Relato de Caso
Insuficiência adrenal pós-infecção por covid-19 em escolar
Adrenal insufficiency after covid-19 infection in a schoolchild
Ana Beatriz Charantola-Beloni1; Ana Clara Charantola-Beloni2; Mariana Sanches-Peres1; Flávio de-Jesus-Júnior3; Mila Pontes-Ramos-Cunha4; Fábio Roberto Amar1
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v25i1p03-06
1. PUC-Campinas, Pediatria - Campinas - São Paulo - Brasil
2. Iamspe, Clínica Médica - São Paulo - São Paulo - Brasil
3. PUC-Campinas, Endocrinologia - Campinas - São Paulo - Brasil
4. PUC-Campinas, Pediatria e Endocrinologia - Campinas - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Instituição: PUC-Campinas, Pediatria - Campinas - São Paulo - Brasil
Recebido em: 03/01/2024
Aprovado em: 10/09/2024
Resumo
INTRODUÇÃO: A pandemia pelo Sars-Cov-2 mostrou uma nova modalidade de doença que ainda é pouco conhecida e cujo mecanismo fisiopatológico é pouco elucidado. O acometimento do trato respiratório é o mais notório, porém outros sistemas também são afetados. O relato explora as consequências ao sistema endocrinológico em escolar com diagnóstico prévio de Covid-19 com evolução para insuficiência adrenal primária.
OBJETIVO: Relatar insuficiência adrenal em escolar com infecção prévia por Covid-19.
DISCUSSÃO DO CASO: Menino, 8 anos, com vômitos, desidratação e queda do estado geral, sendo este o segundo episódio em 2 meses, com infecção pelo vírus Sars-Cov-2 um mês antes do primeiro episódio. Internado para investigação clínica com resultados de exames: aldosterona 0.97 pg/ml, Na+ 124 mEq/L, T4L 1.61 mUI/L, TSH 9.22 mUI/L, cortisol basal das 8 horas: 4.7ug/dl, anti-TG <0.9, anti-TPO <0.25, ACTH 1250 pg/dl, definindo o diagnóstico de insuficiência adrenal primária. Iniciou-se hidrocortisona intravenosa para tratamento com melhora sintomatológica, permitindo alta hospitalar e seguimento ambulatorial.
CONCLUSÃO: Ainda pouco se sabe sobre a infecção pelo Sars-Cov-2, porém são de fundamental importância o estudo e o relato de suas consequências em diversos sistemas do corpo humano.
Palavras-chave: Insuficiência Adrenal. Covid-19. Hidrocortisona. Criança.
Abstract
INTRODUCTION: The Sars-Cov-2 pandemic has revealed a new type of disease that is still little known, and its pathophysiological mechanism is poorly understood. The involvement of the respiratory tract is the most notorious, but other systems are also affected. This report explores the consequences to the endocrine system in a schoolchild with a previous diagnosis of COVID-19 who progressed to primary adrenal insufficiency.
OBJECTIVE: To report adrenal insufficiency in a schoolchild with a previous Covid-19 infection.
CASE DISCUSSION: An 8-year-old boy with vomiting, dehydration, and a decline in general health, this being the second episode in 2 months, with infection by the Sars-Cov-2 virus 1 month before the first episode. Admitted for clinical investigation with test results: aldosterone 0.97 pg/ml, Na+ 124 mEq/L, T4L 1.61 mIU/L, TSH 9.22 mIU/L, 8-hour basal cortisol: 4.7ug/dl, anti-TG <0.9, anti-TPO <0.25, ACTH 1250 pg/dl, defining the diagnosis of primary adrenal insufficiency. Intravenous hydrocortisone was started for treatment with symptomatic improvement, allowing hospital discharge and outpatient follow-up.
CONCLUSION: Little is still known about Sars-Cov-2 infection, but the study and reporting of its consequences on various systems of the human body are of fundamental importance.
Keywords: Adrenal Insufficiency. Covid-19. Hydrocortisone. Child.
INTRODUÇÃO
Descoberta em Wuhan em 2019, a Covid-19 é uma doença causada por um RNA-vírus, que levou à pandemia e vem repercutindo na vida e na saúde da população até o momento. A doença acomete principalmente o trato respiratório, mas afeta outros sistemas, como o endocrinológico. O presente relato mostra o caso de um escolar que desenvolveu insuficiência adrenal após três meses da infecção por Covid-19, sem imagens sugestivas de hemorragia e infarto adrenal, as quais são mostradas em literatura e corroboram a hipótese, feita por anamnese e exames laboratoriais. Sem patogênese completamente elucidada, o principal mecanismo ocorre pela invasão das células do trato respiratório e hipercoagulabilidade, levando a hemorragias e infartos no córtex adrenal. O diagnóstico e tratamento precisam ser precoces, visto apresentar repercussões np longo prazo.
DESCRIÇÃO DO CASO
TSG, 8 anos e 7 meses, sexo masculino, proveniente de Rondônia, foi admitido no pronto-socorro do serviço no dia 5 de julho de 2022 com vômitos, desidratação e queda do estado geral. Apresentava-se em regular estado geral, consciente e orientado, aspecto emagrecido, sem alterações nos aparelhos respiratório, cardiovascular e abdominal. Foram feitas medidas de suporte clínico e exames laboratoriais, que mostraram Na+ 121 mEq/L, K+ 6 mEq/L, Cl- 85 mEq/L e gasometria venosa: pH 7,35/ pCO2 29 mmHg/ pO2 63 mmHg/ lactato 0,9 mmol/L/ BIC 16 mmol/L/ BE -8,3 mmol/L, sem infecção associada.
Foi internado em enfermaria para investigação do quadro. De antecedentes pessoais, apresentou infecção por Covid-19 em abril de 2022 e o mesmo quadro atual há dois meses, necessitando de internação e permanência em unidade de terapia intensiva no estado de origem durante três dias em junho. Em leito de enfermaria, exames laboratoriais e de imagem foram solicitados, revelando aldosterona 0.97 pg/ml, Na+ 124 mEq/L, K+ 5.3 mEq/L, Cl- 91 mEq/L, endoscopia digestiva alta sem alterações e tomografia computadorizada de abdome total sem particularidades em adrenais. Foi discutida a hipótese de insuficiência adrenal através de dados clínicos e laboratoriais. Assim, no dia 9 de julho, foi iniciada hidrocortisona 50 m2/kg intravenosa 8/8h por 48h, sendo solicitados exames laboratoriais.
Os exames demonstraram T4L 1.61 mUI/L, TSH 9.22 mUI/L, cortisol basal das 8 horas: 4.7ug/dl, anti-TG <0.9, anti-TPO <0.25, ACTH 1250 pg/dl, confirmando a hipótese diagnóstica de insuficiência adrenal pós-infecção por Covid-19. Durante a internação, foi mantida a hidrocortisona, reduzindo-se 20% progressivamente a partir do dia 12 de julho, e paciente permaneceu em bom estado geral, sem intercorrências. Recebeu alta médica no dia 17 de julho e foi encaminhado ao ambulatório de endocrinologia pediátrica no dia 18, para seguimento.
DISCUSSÃO
Em março de 2020, o mundo se deparou com o surgimento e disseminação da Covid-19 (coronavirus disease) causada pela síndrome respiratória aguda grave por coronavírus do tipo 2 (SARS-CoV-2), vírus RNA pertencente à família coronaviridae e responsável pela pandemia até os dias atuais.1 Até o momento, foram mais de 35 milhões de casos confirmados e 689.155 óbitos no Brasil. Esse patógeno é transmitido pela via respiratória1 e atua em vários órgãos e sistemas, sendo reconhecido como causador de doença multissistêmica. Tem o sistema endócrino como um de seus alvos e promove alterações significativas em seu funcionamento.2
O relato aborda a insuficiência adrenal como consequência após a infecção pelo coronavírus. A insuficiência adrenal pode ser devido a autoimunidade, hemorragia e a qualquer tipo de infecção,3 como sepse e pneumonia, causando ativação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, que aumenta a secreção de cortisol por redução da atividade dos receptores de glicocorticoides.4 Ela pode ser primária, central ou terciária, sendo que neste artigo abordaremos a primária.
Em um organismo livre de infecção, há produção pulsátil diária de cortisol através da secreção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pelo eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, que é regulada pela secreção do hormônio liberador de corticotrofina (CRH), presente no hipotálamo. Quando há inflamação ou alteração metabólica, a produção do cortisol pode ser afetada por vários fatores, como angiotensina II, hormônio antidiurético, prostaglandinas e interleucinas.5
Na infecção por SARS-CoV-2, a patogênese ainda não é totalmente elucidada, mas a literatura descreve que o mecanismo patológico ocorre através da infecção viral nas células ciliadas, células claras e os pneumócitos tipo 1 do trato respiratório. O vírus utiliza a enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) como receptor de membrana para adentrar as células e as proteases serinas transmembrana 2 (TMPRSS2), reconhecidas como receptores virais, iniciando o processo de replicação viral.1 Os receptores ACE2 e TMPRSS2 estão presentes no endotélio vascular de diversos órgãos endocrinológicos, como hipotálamo, hipófise, tireoide, gônadas, ilhotas pancreáticas e adrenais,1,2 facilitando sua infecção por SARS-CoV-2 e acarretando insuficiência adrenal primária ou secundária. Além desses receptores, há infecção pelo SARS-CoV-2 através de proteínas na adrenal, como neuropilina 1, lectina tipo C e receptor SRB1, e através de via alternativa por receptores de catepsina L e pH baixo.5
Através de estudos histopatológicos, foram evidenciadas lesões inespecíficas nas células adrenais, tais como necroses, infiltração de linfócitos e monócitos de degeneração lipídica, tromboses vasculares, micro-hemorragias e inflamações focais.2,6 O infarto e a hemorragia estão geralmente associados à infecção por Covid-19 devido à alta incidência do estado de hipercoagulabilidade, que leva os órgãos muito vascularizados, como a adrenal, a serem mais suscetíveis.3 Além disso, devido à hipercoagulabilidade, há aumento do risco de embolização do córtex adrenal em pacientes com Covid-19.5 Estudos mostraram que as interleucinas 6 e 1 e o fator de necrose tumoral alfa reduzem o nível de ACTH, culminando nas manifestações e alterações laboratoriais decorrentes da patologia.4
Em relação às manifestações clínicas, o paciente costuma apresentar sinais e sintomas decorrentes da insuficiência adrenal, como taquicardia, hipoglicemia refratária à medicação, hiperpigmentação mucocutânea, fadiga, cefaleia, náusea e vômitos, dor abdominal e desidratação, que leva à hipotensão.7 Foi descrito que a hiponatremia seria pela concentração de interleucina-6, que seria inversamente proporcional ao nível de sódio plasmático.4
O diagnóstico é feito a partir de anamnese, exames laboratoriais e de imagens. Os exames necessários são a dosagem de cortisol entre 6 e 8 horas da manhã, dosagem de ACTH7 e eletrólitos (sódio e potássio, principalmente). ACTH elevado associado a dosagem baixa de cortisol, baixa ou normal de sódio e/ou potássio é compatível com insuficiência adrenal primária. Podem-se solicitar anticorpos contra 21-hidroxilase se houver possibilidade de lesão autoimune e exames de imagem (tomografia computadorizada de abdome) para descartar tumor ou infecção,7 que pode evidenciar infarto e hemorragia, situações compatíveis com infecção por Covid-19. Ao contrário do que é citado em literatura, o paciente relatado acima não apresentou imagens compatíveis com infarto ou hemorragia em adrenais, sendo seu diagnóstico definido pela clínica e exames laboratoriais.
O tratamento da insuficiência adrenal objetiva mimetizar o ciclo fisiológico do cortisol. Assim, a hidrocortisona é o medicamento usado em primeira linha, tanto na crise adrenal quanto na manutenção. Ela tem meia-vida curta, alcança o pico de ação plasmática rapidamente e possui menos efeitos colaterais que outros glicocorticoides.7 Para seguimento, não se recomenda a dosagem de cortisol, mas apenas a avaliação de crescimento pondero-estatural.
No longo prazo, estudos mostraram que, após três meses da infecção por Covid-19, aproximadamente 50% dos pacientes com insuficiência adrenal continuaram a apresentar hipocortisolismo; destes, dois terços resolveram em um ano.8 Assim, faz-se necessário o seguimento para avaliar a resposta à terapêutica e observar possíveis complicações.
CONCLUSÃO
A pandemia de Covid-19, desde 2019, vem mostrando que o vírus não acomete apenas o trato respiratório, mas também outros sistemas, como o endocrinológico. O impacto que essa doença causa na saúde da população continua sendo objeto de estudo, sendo a insuficiência adrenal uma delas.
Este relato teve o objetivo de elucidar o diagnóstico de insuficiência adrenal após infecção por Covid-19 em escolar que já havia apresentado internação pelo mesmo quadro, mas sem diagnóstico definitivo. O paciente apresentava clínica e exames laboratoriais compatíveis, mas não imagens associadas à infecção por coronavírus.
O tema, apesar de pouco abordado, é de grande relevância na prática clínica pediátrica, pela necessidade de diagnóstico e tratamento precoces e, o mais importante, visto que a pandemia ainda não acabou.
REFERÊNCIAS
1. Lisco, G.; De Tullio, A.; Stragapede, A.; Solimando, A.G.; Albanese, F.; Capobianco, M.; Giagulli, V.A.; Guastamacchia, E.; De Pergola, G.; Vacca, A.; et al. COVID-19 and the Endocrine System: A Comprehensive Review on the Theme. J Clin Med. 2021 Jun 29;10(13):2920. doi: 10.3390/jcm10132920.
2. Somasundaram NP, Ranathunga I, Ratnasamy V, Wijewickrama PSA, Dissanayake HA, Yogendranathan N, Gamage KKK, de Silva NL, Sumanatilleke M, Katulanda P, Grossman AB. The Impact of SARS-Cov-2 Virus Infection on the Endocrine System. J Endocr Soc. 2020 Jul 2;4(8):bvaa082. doi: 10.1210/jendso/bvaa082. eCollection 2020 Aug 1.
3. Sánchez J, Cohen M, Zapater JL, Eisenberg Y. Primary Adrenal Insufficiency After COVID-19 Infection. AACE Clin Case Rep. 2022 Mar-Apr;8(2):51-53. doi: 10.1016/j.aace.2021.11.001. Epub 2021 Nov 14. PMID: 34805497; PMCID: PMC8590605.
4. Sánchez J, Cohen M, Zapater JL, Eisenberg Y. Primary Adrenal Insufficiency After COVID-19 Infection. AACE Clin Case Rep. 2022 Mar-Apr;8(2):51-53. doi: 10.1016/j.aace.2021.11.001. Epub 2021 Nov 14.
5. Kanczkowski W, Gaba WH, Krone N, Varga Z, Beuschlein F, Hantel C, Andoniadou C, Bornstein SR. Adrenal Gland Function and Dysfunction During COVID-19. Horm Metab Res. 2022 Aug;54(8):532-539. doi: 10.1055/a-1873-2150. Epub 2022 Aug 9.
6. Akbas EM, Akbas N. COVID-19, adrenal gland, glucocorticoids, and adrenal insufficiency. Biomed Pap Med Fac Univ Palacky Olomouc Czech Repub. 2021 Mar;165(1):1-7. doi: 10.5507/bp.2021.011. Epub 2021 Feb 4.
7. Nisticò D, Bossini B, Benvenuto S, Pellegrin MC, Tornese G. Pediatric Adrenal Insufficiency: Challenges and Solutions. Ther Clin Risk Manag. 2022 Jan 11;18:47-60. doi: 10.2147/TCRM.S294065. eCollection 2022.
8. Hashim M, Athar S, Gaba WH. New onset adrenal insufficiency in a patient with COVID-19. BMJ Case Rep. 2021 Jan 18;14(1):e237690. doi: 10.1136/bcr-2020-237690.