Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 23(2) - Junho 2023

Artigo Original

Manifestações pulmonares em crianças e adolescentes hospitalizados com suspeita de Covid-19: um estudo caso-controle

Pulmonary involvement in children and adolescents hospitalized with suspected COVID-19: a case-control study

 

Rafaela Baroni Aurilio1; Ana Alice Amaral Ibiapina Parente1; Cláudia Renata Rezende Penna1; Giuliana Pucarelli Lebreiro1; Maria de Fátima Bazhuni Pombo Sant'Anna1; Cristina Barroso Hofer1; Carolina Pereira Lima Perlingeiro1; Maria Mariana Correa De-Sá1; Ruy Tamoio Vendas Rodrigues-Neto1; Maurício Andrade Pérez2; Clemax Couto Sant´Anna1

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v23i2p56-61

1. Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

 

Endereço para correspondência:

rafabaroni@yahoo.com.br

Recebido em: 13/02/2023
Aprovado em: 01/06/2023

 

Resumo

INTRODUÇÃO: Estudos sobre os achados radiológicos de tórax da Covid-19 em pacientes pediátricos são escassos. A maioria descreve um padrão inespecífico com espessamento peribrônquico e consolidações uni ou bilaterais, eventualmente.
OBJETIVO: Este estudo descreve o padrão radiográfico em crianças hospitalizadas durante a pandemia de SARS-CoV-2.
MÉTODOS: Trata-se de um estudo caso-controle no Rio de Janeiro, Brasil, com crianças e adolescentes de 0 a 16 anos internados com síndrome gripal ou SARS no período de abril a outubro de 2020. Foram realizados swab nasofaríngeo e/ou sorologia de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR). Os casos foram definidos como pacientes com RT-PCR para SARS-COV2 positivo ou indeterminado e pacientes controles com RT-PCR indetectável. A radiografia foi avaliada cegamente por um radiologista pediátrico. Foram realizadas análise descritiva e análise bivariada (teste t de Student p < 0,05).
RESULTADOS: Foram estudados 36 casos e 182 controles. As alterações radiográficas não se associaram significativamente entre os casos e os controles. A frequência nas anormalidades radiográficas observadas no grupo controle (50/182 - 27,5%) foi maior quando comparada com a radiografia de tórax nos casos (6/36 - 16,7%) [p=0,18].
CONCLUSÕES: Não houve diferença na frequência de comorbidades e padrões radiográficos entre casos e controles; no entanto, o tempo de internação dos casos foi superior ao dos controles.

Palavras-chave: SARS-CoV-2. Radiografia Torácica. Pandemias. Pediatria. Epidemiologia Analítica


Abstract

INTRODUCTION: Studies on chest radiological (X-ray) findings of COVID-19 in pediatric patients are scarce. The majority show a nonspecific pattern. However, peribronchial thickening and uni- or bilateral consolidations are described as well.
OBJECTIVE: This study describes x-ray pattern in hospitalized children during SARS-CoV-2 pandemic.
METHODS: This is a case-control study in Rio de Janeiro, Brazil, with children and adolescents aged 0 to 16 years old hospitalized with flu-like syndrome or SARS from April to October 2020. Nasopharyngeal swab and/or serology polymerase chain reaction (RT- PCR) were performed. Cases were defined as patients with RT-PCR for SARS-COV2 positive or undetermined and controls patients with RT-PCR undetectable. X-ray was blindly evaluated by a pediatric radiologist. Descriptive analysis and bivariate analysis were performed (Students t test significant p < 0.05).
RESULTS: A total of 36 cases and 182 controls were studied. X-ray alterations were not significantly associated between cases and the controls. The frequency in X-ray abnormalities observed in the control group (50/182 - 27.5%) was higher, when compared with the chest x-ray in cases (6/36 - 16.7%) [p=0.18].
CONCLUSIONS: There was no difference in the frequency of comorbidities and X-ray patterns between cases and controls; however, length of hospitalization of cases was higher than that of controls.

Keywords: SARS-CoV-2. Radiography, Thoracic. Pandemics. Pediatrics. Analytical Epidemiology

 

Introdução

Desde o início da pandemia de Covid-19, em março, até 30 de outubro de 2020, o Brasil registrou 5.224.362 casos. Na cidade do Rio de Janeiro, foram notificados 119.201289.569 casos, dos quais aproximadamente 5% compunham a população pediátrica (0 a 17 anos e 11 meses).1

A Covid-19 tem várias apresentações clínicas que podem levar ao envolvimento pulmonar grave com pneumonia ou SARS. As crianças apresentam expressões mais baixas dos receptores que facilitam a entrada do SARS-CoV-2 na célula (receptores da enzima conversora de angiotensina 2) o que dificulta a contaminação e a invasão do citoplasma celular pelo vírus. A resposta inflamatória excessiva contribui para a morbidade e gravidade da doença. Além disso, durante os primeiros anos de vida, as crianças têm contato com vários coronavírus, levando a uma resposta imune parcial2.

Estudos sobre achados radiológicos de tórax (radiografia) de COVID-19 em pacientes pediátricos são escassos3,4 principalmente porque os métodos diagnósticos por imagem são mais utilizados em crianças com quadros graves que necessitaram de internação, não sendo uma condição frequente em pediatria5,6. Os exames de imagem mostraram um padrão inespecífico, semelhante a outros vírus respiratórios. A principal alteração na radiografia simples de tórax foi espessamento peribrônquico, seguido de consolidações uni ou bilaterais5-7.

O objetivo deste estudo foi descrever o padrão radiográfico de tórax em um grupo de crianças hospitalizadas por doença respiratória durante a pandemia de SARS-CoV-2.

 

Métodos

Trata-se de um estudo caso-controle com crianças e adolescentes consecutivamente internados em um hospital pediátrico. O estudo foi realizado em um centro de referência em doenças infecciosas pediátricas do Rio de Janeiro, no período de 7 de abril a 18 de outubro de 2020. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa nº CAAE 30786020.4.0000.5264.

Foram incluídos os seguintes pacientes: 1) crianças e adolescentes de 0 a 16 anos; 2) hospitalizados com síndrome gripal ou SARS; e 3) submetidos a swab de nasofarínge e/ou sorologia de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) para SARS-CoV-2. Conforme rotina da instituição à época, todas as crianças hospitalizadas com SARS ou infecção respiratória superior realizaram RT-PCR 3 a 5 dias após o início dos sintomas. A extração do ácido nucleico foi realizada manualmente com o kit de extração Bio Gene Viral DNA/RNA (Bioclin). O RNA do SARS-CoV-2 foi detectado usando o CDC 2019-nCoV Real-Time RT-PCR Diagnostic Panel e o Bio-Manguinhos SARS-CoV-2 Molecular Kit no 7500 Real-Time PCR System (Applied BiosystemsT). A sorologia para SARS-CoV-2 foi realizada usando um imunoensaio de quimioluminescência (Kit Maglumi 2019 -nCOV IgG IgM). Todos os ensaios foram realizados de acordo com as instruções do fabricante. Os pacientes foram classificados como positivos (detectados ou indeterminados) ou negativos (não detectados)8.

Os casos foram definidos como pacientes com RT-PCR para SARS-COV2 positivo ou indeterminado, os controles foram os pacientes com RT-PCR para SARS-COV-2 indetectável. Casos e controles foram subdivididos em graves (internação em unidade de terapia intensiva, como necessidade de suplementação de oxigênio) e não graves (internação em pronto-socorro ou enfermaria).

As variáveis foram: febre (definida como temperatura axilar ≥38oC), diagnóstico de pneumonia estabelecido pelo médico assistente, tempo de internação (em dias), presença de comorbidades e alterações radiológicas do tórax.

As comorbidades foram agrupadas em: respiratórias, hematológicas, neurológicas e outras.

Os exames radiológicos foram avaliados cegamente por uma radiologista pediátrica com mais de 25 anos de experiência. As radiografias de tórax foram avaliadas no momento da internação do paciente quanto à presença de: padrão de espessamento intersticial e peribrônquico, padrão alveolar, atelectasia, derrame pleural, hiperinsuflação e adenopatia hilar.

Empregada e estatística descritiva com frequência e porcentagens; as variáveis contínuas foram descritas como média e desvio padrão. A análise bivariada foram realizada com o teste qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher, sempre que as frequências esperadas em qualquer célula da tabela fossem menores que cinco. A razão de chances com seu respectivo intervalo de confiança (IC) de 95% foi fornecida, para variáveis ​​contínuas, a análise bivariada foi realizada usando o teste t de Student. Os resultados foram considerados significativos quando p < 0,05.

 

Resultados

Foram estudados 36 casos e 182 controles, com idades variando de 0 a 16 anos. Havia 21/96 (21,9%) meninas e 15/122 (12,3%) meninos (p = 0,06). Houve mais casos em meninas do que em meninos, e essa diferença foi quase estatisticamente significativa (p = 0,06). Havia 9 (25%) pacientes graves entre o grupo caso e 30 (16,5%) entre os controles.

A permanência hospitalar foi semelhante entre os dois grupos de casos (grave = 16,9 ± 16,8; não grave = 15,8 ± 27,6), e ambos foram significativamente diferentes do grupo controle (8,4 ± 9,6, p < 0,03). Não houve diferença entre os casos graves e controles (p = 0,24). A média de idade dos dois grupos de casos combinados (grave e não grave) foi de 5,3 (±4,6) meses, comparada a 4,0 (±3,9) meses no grupo controle (p > 0,05). A febre ocorreu em 27/36 (75,0%) do total de casos, significativamente maior do que nos controles (90/182 [49,5%], p < 0,01).

Trinta casos apresentavam comorbidades. A análise das comorbidades não revelou diferença entre os casos e controles (Tabela 1). Além disso, buscamos possíveis diferenças entre pacientes sem, com uma e com duas ou mais comorbidades. A proporção de crianças com duas ou mais comorbidades no grupo caso tendeu a ser maior (5/36 [13,9%]) do que no grupo controle (12/182 [6,6%]); p = 0,14). Os principais grupos de comorbidades encontrados estão descritos na Tabela 1

 

 

A proporção de pacientes com pneumonia foi maior entre os casos (17/36 75,0%]; p < 0,01) e no subgrupo de casos graves (7/10 [70,0%]; p < 0,001) do que no grupo controle e subgrupo grave, respectivamente (43/182 [23,6%]).

As principais alterações radiológicas foram espessamento peribrônquico e padrão alveolar (pneumonia) em casos e controles. A maioria dos casos apresentou radiografia de tórax considerada normal (Tabela 2).

 

 

As alterações radiológicas não foram significativamente associadas entre os dois grupos e os controles. A frequência de alterações na radiografia de tórax observada no grupo controle (50/182 - 27,5%) apresentou tendência a ser maior, quando comparada com a radiografia de tórax no grupo caso (6/36 - 16,7%) [p=0,18].

A tomografia computadorizada (TC) de tórax foi realizada em dois pacientes (casos) com idades entre 8 e 12 anos, com leucemia linfocítica aguda e leucemia mieloide aguda, respectivamente. Ambos foram classificados como graves e os achados tomográficos foram os seguintes: opacidades em vidro fosco associadas a padrão intersticial intralobular em mosaico, com extensão de 50% a 75% do parênquima no primeiro paciente e padrão em vidro fosco periférico, algumas imagens nodulares com halo e uma imagem com aspecto de consolidação na região póstero-inferior do lobo inferior direito no segundo paciente.

 

Discussão

Este estudo envolveu crianças e adolescentes com ou sem comorbidades internados em um hospital terciário com diversas especialidades pediátricas. É um dos poucos estudos até o momento avaliando a Covid-19 em uma população pediátrica com algum tipo de doença previamente diagnosticada.9 Não houve diferença na frequência de comorbidades e padrões radiológicos de tórax entre casos e controles; no entanto, o tempo de internação dos casos foi maior do que o dos controles.

Todos os indivíduos estudados foram hospitalizados com sintomas sugestivos de infecção por Covid-19. De acordo com a literatura, no entanto, a maioria dos pacientes pediátricos é oligossintomática e não requer internação.10 A maioria de nossos pacientes, positivos ou não para Covid-19, apresentava algum tipo de comorbidade, semelhante ao estudo de Serrano et al. em hospital terciário de Madri.5 Em ambos os estudos, as comorbidades não representaram fator de risco para maior gravidade da doença. Por outro lado, em adultos, de acordo com uma das maiores amostras publicadas, ter comorbidades é fator de risco para infecção e complicações da Covid-19.11

Em relação ao tempo de internação, os casos superaram os controles. Quando comparada com infecções causadas por outros vírus da mesma família (Sars-CoV e síndrome respiratória do Oriente Médio - MERS-CoV), a duração média da internação de um paciente internado por Covid-19 é semelhante às internações de pacientes com MERS e mais longos do que os de pacientes com SARS.12 Estudos em adultos sugerem diversos fatores que podem influenciar no tempo de internação por Covid-19. Dentre eles, destacam-se: obesidade e comorbidades, como hipertensão, diabetes e dislipidemia, e gravidade clínica na internação, como temperatura corporal elevada, comprometimento pulmonar extenso, dispneia e mialgia.13,14

Em nosso estudo, embora não tenha havido associação estatística na comparação dos grupos caso e controle em relação às alterações radiológicas, o padrão alveolar foi mais frequente nos casos, inclusive nos graves. Além disso, os controles tiveram maior frequência de alterações radiológicas do que os casos.

Poucos estudos sobre as alterações radiológicas sugestivas do diagnóstico de Covid-19 foram realizados na população pediátrica. Diferentemente de nossos resultados, Ugas-Charcape et al. descobriram que todas as radiografias de crianças com infecção por Covid-19 eram anormais; o principal achado foi o espessamento peribrônquico15. Palabiyik et al. analisaram retrospectivamente 177 radiografias de tórax, comparando-as com 74 TC de crianças com pneumonia associada à Covid-19. A TC não apresentou superioridade diagnóstica em relação à radiografia.16 Assim, como a apresentação clínica da pneumonia associada à Covid-19 costuma ser leve em crianças, a radiografia foi preferível à TC, devido à menor exposição à radiação. Esses autores relatam que os achados mais comuns na radiografia de tórax foram consolidação pulmonar unilateral (padrão alveolar) nos lobos inferiores. Na TC de tórax, havia consolidações em vidro fosco, principalmente em crianças que apresentavam quadros graves, semelhantes aos adultos. As lesões em vidro fosco são devidas a edema alveolar, exsudação e sangramento secundário à inflamação. As imagens de TC podem ser normais no início da doença.16,17

A TC de tórax na Covid-19 é realizada principalmente quando o achado radiológico requer maior investigação e é clinicamente indicado, pois os achados podem ser atípicos e com baixa especificidade em casos pediátricos.16,17 Seu uso é necessário em determinadas situações, como em pacientes com sintomas respiratórios agudos e achados laboratoriais sugestivos de gravidade, incluindo doença tromboembólica, resposta inadequada ao tratamento de suporte ou piora clínica esperada. A radiografia de tórax não é recomendada como método de triagem ou exame diagnóstico em pacientes pediátricos com suspeita de Covid-19 que apresentem sintomas leves ou sem indicação de internação.6,15,18 Assim, evita-se a exposição desnecessária da criança à radiação ionizante.

Uma das limitações do presente estudo foi que o diagnóstico de pneumonia foi clínico, embora esta prática seja comum em crianças, pois as diretrizes clínicas promovem avaliação e tratamento baseados em evidências usando uma abordagem sindrômica. Outra limitação foi a não avaliação do seguimento clínico desses pacientes, com o objetivo de avaliar possíveis complicações, como a síndrome inflamatória multissistêmica, uma vez que o referido estudo foi um retrato de um momento epidemiológico.19 Não conseguimos pesquisar outras etiologias específicas de infecções respiratórias além da Covid-19 em casos e controles também. Por outro lado, até onde sabemos, este é o primeiro estudo de caso-controle em crianças e adolescentes desenvolvido no momento mais crítico até o momento da pandemia de Covid-19 no Brasil.

Conclui-se que, supostamente, a radiografia do tórax não apresenta papel relevante na distinção entre o quadro de infecção pelo Covid-19 e por outras viroses respiratórias na infância. Futuros estudos multicêntricos podem ser conduzidos para melhor estabelecer o papel do diagnóstico por imagem na Covid-19 em pacientes pediátricos.

 

Agradecimentos

Ao funcionário administrativo Edilson Oliveira, pelo auxílio na busca dos prontuários.

 

Financiamento

CBH foi apoiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (bolsa 304476/2018-8) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (bolsas E26/200.843/2021 e E26 /201.317/2016); CCS foi apoiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (bolsa 302973/2019-2) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (bolsa E-26/ 010.001877/2019).

 

Referências

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