionamentos importantes para discussão.

No entanto, no que se refere à abordagem da criança vítima o caminho a ser percorrido ainda é longo. Poucos locais dispõem de uma rede articulada e sistematizada de proteção à criança. O que se observa na maioria das vezes são iniciativas isoladas de alguns grupos de profissionais genuinamente interessados em lidar com um tema tão incômodo e desagradável. Que poucos querem enxergar como pertencente à nossa realidade atual e que muitos custam a acreditar que os casos relatados sejam verdadeiros. As estatísticas revelam apenas a ponta de um grande iceberg e o problema é ainda mais preocupante do que queremos supor.

Pediatras, professores, assistentes sociais, pesquisadores e profissionais de saúde mental vêm tentando se articular para atender à crescente demanda das crianças vitimadas por seus pais ou cuidadores. Esforços têm sido feitos, com apoio de gestores e organizações não governamentais, para entender a origem deste problema e tentar detectá-lo o mais precocemente possível a fim de minimizar os efeitos deletérios no crescimento e desenvolvimento das crianças. Não há dúvida que as iniciativas resultaram em melhorias, mas ainda há muito a se fazer. Compreender de que forma os vários fatores de risco da violência se relacionam tentando prevenir sua ocorrência é um dos grandes desafios atualmente. É sempre bom lembrar que depois que a violência ocorre, depois que a criança já vivenciou atos de agressão física, psicológica, foi negligenciada em seus cuidados ou abusada sexualmente, a atuação profissional é bem mais difícil. Prevenir é sempre o melhor remédio.

Nestes momentos de reflexão, cabe a todos nós questionar o que temos feito para prevenir a ocorrência e atuar diante das conseqüências devastadoras destes crimes. A violência contra a criança e o adolescente, nas suas várias formas, não pode mais ser encarada como um problema fora do âmbito da saúde, necessitando de uma posição atuante e fortalecida daqueles que são responsáveis pelo bem estar destes grupos etários. O enfrentamento da violência não pode ficar restrito a iniciativas isoladas de algumas equipes sensibilizadas, merecendo ser desenvolvido após amplo debate e avaliação adequada de prioridades e recursos disponíveis.

Nesta perspectiva, a Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ) vem promovendo amplo debate para conhecer um pouco melhor em que circunstâncias a violência ocorre. Tentar entender porque ela é a maneira escolhida para a resolução de conflitos em algumas famílias e em outras não. Para que esta preocupação não seja mais uma iniciativa isolada, sugere-se a ampliação desta discussão, objetivando a identificação de ações que resultem na real diminuição dos números assustadores que refletem a magnitude do problema. Ao proporcionar espaços de discussão intersetoriais, onde diferentes experiências podem ser ouvidas e olhares oriundos de outros profissionais convergem para tentar minimizar o problema, a SOPERJ vem contribuindo para a prevenção da violência contra a criança e o adolescente. Longe de pretender esgotar o tema, os eventos organizados pelo Comitê de Segurança da SOPERJ tentam lançar um pouco mais de luz sobre um problema de visibilidade tão desconfortável, mas que não pode mais ser negligenciado.

Cabe a toda sociedade trabalhar em conjunto para que o muro do silêncio que encobre as crianças e adolescentes vítimas de violência possa ser derrubado. Ao abordar, informar e conversar abertamente sobre o assunto, a SOPERJ espera estar indo além de sua atuação como sociedade médica. A Semana Nacional de Prevenção da Violência na Primeira Infância, que é comemorada nos dias 12 a 18 de outubro, é mais uma iniciativa exemplar. Conhecer o problema e se comprometer com a luta contra a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes podem ser ações capazes de fazer a diferença. Espera-se assim, estar contribuindo efetivamente para o fortalecimento da rede de proteção das crianças cariocas e brasileiras. Espera-se assim, estar contribuindo para a prevenção da ocorrência da violência familiar contra a criança no nosso Estado.