Revisoes em Pediatria
Anel vascular: uma causa rara de estridor na infância
Vascular ring: a rare cause of stridor in infantss
Elizabete V. Alves1; Renata B.M. Valente2; Eliane Lucas3; Rosangela M. Almeida4; Beatriz A. Soffe5; Andrea L. Teldeshi6; Eliete Rodrigues7; Francisco Chamiè8
1. Médica residente de 2º ano de Pediatria do Hospital Municipal da Piedade (HMP).
2. Médica residente de 2º ano de Anestesiologia do Hospital Souza Aguiar (HSA).
3. Médica cardiopediatra do HMP e Hospital Geral de Bonsucesso.
4. Médica cardiopediatra do HMP.
5. Médica pediatra e chefe do Centro de Estudos do HMP.
6. Médica pneumologista infantil do HMP.
7. Médico cardiopediatra da CARPE.
Resumo
OBJETIVO: Relatar o caso de um lactente internado no setor de Pediatria do Hospital Municipal da Piedade (HMP) com história de estridor respiratório desde o nascimento e pneumopatias de repetição, sendo diagnosticado o anel vascular tipo duplo arco aórtico (DAA). O DAA é uma anomalia do arco aórtico,definido como um anel vascular completo, onde a aorta se bifurca formando dois arcos. O arco direito surge como persistência do arco aórtico direito e o arco esquerdo, que geralmente permanece atrésico; abraçam a região traqueoesofágica. Geralmente estas crianças apresentam sintomas inespecíficos desde o nascimento relacionados principalmente ao trato respiratório. Assim sendo, muitas vezes esses lactentes são classificados genericamente como "bebês chiadores" ou confundidos com afecções pulmonares ou com refluxo gastroesofágico, retardando o tratamento definitivo e aumentando a morbidade destas crianças.Palavras-chave: Anel vascular; Anomalias do Arco Aórtico; Estridor; Bebê Chiador
Abstract
OBJECTIVE: The authors reported a case of an infant admited in the department of Pediatrics of the Hospital Municipal da Piedade (HMP) with history of respiratory stridor from the birth and recurrent pneumopathies, being diagnosed the ring vascular type double aortic arch (DAA).DAA is an anomaly of the aortic arch,defined as a complete vascular ring,where the aorta forks forming two arches. The right arch appears as persistence of the right aortic arch and the left arch, that atresic usually stays; they hug the area tracheoesophagy. These children usually present non-specific symptoms from the birth related mainly to the respiratory tract. Those infants are generical classified as "wheezing babies" or confused with lung affections or with gastroesophageal reflux, delaying the definitive treatment and increasing these children's morbidity.Keywords: Vascular Ring; Anomalies of the Aortic Arch; Stridor; Wheezing Baby
INTRODUÇÃO
Os anéis vasculares são malformações raras do arco aórtico que causam compressão do esôfago e/ou da traquéia, sendo responsáveis por sintomas respiratórios e digestivos. São subdivididos em anéis completos, onde circundam toda a região traqueoesofágica, levando à compressão da via aérea, como o duplo arco aórtico e o arco aórtico direito com persistência do ducto arterioso; e anéis incompletos ou slings, que apenas comprimem uma porção esofágica ou traqueal, como a artéria subclávia anômala (artéria inominada) e o sling pulmonar(1,2,12). As manifestações clínicas são freqüentemente inespecíficas e iniciadas no período neonatal e podem se caracterizar por disfagia, tosse, estridor respiratório, pneumonias de repetição, sibilância crônica, vômitos e cianose exacerbada pelo choro ou pela alimentação(3,4,13). Dependendo do tipo e da localização do anel, estes sintomas podem ser mais intensos ou até mesmo não existirem, sendo apenas um achado acidental. Assim sendo, o duplo arco aórtico e o arco aórtico à direita são as mais comuns anomalias sintomáticas, enquanto que a artéria inominada se constitui na mais comum lesão assintomática. O diagnóstico geralmente é tardio, devido ao baixo índice de suspeita e confusão com outras patologias (refluxo gastroesofágico, afecções pulmonares)(1,2,3,5,6). O principal exame diagnóstico é o estudo angiográfico que proporciona dados sobre o tipo e a anatomia do anel, sua associação com outras cardiopatias congênitas e a simulação cirúrgica; sendo o esofagograma e a broncoscopia exames apenas muito sugestivos. Radiografias, tomografias computadorizadas (TC), ressonância magnética (RNM) e ecocardiograma somente auxiliam no diagnóstico de outras malformações cardíacas associadas e podem ser normais. Atualmente os métodos tridimensionais vêm ganhando espaço neste contexto, com melhores imagens e menor exposição radiativa(7,8). O tratamento definitivo e curativo é a cirurgia. A via de acesso, na maioria dos casos de anel vascular é a toracotomia póstero-lateral esquerda, reservando-se a esternotomia mediana para os portadores de sling pulmonar(1,2). No pós-operatório, a traqueomalácia e as pneumopatias crônicas são as principais causas da manutenção dos sintomas respiratórios. A mortalidade intra-operatória é quase nula, enquanto que após o ato cirúrgico ela se deve à estenose traqueal ou a traqueomalácia.
RELATO DO CASO
D.S.J., 2 meses, sexo masculino, branco, natural do Rio de Janeiro, apresentando história de estridor respiratório desde o nascimento, principalmente após as mamadas e ao choro intenso, acompanhado de tosse seca. Há 20 dias o estridor respiratório ficou mais intenso e persistente associado à tosse produtiva e cansaço, sem febre. Ficou internado neste período no Hospital Getúlio Vargas por 2 semanas com o diagnóstico de bronquiolite e pneumonia. Após alta hospitalar foi encaminhado ao nosso serviço de Pneumologia Infantil onde foi solicitada a internação para investigação do estridor respiratório.Ao exame físico notava-se estridor inspiratório, taquidispnéia com retração subdiafragmática e intercostal moderada, batimento de aletas nasais e hiperextensão do pescoço. À ausculta respiratória, o murmúrio vesicular era rude com estertores e roncos difusos bilateralmente e sibilos esparsos. À ausculta cardíaca, o ritmo era regular, em dois tempos, sem sopros. À palpação abdominal, não foi observada visceromegalia. Exame neurológico sem alterações. Medidas antropométricas: peso - 3700g (p5); comprimento - 55 cm (p10); perímetro cefálico - 39cm (p50).
As avaliações laboratorial e radiológica obtiveram os seguintes resultados:
Hm: 3.690.000 Hb: 11,1g/dl Ht: 33,3% Leucócitos: 18.100 (0/1/0/0/7/52/23/17) VHS: 38mm
RX de tórax: infiltrado para-hilar à esquerda.
Hemocultura: negativa
EAS: sem alterações
Broncoscopia: Laringomalácia discreta, cordas vocais normais. Terço médio de traquéia há compressão ânteroposterior sem alterações de mucosa. Não foi possível observar pulsação, devido à dificuldade respiratória da criança durante o exame. Impressão: anel vascular e traqueomalácia por malformação.
Esofagograma: Compressão bilateral do esôfago torácico ao nível de T4 - T5, compatível com anel vascular (Fig. 1).
Ecocardiograma: Situs solitus. Concordância átrio-ventricular e ventrículo-arterial. Septos interatriais e interventricular íntegros. Doppler em válvulas átrio-ventricular e ventrículo-arterial normal. Diâmetros cavitários normais para a idade. Função de VE preservada. Arco aórtico livre e a esquerda. Drenagem venosa pulmonar normal. Visualiza-se imagem de arco aórtico à esquerda e imagem suspeita em aorta descendente.
Realizado a cateterismo cardíaco (Fig.2) Aortografia panorâmica em PA, PA caudal, OAE 30, OAE 60, OAD e OAD caudal mostraram valva aórtica tricúspide e competente. As artérias coronárias têm origem e trajeto normal até onde visualizadas. Observa-se a presença de duplo arco aórtico com ambos os arcos patentes. Do arco direito se originam a carótida e a subclávia direitas, enquanto que do arco esquerdo nascem a subclávia e a carótida esquerdas. A aorta descendente é normal.
Injeção seletiva em ambos os arcos mostra a continuidade da aorta descendente com a ascendente através de ambos os arcos. Conclusão: Anel vascular tipo duplo arco aórtico.
Foi indicado o tratamento cirúrgico, por se tratar de uma criança sintomática e com evidências radiográficas de compressão do esôfago e da traquéia. O acesso cirúrgico foi através de toracotomia esquerda onde se fez a divisão do arco esquerdo.
A criança continua em acompanhamento e atualmente está bem, apresentando discreto estridor respiratório devido a traqueomalácia.
DISCUSSÃO
Uma significativa porção da população apresenta anomalias envolvendo os grandes vasos do mediastino, o equivalente a 3%, e apenas um pequeno número resulta em compressão sintomática das vias aéreas. A incidência de anel vascular varia de 0,8 a 1,3% em pacientes diagnosticados com doença cardíaca congênita após o nascimento, demonstrando a raridade de tal doença(2,8).
O anel vascular tipo duplo arco aórtico (DAA), resulta do não-desaparecimento da porção distal da aorta dorsal direita. Em conseqüência, as croças direita e esquerda nascem da aorta ascendente. Geralmente, a croça direita é maior, e passa posteriormente à traquéia e ao esôfago(9). Existem, porém, cinco variações descritas de DAA: ambos os arcos patentes (nosso caso); hipoplasia de um arco (normalmente o esquerdo); atresia de um arco (normalmente o esquerdo, e a mais comum variação); presença de um ligamento arterial; e, o arco direito localizado tipicamente mais superior. Raramente o DAA está associado a cardiopatias congênitas(4).
As manifestações clínicas do DAA segundo a literatura, estão relacionadas com a tensão do anel. Quando ambos os arcos são patentes, os anéis são tipicamente apertados e provocam sintomas nas primeiras semanas de vida como o estridor, observado em nosso caso. É comum o surgimento de sintomas entre os 3 a 6 meses de idade ou mais tardiamente. Com o arco esquerdo duplo e atrésico, os anéis são mais frouxos.
Apesar dos sintomas precoces, na maior parte dos casos o diagnóstico de compressão por anel vascular somente é estabelecido tardiamente. Isto se deve ao baixo índice de suspeição pelos pediatras e especialmente pelos sintomas inespecíficos que são confundidos com outras doenças facilmente. Nos casos de DAA, os achados radiológicos que podem ser visualizados são:
O tratamento é cirúrgico, sendo indicado nos casos onde a sintomatologia de compressão de via aérea está presente ou quando a malformação vascular está associada a cardiopatia congênita.
Devido à baixa suspeição clínica de anel vascular e a sua diversidade de sintomas, o tratamento definitivo acaba sendo realizado tardiamente. Segundo alguns autores1, a idade por ocasião da cirurgia variou de 21 dias a 4 anos, com pico de incidencia em torno de 1 ano na literatura.
A via de acesso cirúrgico na maioria dos casos de anel vascular é a toracotomia póstero-lateral esquerda ou direita transpeural e, em alguns poucos casos, a esternotomia mediana. A toracotomia póstero-lateral é preferida por permitir uma excelente exposição das estruturas vasculares e mediastinais, possibilitando a definição da anatomia e da tática cirúrgica adequada para a correção. Além de permitir a liberação das aderências fibrosas que podem persistir após a ligadura vascular, evitando a manutenção de sintomas compressivos.
Nos casos de DAA, realiza-se a ligadura do arco não dominante, seguida de ligadura do ducto arterioso fibrosado. No pós-operatório, a traqueomalácia e as pneumopatias crônicas são as causas mais freqüentes da manutenção de sintomas respiratórios. O estridor pode permanecer por alguns meses ou anos. Esses sintomas residuais podem ser relacionados a alterações na dinâmica traqueal, lesões crônicas do parênquima pulmonar, hiper-reatividade crônica de vias aéreas e infecções de repetição. Por todos estes fatores é de suma importância a fisioterapia respiratória e a antibioticoprofilaxia no pós-operatório para o tratamento a longo prazo.
A mortalidade intra-operatória é quase nula, enquanto que a mortalidade após o ato cirúrgico está diretamente relacionada à estenose traqueal (sling pulmonar) ou à traqueomalácia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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13. Nelson, 2000. Part xix, Chapter 439. In: Textbook of Pediatrics, pp 1405-1406. Rio de Janeiro: McGraw-Hill, 13a edição.
Hospital Municipal da Piedade (HMP) e CARPE / RJ.
AVALIAÇÃO
1. A respeito do anel vascular do tipo duplo arco aórtico é correto dizer que:
a) Geralmente está associado a cardiopatias congênitas
b) A croça direita é maior que a esquerda e à frente da traquéia e do esôfago.
c) O aparecimento de estridor nas primeiras semanas de vida está associado à maior tensão do anel
d) A mortalidade pós operatória está geralmente associada à hipoplasia pulmonar
2. o diagnóstico diferencial do estridor causado por anel vascular pode ser feito com:
a) Refluxo gastro-esofágico
b) Laringite viral
c) Tetralogia de Fallot
d) Enfisema lobar congênito
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