Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 24(1) - Março 2024

Artigo Original

Análise Clínica e Epidemiológica de Pacientes com Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) nos anos de 2020 e 2021 em Hospital de Referência do Sul do Brasil

Clinical and Epidemiological Analysis of Patients with Pediatric Multisystem Inflammatory Syndrome (MIS-C) in the years 2020 and 2021 in a Reference Hospital in Southern Brazil

 

Bruno Leite Goulart1; Emanuela Rocha Carvalho2,3

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v24i1p01-08

1. Universidade Federal de Santa Catarina, Acadêmico Graduação em Medicina - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
2. Universidade Federal de Santa Catarina, Docente Departamento Pediatria - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil
3. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Médica Infectologista Pediátrica - Florianópolis - Santa Catarina - Brasil

 

Endereço para correspondência:

Emanuela Rocha Carvalho
emanuela.carvalho@ufsc.br

Instituição: Universidade Federal de Santa Catarina

Recebido em: 15/08/2023
Aprovado em: 16/12/2023

 

Resumo

INTRODUÇÃO: A síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) é uma condição inflamatória de caráter pós-infeccioso de grande preocupação em pacientes pediátricos infectados pelo SARS-CoV-2, pois pode causar choque e óbito.
OBJETIVO: Descrever aspectos clínicos e epidemiológicos dos pacientes internados por SIM-P em hospital pediátrico de referência no Sul do Brasil.
MÉTODOS: Estudo observacional, descritivo. Avaliaram-se dados clínicos e epidemiológicos de 33 prontuários de crianças e adolescentes internados com SIM-P em hospital pediátrico nos anos de 2020 e 2021. Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da instituição.
RESULTADOS: A cor prevalente foi branca com 90,8% dos casos, com mediana de idade de 6 anos e 7 meses, do sexo masculino (54,5%), provenientes da Grande Florianópolis (78,8%), com predominância de sintomas gastrointestinais. Apenas 9% dos casos apresentavam comorbidades; 51,5% necessitaram de cuidados intensivos e todos receberam avaliação ecocardiográfica. As alterações ecocardiográficas mais frequentes foram: derrame pericárdico laminar, sem repercussão hemodinâmica em [N=6 (18,2%)]. O desfecho mais comum foi alta recuperado [N=25 (75,8%)]; alta com alteração ecocardiográfica [N=6 (18,2%)] e [N=2 (6,1%)] óbito.
CONCLUSÃO: O estudo evidenciou que o perfil epidemiológico dos pacientes estudados é condizente com o encontrado em âmbito nacional e internacional. A sintomatologia apresentada pelos pacientes à admissão está em consonância com os estudos mais recentes, visto que há predominância de sintomas gastrointestinais. Os desfechos encontrados apresentaram taxas semelhantes ao registrado no país durante o período.

Palavras-chave: Síndrome Pós-Covid-19 Aguda. Criança Hospitalizada. Epidemiologia Descritiva.


Abstract

INTRODUCTION: Pediatric Multisystem Inflammatory Syndrome temporally associated with COVID-19 (MIS-C) is a post-infectious inflammatory condition that elicits high concerns in pediatric patients infected by SARS-CoV 2, due to its risk of causing shock and death.
OBJECTIVE: Describe clinical and epidemiological aspects of patients with MIS-C in a tertiary pediatric hospital in southern Brazil.
METHODS: Observational, descriptive, and individualized study. Clinical and epidemiological data from 33 medical records of children and adolescents hospitalized with MIS-C in a pediatric hospital in the years 2020 and 2021 were evaluated. The study was approved by the Research Ethics Committee of the hospital.
RESULTS: Most patients were white (90.8%), males (54.5%), with a median age of 6 years and 7 months, with predominance of gastrointestinal symptoms. Only 9% of the cases had comorbidities, 51.5% required intensive care and all received echocardiographic evaluation. The most frequent echocardiographic finding was laminar pericardial effusion, without hemodynamic repercussions [N=6 (18.2%)]. The most common outcome was complete recovery [N=25 (75.8%)], although deaths [N=2 (6.1%)] occurred.
CONCLUSION: The article showed agreement between the epidemiological profile of the analyzed patients and the findings described in other national and international studies. The symptoms presented at admission are also coherent with the most recent studies, due to a predominance of gastrointestinal symptoms. The outcomes are also aligned with those registered in the country in the period of the study.

Keywords: Post-Acute COVID-19 Syndrome. Child, Hospitalized. Epidemiology, Descriptive.

 

INTRODUÇÃO

Durante o início da pandemia de Covid-19, houve grande incerteza acerca do impacto da doença sobre a saúde de crianças e adolescentes. Percebeu-se, em um primeiro momento, que a população pediátrica desenvolvia doença leve em comparação à população adulta, o que foi confirmado com a publicação de estudos mais robustos ainda no início de 2020.1,2 Houve, contudo, aumento considerável das internações pediátricas no Reino Unido entre os meses de março e maio de 2020, por vezes com necessidade de cuidados intensivos devido à evolução desfavorável dos casos. Os pacientes internados apresentavam em comum febre persistente associada a sintomas majoritariamente gastrointestinais, mas também outras manifestações como hiperemia conjuntival bilateral não purulenta, linfonodomegalia, inflamação mucocutânea, miocardite, aneurismas de coronária e, nos casos mais graves, choque. O conjunto de sintomas apresentado pelos pacientes rapidamente chamou a atenção devido à semelhança com a síndrome de Kawasaki, condição inflamatória multissistêmica descrita em 1961 pelo pediatra japonês Tomisaku Kawasaki.3 A escalada de casos de padrão "Kawasaki-like" levou o NHS (National Health System - sistema de saúde inglês) a publicar um alerta em abril de 2020, no qual destacava o surgimento da condição e orientava que pacientes que apresentassem os sintomas referidos fossem observados em ambiente de cuidados intensivos.

Observou-se, à época, que todos os pacientes internados com a síndrome Kawasaki-like possuíam história de diagnóstico ou contato com caso confirmado de Covid-19 nas 4 a 6 semanas prévias à internação. Por essas características, a nova entidade passou a ser chamada de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), em inglês "Multisystem Inflammatory Syndrome in Children (MIS-C)" ou síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporalmente associada à Covid-19, em inglês "Pediatric Multisystem Inflammatory Syndrome temporally associated with COVID-19 (PIMS-TS).4

Os sintomas do primeiro caso notificado no Brasil tiveram início em março de 2020. No mesmo ano, foram registrados 747 casos e em 2021 foram notificados 824 casos confirmados. Até julho de 2023, período correspondente à semana epidemiológica 22 de 2023, foram notificados 2.064 casos de SIM-P. Dos casos confirmados, houve 140 óbitos, o que configura uma taxa de letalidade de 6,8%. Dos óbitos registrados, 50 iniciaram sintomas em 2020, 53 em 2021 e 37 em 2022 (SE 22 de 2023). Não foram registrados óbitos por SIM-P no ano de 2023 até o mês de julho.5

Este estudo pretende fornecer informações clínicas e laboratoriais referentes aos pacientes internados com SIM-P em um hospital terciário público de atendimento pediátrico de referência no estado de Santa Catarina, no sul do Brasil, ao longo dos anos de 2020 e 2021, com o intuito de permitir o melhor reconhecimento e manejo da condição.

 

MÉTODO

Desenho do estudo: realizou-se estudo observacional, descritivo, retrospectivo com dados sobre os casos de SIM-P internados na instituição entre 01/01/2020 e 31/12/2021. A análise retrospectiva foi feita com base na revisão de prontuários e de exames complementares. A amostra do estudo é de 33 casos. O estudo foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob parecer 4.594.340.

Critérios de inclusão: foram incluídos pacientes com idade de até 15 anos incompletos que preenchessem critérios para SIM-P do Ministério da Saúde6 ou do Royal College of Pediatrics and Child Health (RCPCH).7 Os critérios são idade de 0 a 19 anos, com febre por três ou mais dias + elevação de marcadores inflamatórios (VHS, PCR ou pró-calcitonina) + pelo menos duas das seguintes alterações (rash ou conjuntivite bilateral não purulenta ou sinais inflamatórios mucocutâneos ou hipotensão/choque ou achados de disfunção miocárdica, pericardite, valvulite, ou alterações coronarianas; ecocardiográficas ou elevação da troponina ou fragmento N-terminal proBNP (NT-proBNP) ou evidência de coagulopatia (TAP, TTPa e D-dímero) ou sintomas gastrointestinais (diarreia, vômitos ou dor abdominal), sem outra causa microbiológica evidente de inflamação, incluindo sepse bacteriana, síndrome do choque tóxico + evidência de SARS-CoV-2 ou contato provável com pacientes com Covid-19. Foram avaliados dados:

• Demográficos: sexo, cor, microrregião de origem no estado de Santa Catarina, idade em meses, classificação da faixa etária8 (neonato, lactente, pré-escolar, escolar, adolescente).

• Epidemiológicos: tipo de evidência de infecção por Covid-19 (RT-PCR, teste rápido ou vínculo epidemiológico).

• Clínicos: dias de sintomas na admissão, sintomas na admissão (febre, coriza, tosse, odinofagia, dispneia, mialgia, dor abdominal, vômitos, diarreia, ageusia, anosmia, fadiga, cefaleia, exantema, hiperemia ocular, lombalgia, edema e eritema de mãos e pés, hiporexia, mucosite, ascite e linfonodomegalia cervical).

• Internação: tempo (dias) de internação, saturação de oxigênio na admissão, necessidade de internação em unidade de terapia intensiva, tempo (dias) de internação em unidade de terapia intensiva.

• Terapêutica: tratamento recebido durante a internação (corticoide, pulsoterapia, imunoglobulina endovenosa, antibioticoterapia, heparina em dose profilática, heparina em dose terapêutica, vasopressor, vitaminas, zinco, ácido acetilsalicílico), necessidade de suporte de oxigênio na internação, tipo de suporte de oxigênio na internação.

• Comorbidades: (diabetes mellitus tipo 1, cardiopatias, encefalopatias, doenças genéticas, SIDA, imunodeficiências primárias, doença renal crônica, neoplasias, pneumopatias).

• Exames laboratoriais coletados na admissão (hemoglobina, hematócrito, contagem de leucócitos,9 contagem de plaquetas,10 D-dímero, proteína C reativa,11 velocidade de hemossedimentação, ureia, creatinina, albumina, aminotransferases - TGO [AST] e TGP [ALT]).

• Exames de imagem: ecocardiograma e suas alterações, raio X de tórax e suas alterações e ultrassonografia de abdome e suas alterações.

• Desfecho: alta melhorado, alta com sequelas, óbito e especialidade de seguimento ambulatorial.

Os dados coletados foram inseridos no software SPSS Statistics versão 29.0.0. 0. As variáveis quantitativas foram descritas em mediana (máximo e mínimo), média e desvio padrão; enquanto para as variáveis qualitativas utilizou-se frequência e porcentagem. Para diferenciação dos desfechos foi calculado o odds ratio.

Considerações éticas: não há conflitos de interesse.

 

RESULTADOS

Após aplicação dos critérios de inclusão e exclusão, foram analisados 33 prontuários de crianças internadas no hospital pediátrico de referência.

Dados demográficos

Dos casos estudados, 18 são do sexo masculino (54,5%). A mediana de idade em meses encontrada foi de 55 meses, o que corresponde a 6 anos e 7 meses de idade. Não foram registrados casos de neonatos acometidos pela doença no período. Em relação à mesorregião do Estado de Santa Catarina de origem dos pacientes, 78,8% eram oriundos da Grande Florianópolis, 12,1% do Vale do Itajaí e 9,1% do Sul do Estado. Não foram registrados casos provenientes da região Serrana ou do Oeste Catarinense no estudo. Em relação à cor, os brancos representavam 90,9% dos casos, pretos representavam 6,1% e pardos 3% dos casos. A Tabela 1 expõe os demais dados.

 

 

Método de detecção do SARS-COV-2

Dos prontuários analisados, 66,7% apresentavam teste rápido para SARSCOV-2 reagente, enquanto aqueles que apresentavam RT-PCR reagente representaram 18,2% e aqueles que apresentavam teste rápido e RT-PCR não reagentes, mas que possuíam vínculo epidemiológico com casos confirmados de Covid-19 representaram 15,2% dos casos.

Comorbidades e sintomas

Em relação às comorbidades, três (9,1%) apresentavam alguma doença de base, individualmente acometendo cada paciente: hidrocefalia, anemia falciforme padrão SS e leucemia linfoblástica aguda.

No que se refere ao número de dias de sintomas no momento da admissão, os casos variaram de 2 a 21 dias de sintomas. A mediana foi de 5 dias de início dos sintomas no momento da admissão. O Gráfico 1 aponta os sintomas mais referidos no momento da admissão. Outros sintomas registrados no momento da admissão, todos em frequência inferior a 10% dos casos, foram linfonodomegalia cervical, ascite, hiporexia, anosmia, ageusia, lombalgia, dispneia e mialgia.

 

 

Características da internação

Quanto ao tempo de internação, quatro casos (12,1%) ficaram internados pelo intervalo de 1-3 dias. Aqueles que necessitaram de internação por 4-6 dias foram 39,4% do total; os que permaneceram internados por 7-10 dias representaram 18,2% do total; e aqueles com mais de 10 dias representaram 30,3% dos casos estudados. De toda a casuística, 17 (51,5%) necessitaram de internação em unidade de terapia intensiva pediátrica. O tempo médio de internação em terapia intensiva foi de 5,29 dias, enquanto a mediana foi 5. O tempo de permanência em unidade de terapia intensiva é estudado em comparação ao desfecho (alta recuperado, alta com alteração ecocardiográfica e óbito) na Tabela 2. Dos 17 pacientes que necessitaram de cuidados intensivos, três (9,1%) permaneceram 1-3 dias na UTI, 9 (27,3%) 4-6 dias, 1 (3%) ficou 7-10 dias e 4 (12,1%) necessitaram de cuidados intensivos por mais de 10 dias.

 

 

Tratamento

Em relação ao tratamento recebido durante a internação, 20 casos (60,6%) receberam corticoide endovenoso; 26 (78,8%) imunoglobulina endovenosa; 25 (75,8%) antibioticoterapia empírica (cefalosporina de terceira geração com lincosamida ou cefalosporina de terceira geração e beta lactâmico). Houve necessidade de uso de vasopressor em 9 (27,3%) casos. O uso de ácido acetilsalicílico foi registrado em 25 (75,8%) pacientes. Em relação ao uso de oxigênio suplementar, foram registrados 11 (33,3%) casos em que houve necessidade de suporte ventilatório. Destes, 4 (12,1%) necessitaram de cânula nasal de oxigênio; 3 (9,1%) de máscara não reinalante e 5 (15,2%) foram submetidos à intubação orotraqueal.

Exames complementares

Os exames laboratoriais dos pacientes ajustados para a idade estão apresentados na Tabela 3. Outros exames, como de função renal ou hepática, não apresentaram alterações significativas na totalidade dos pacientes. Todos os pacientes do estudo foram submetidos a uma avaliação ecocardiográfica durante a internação. Dos 33 casos, 17 (51,5%) apresentaram alguma alteração no ecocardiograma transtorácico. As alterações mais prevalentes foram: presença de derrame pericárdico laminar, sem repercussão hemodinâmica em 6 (18,2%) casos, dilatação/distensão de coronárias em 3 (9,1%) e disfunção miocárdica sistólica e/ou diastólica em 3 (9,1%). Em relação aos exames de imagem, 20 casos (60,6%) foram submetidos a uma avaliação radiológica do tórax. Destes, 4 (12,1%) tiveram alterações compatíveis com derrame pleural. Na avaliação ultrassonográfica do abdome, realizada em 15 (45,5%) casos, foram encontradas alterações em 9 (27,3%). As alterações mais frequentes do exame foram: ascite em 4 (12,1%), hepatoesplenomegalia em 4 (12,1%) e linfonodomegalia em 3 (9,1%) casos. Foi relatado em prontuário nefromegalia bilateral em 1 (3%) paciente.

 

 

Desfecho

Em relação ao desfecho, 25 (75,8%) pacientes tiveram alta recuperados, 6 (18,2%) tiveram alta com alteração ecocardiográfica e 2 (6,1%) foram a óbito. Todos os pacientes tiveram consulta de retorno ambulatorial marcada após a alta. A infectologia fez o follow up de 28 (84,8%) dos pacientes, enquanto a nefrologia acompanhou um (3%) após a alta. Além dos dois óbitos registrados, outros 2 (6,1%) pacientes perderam seguimento ambulatorial.

 

DISCUSSÃO

De acordo com os resultados demográficos dos casos analisados, houve predominância de indivíduos do sexo masculino (54,5%), em consonância com a literatura12 atual. Em relação à faixa etária, houve acometimento predominante em crianças de 2-9 anos, que somaram 75,8% dos casos, em conformidade com os dados epidemiológicos do Boletim Epidemiológico Especial: Covid-19, número 153, emitido pelo Ministério da Saúde, que relata que a faixa etária em questão acumulou porcentagem de 67,3% das notificações realizadas durante a pandemia. A mediana de idade dos pacientes avaliados no estudo foi de 6 anos e 7 meses, discretamente superior à relatada no Brasil no período pelo mesmo Boletim, que foi de 5 anos. Dados da literatura internacional, no entanto, mostram predomínio da SIM-P em crianças entre 5 e 13 anos, com mediana de idade de 9 anos (CDC, 2022). A mediana de idade dos casos do estudo é menor que a mediana mundial, muito provavelmente devido ao perfil dos pacientes estudados no hospital pediátrico, que atende apenas pacientes até os 15 anos incompletos. A ausência de pacientes com maior idade no estudo pode ter colaborado para que a mediana encontrada fosse menor que a mediana vista no restante do mundo.

A cor dos pacientes estudados foi, em sua maioria, branca (90,9%). Esse resultado está em desacordo com as informações mais atualizadas sobre SIM-P, em especial se levarmos em conta os dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, que demonstram que a proporção de casos é maior em pacientes pretos, latinos e brancos obesos.13 Pode haver viés, portanto, devido à categorização em relação à cor feita pelos trabalhos internacionais, que diferencia as populações em "latinos" e "brancos". Levando em conta que o estudo foi realizado na América Latina, a diferenciação da cor dos pacientes entre "latinos" ou "brancos" é limitada. Além disso, o Estado de Santa Catarina, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, apresenta composição étnica de 81,4% de brancos, 14,7% de pardos e 3,4% de pretos, enquanto a população brasileira geral é composta por 42,7% brancos, 46,8% pardos, 9,4% pretos e 1,1% amarelos ou indígenas.14 Essa diferença na composição populacional entre o estado e o restante do país justifica a diferença também encontrada em relação ao perfil de internações por SIM-P que, em nível nacional, registrou 719 (37,9%) casos em brancos, 663 (34,9%) em pardos e 83 (4,4%) em pretos. Houve ainda 423 (22,3%) dos casos sem informações referentes à cor dos pacientes.

Ao contrário do que preconiza a literatura,17 a qual refere que até 40% dos pacientes podem demonstrar algum tipo de comorbidade, apenas 3 (9,1%) casos estudados por este artigo apresentavam doenças prévias. Os casos com comorbidades apresentaram desfechos piores que os demais. Dos que apresentavam comorbidades, um paciente evoluiu com choque cardiogênico e posterior óbito, e dois casos obtiveram alta hospitalar com alterações ecocardiográficas. Os pacientes com alterações foram acompanhados em ambulatórios especializados de cardiologia e normalizaram suas funções cardíacas nos ecocardiogramas subsequentes. Esse dado reforça a importância da vacinação infantil para Covid-19, que protege também contra o desenvolvimento de SIM-P,18 principalmente no contexto de pacientes de risco, como aqueles com comorbidades. Ressalta-se que, no momento do estudo, não havia vacinas disponíveis no Brasil para os grupos etários pediátricos.

Os sintomas mais apresentados à admissão foram febre associada a manifestações majoritariamente gastrointestinais, principalmente no sexo feminino. No masculino, destaca-se a apresentação de exantema ("rash") com maior frequência quando comparada às manifestações gastrointestinais. Os demais sintomas apresentados em menor frequência e citados no Gráfico 1 são condizentes com aqueles que são demonstrados nas revisões sistemáticas mais recentes.19 A predominância de sintomas gastrointestinais (em especial a dor abdominal) diferencia, em parte, a SIM-P da doença de Kawasaki (DK). A presença de disfunção miocárdica e choque ocorre mais comumente na SIM-P em comparação com DK, apesar de tais achados também serem encontrados na síndrome do choque da doença de Kawasaki.20 Os aneurismas de coronárias, classicamente relatados na DK, tendem a ser menos frequentes e a evoluir mais rapidamente para resolução na SIM-P.21,22

As alterações dos exames laboratoriais encontradas são condizentes com a literatura23,24 estudada. Linfocitopenia, trombocitopenia, neutrofilia e anemia foram achados encontrados no estudo. Além disso, as provas inflamatórias (proteína C reativa e velocidade de hemossedimentação) encontravam-se aumentadas em mais de 4 vezes o limite superior da normalidade em 100% dos pacientes estudados. Isso reforça a tese de que a SIM-P é uma manifestação inflamatória tardia, pós-infecciosa,25 que representa a maior preocupação em relação à infecção pelo SARS-CoV 2 na população pediátrica.26

A maioria dos casos (75,8%) recebeu alta com recuperação total. No entanto, 18,2% dos pacientes ainda possuíam alterações ecocardiográficas no momento da alta hospitalar. Esses pacientes tiveram follow-up com a equipe da infectologia pediátrica do hospital e todos apresentaram melhora dos parâmetros cardíacos nos exames de ecocardiogramas subsequentes realizados pelos cardiologistas da instituição. A porcentagem de casos que obtiveram alta com alteração ecocardiográfica muito se assemelha ao descrito na literatura,31 assim como a melhora dos parâmetros em consultas seguintes também é bem descrita. O estudo registrou dois óbitos (6,1%), sendo um caso de adolescente sem comorbidades e um escolar com leucemia linfoblástica aguda. Há descrição na literatura22 de pior prognóstico em pacientes com idade entre 16-20 anos quando comparados a pacientes de 6-11 anos. Também é pior o prognóstico em pacientes com ao menos uma comorbidade, em especial disfunções neurológicas ou outras comorbidades não cardíacas. No Brasil, a mortalidade por SIM-P (n = 2.064) é de 6,7% (n = 140).5 De acordo com os dados do CDC, a mortalidade por SIM-P nos Estados Unidos (n = 7.400) é menor que 1% (n = 63).23 O artigo, apesar do número de casos, registrou taxa de mortalidade, condizente com o contexto clínico e epidemiológico no qual o hospital está inserido.

As principais limitações do estudo são inerentes ao caráter da pesquisa retrospectiva e casuística reduzida, o qual limita a aplicação de testes estatísticos com maior robustez. Sugerem-se pesquisas futuras com delineamento prospectivo. O tema, contudo, ainda é novo e segue como objeto de estudo por todo o mundo, principalmente em relação à sua fisiopatologia. Novas descobertas a respeito da etiologia e da fisiopatologia podem proporcionar melhores condições para tratamento da doença, que, como visto no artigo, pode ser grave e potencialmente fatal se não receber terapêutica eficaz e em tempo oportuno.

 

CONCLUSÃO

O perfil epidemiológico dos casos de SIM-P internados no hospital pediátrico de referência no sul do Brasil é, portanto, compatível com outras amostras presentes na literatura. Houve maior frequência de pacientes do sexo masculino, brancos, da faixa etária pré-escolar e escolar, assim como predominância de sintomas gastrointestinais na admissão. Além disso, registraram-se provas inflamatórias elevadas e ecocardiogramas majoritariamente alterados na internação, mas com melhora total dos parâmetros cardíacos nas consultas de follow-up. Os desfechos encontrados apresentaram taxas semelhantes ao registrado no país durante o período.

Os dados da presente pesquisa serão importantes para melhor reconhecimento da condição pelos pediatras gerais, assim como auxiliam a avaliar o impacto da vacinação para Covid-19 em crianças, visto que ainda não existiam imunizantes disponíveis para os grupos etários estudados durante o estudo.

 

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