Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 22(3) - Setembro 2022

Relato de Caso

Malformação arteriovenosa da veia de galeno: uma rara causa de falência cardíaca no período neonatal - relato de caso

Arteriovenous malformation of galen vein: a rare cause of heart failure in the neonatal period - case report

 

Charbell Haddad Kury1; Cinthia Guimaraes Leandro2; Barbara Soares de Oliveira Souza3; Franci Mara Guarabu Scarpini2; Michele Silva Thomaz2; Vivian Beghini Correa2; Aline Reis Bereta2

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v22i2p149-153

1. Faculdade de Medicina de Campos, Saúde Coletiva - Campos dos Goytacazes - Rio de Janeiro - Brasil
2. Hospital Publico de Macaé - FMHM, UTI neonatal - Macae - Rio de Janeiro - Brasil
3. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Campus Macaé, Pediatria - Macaé - Rio de Janeiro - Brasil

 

Endereço para correspondência:

charbellkury@hotmail.com

Recebido em: 09/12/2021

Aprovado em: 23/05/2022

 

Resumo

INTRODUÇÃO:A malformação arteriovenosa da veia de Galeno (MAVG) representa cerca de 1% das malformações vasculares intracranianas, apresentando duas classificações de acordo com a localização da fístula: coroide e mural. O subtipo coroide é visto na maioria dos neonatos e comumente evolui com insuficiência cardíaca (IC) grave, associando-se a altas taxas de mortalidade neonatal.
OBJETIVO: Apresentar o caso de um recém-nascido (RN) que deu entrada em unidade de terapia intensiva com quadro de IC de difícil manejo secundária a MAVG.
DESCRIÇÃO DO CASO: RN com diagnóstico antenatal de MAVG por ecografia obstétrica, nascido as 40 semanas e 4 dias por parto cesáreo, Apgar 6 e 8, realizada reanimação neonatal com boa resposta. Após 48 horas de vida, evoluiu para IC de alto débito. Por agravamento clínico, foi necessário recorrer a ventilação mecânica e terapêutica com diuréticos e inotrópicos. RN evoluiu com taquicardia supraventricular no 7º dia de vida não responsiva a adenosina, necessitando de cardioversão elétrica. Faleceu ao 23º dia de vida.
DISCUSSÃO: A apresentação clínica da MAVG depende da idade em que a doença se manifesta. O paciente em questão apresentava uma MAVG do tipo coroide, causando disfunção cardíaca no RN precocemente. O manejo da IC nesse paciente é um desafio e perpassa a utilização de inotrópicos, vasodilatadores e diuréticos. A combinação desfavorável de MAVG com IC grave, associada a apresentação precoce dos sintomas, explica o motivo da deterioração rápida do quadro clínico desse paciente.de exames regulares para avaliar a progressão de lesões intrínsecas à esclerose tuberosa.

Palavras-chave: Malformações da Veia de Galeno. Insuficiência Cardíaca. Doenças do Recém-Nascido.


Abstract

INTRODUCTION: Vein of Galen arteriovenous malformation (VGAM) represents approximately 1% of intracranial vascular malformations and it is classified according to the location of the fistula: choroidal and mural. The choroidal subtype is mostly observed in newborns and commonly progresses to severe cardiac failure (CF), being associated with high rates of neonatal mortality.
OBJECTIVE:
To present the case of a newborn admitted to the intensive care unit with a difficult clinical picture of CF secondary to VGAM.
CASE REPORT: Newborn with a prenatal diagnosis of VGAM by obstetric ultrasound, born at 40 weeks and 4 days by cesarean section, Apgar 6 and 8, underwent neonatal resuscitation with good response. After 48 hours of life, the patient evolved to high output CF. Due to the worsening of the clinical conditions, it was necessary to resort to mechanical ventilation and therapy with diuretics and inotropic agents. On the 7th day of life, the patient evolved to supraventricular tachycardia that was non-responsive to adenosine, requiring electrical cardioversion. He died on the 23rd day of life.
DISCUSSION: The clinical presentation of VGAM depends on the age the disease manifests. The patient in this study had a choroid-type VGAM, causing early cardiac dysfunction in the newborn. Therefore, the management of his CF is a challenge that includes the administration of inotropic drugs, vasodilators, and diuretics. The unfavorable combination of VGAM with severe CF, associated with the early presentation of symptoms explains the rapid deterioration of the clinical condition of this patient.

Keywords: Vein of Galen Malformations. Heart Failure. Infant, Newborn, Diseases.

 

INTRODUÇÃO:

A malformação arteriovenosa da veia de Galeno (MAVG) representa cerca de 1% das malformações vasculares intracranianas, porém na idade pediátrica esse percentual pode-se elevar para cerca de 30%.1,2 Relatada pela primeira vez por Raybaud como uma malformação do plexo coroide embrionário, no qual ocorre uma dilatação acentuada da veia de Galeno, contendo múltiplas fístulas arteriovenosas que drenam para uma veia prosencefálica mediana denominada de veia de Markowski, um vaso embrionário normalmente ausente na vida adulta.3 A MAVG não apresenta etiologia definida e não tem relação com histórico familiar.3,4

A MAVG apresenta duas classificações, de acordo com a localização da fístula: coroide e mural. O subtipo coroide é visto na maioria dos neonatos e costuma evoluir com insuficiência cardíaca (IC) grave. Esse subtipo é composto por uma rede de vasos complexa, oriunda de artérias profundas do mesencéfalo que afluem para o local da fístula, geralmente encontrado no aspecto anterior da veia prosencefálica mediana. Algumas literaturas descrevem essas malformações como um labirinto arterial. A MAVG mural, por sua vez, é formada por fístulas arteriovenosas diretas únicas ou múltiplas que ocorrem na porção lateral da parede da veia prosencefálica mediana. Nesse subtipo, o menor número de vasos que chegam a lesão, explica o baixo grau de IC associada e, por esse motivo, observa-se a MAVG mural em crianças sem sintomas cardíacos.1,3

É importante ressaltar que esses dois subtipos devem ser individualizados da dilatação aneurismática da veia de Galeno. Essa dilatação ocorre por obstrução do fluxo sanguíneo, não sendo fruto de malformação congênita. Os pacientes com esse agravo podem apresentar déficits neurológicos focais, convulsões e hemorragias em decorrência do quadro de hipoperfusão sanguínea causado pela obstrução do fluxo. O surgimento dessas lesões é mais comum em crianças mais velhas e adultos.5

De acordo com a idade, podemos encontrar diversas apresentações da doença - os recém-nascidos geralmente apresentam IC de alto débito. Além de raramente a doença, também cursar com quadro de enterocolite necrosante - neste caso, secundária a uma hipoperfusão intestinal.2,6 Por sua vez, os lactentes costumam apresentar o aumento do perímetro cefálico e hidrocefalia; já os pré-escolares apresentam atraso no desenvolvimento, hidrocefalia e/ou convulsões. Por último, os escolares/adolescentes podem apresentar hemorragia subaracnóidea, cefaleia e/ou convulsões.6

A MAVG manifesta-se de diversas formas e cerca de 94% é diagnosticada no período neonatal, devido às manifestações de insuficiência cardíaca do recém-nascido.3 Vale ressaltar que a gravidade clínica é diretamente proporcional à gravidade da malformação.2,6 Nos quadros da doença que se relacionam com IC, a magnitude do desvio do débito cardíaco é proporcional ao tamanho da lesão, determinando a apresentação clínica do paciente. Estima-se que em lesões maiores, cerca de 50% a 60% do débito cardíaco pode ser desviado através desse shunt arteriovenoso.7 Segundo Kojmane et al., a MAVG é uma das raras causas de IC em recém-nascidos, porém a mortalidade neonatal associada a essa repercussão é estimada em mais de 90%.

 

DESCRIÇÃO DE CASO

Recém-nascido (RN) com diagnóstico antenatal de MAVG por ecografia obstétrica, nascido com idade gestacional de 40 semanas e 4 dias por parto cesáreo, com presença de líquido amniótico espesso. Apresentando Apgar 6 e 8 ao nascimento, sendo necessária a reanimação neonatal na sala de parto, evoluindo com boa resposta. Medidas antropométricas no nascimento: peso 3.460 kg, perímetro cefálico 35 cm. Após 48 horas de vida, evoluiu com IC de alto débito. Ao exame físico, apresentou sopro sistólico audível desde o nascimento e durante a evolução clínica também apresentou sopro audível em fontanela anterior e região cervical, além de hepatomegalia de 4 cm rebordo costal direita. Foi realizado ecocardiograma durante a internação na unidade de terapia intensiva neonatal, que demonstrou hipertensão pulmonar grave e aumento das câmaras direitas (figura 01), confirmando o diagnóstico de IC associada a MAVG.

 


Figura 01: Ecocardiograma com Doppler colorido
Imagem de ecocardiografia do neonato evidenciando aumento importante das cavidades à direita.

 

No 7º dia de vida, RN evoluiu com taquicardia supraventricular (TSV) não responsiva a adenosina, necessitando de cardioversão elétrica. Além disso, apresentou também convulsão e três paradas cardiorrespiratórias no 15º dia de vida. Por agravamento clínico, foi necessário recorrer a ventilação mecânica e terapêutica com restrição hídrica, diuréticos e inotrópicos e devido a gravidade do quadro e instabilidade clínica, RN foi à óbito no seu 23º dia de vida.

 

DISCUSSÃO

A apresentação clínica da MAVG depende da idade em que a doença se manifesta. O diagnóstico do caso descrito acima foi realizado no período fetal e, por este motivo, já se esperava que o RN apresentasse algum grau de comprometimento cardíaco ao nascimento. O diagnóstico prévio favoreceu para um melhor suporte ao nascimento, visto que foi programado o parto cesáreo e, assim, comunicada a necessidade da presença de uma equipe multidisciplinar para a assistência necessária ao neonato.

É importante ressaltar que, durante a vida intrauterina, a circulação uteroplacentária tem baixa resistência, compensando a circulação sanguínea nas malformações arteriovenosas. Ao nascimento, há maior resistência do fluxo sanguíneo sistêmico com a exclusão da circulação placentária e, com isso, o sangue conflui para malformação arteriovenosa cerebral, levando à diminuição da circulação sistêmica e à sobrecarga de volume no lado direito do coração, ou seja, desenvolve a IC.8,9

Observa-se que, no caso descrito, que o RN evoluiu com IC após 48 horas de vida. Sabe-se que o surgimento de sintomas precocemente, como o ocorrido neste caso clínico, impacta diretamente no prognóstico dos pacientes.8 Além da IC, o alto fluxo circulatório para a veia da MAVG pode causar hipertensão pulmonar persistente do RN, com grandes chances de óbito por falência de múltiplos órgãos. Ademais, outras manifestações podem ser encontradas, como acidose láctica grave, redução da perfusão miocárdica e, até mesmo isquemia.6

Nesse sentido, ao observar um RN com dilatação das cavidades cardíacas direita e IC, sem alterações na estrutura do coração, deve-se levantar-se como hipótese diagnóstica a MAVG. Vale ressaltar que essa população geralmente desenvolve a forma mais grave da doença, podendo ter associado a IC, o sopro craniano, como ocorrido no caso apresentado.8

Outro ponto importante é que a quantidade e o tamanho das fístulas encontrada na malformação arteriovenosa repercute no desenvolvimento da IC devido à pressão do shunt arteriovenoso presente.7 Segundo Kojmane et al., em casos de grande anomalia vascular, a cardiomegalia e a IC se desenvolvem mais cedo e podem levar à hidropsia. Já os efeitos cerebrais secundários a MAVG são causados tanto pelo efeito de massa quanto pelo fenômeno do roubo vascular cerebral, o que pode levar a hidrocefalia, infartos cerebrais e leucomalácia. A hidrocefalia também se apresenta como resultado da hipertensão venosa sistêmica na presença de um shunt arteriovenoso, causando má absorção do líquido cefalorraquidiano. Ainda que seja uma doença rara, apresenta uma semiologia muita rica, que corrobora seu diagnóstico.

No âmbito do diagnóstico por imagem, a ecografia pré-natal é essencial para a elucidação diagnóstica precoce. O exame detecta melhor as alterações a partir da 14ª semana de gestação.10 Sinais sugestivos de taquicardia fetal, insuficiência da tricúspide, extrassístoles supraventriculares e hiperpulsatilidade arterial dos vasos do polígono de Willis são algumas das alterações que podem ser observadas. Além dessas, a visualização de hidrocefalia e oligodrâmnio, apesar de serem manifestações mais comuns de surgirem por outros quadros, quando associadas a alterações cardíacas fetais, deve-se pensar em malformação vascular.4

Na imagem ultrassonográfica do aneurisma da veia de Galeno, visualiza-se uma imagem anecoica em raquete e pode ter uma ventriculomegalia secundária. A imagem em raquete corresponde à dilatação cística da veia e esta se encontra abaixo do terceiro ventrículo, na região mediana ou até mesmo um pouco desviada da região central. Para avaliar o fluxo turbulento dentro da dilatação cística, é preciso recorrer ao método Doppler colorido, no qual notará uma grande veia tubular em direção à região occipital.4,10

O tratamento da MAVG visa diminuir a resistência vascular sistêmica e pulmonar, otimizando a produção sistêmica e a função cardíaca. Para isso, é necessário haver, inicialmente, a estabilização cardiovascular, tratamento este que ainda é um desafio a ser alcançado, já que cerca de 50% dos pacientes seguem com gravidade mesmo em uso de um agente vasodilatador, associado ou não a um agente inotrópico em doses baixas a moderada.8 Segundo Andjenie et al., alguns pacientes podem se beneficiar do tratamento com prostaglandina E1. Dessa forma, o shunt ductal direita-esquerda é mantido, facilitando uma circulação sistêmica adequada.

Atualmente, o tratamento de escolha é a embolização por tratamento endovascular, a ser planejado, preferencialmente, após os 5 a 6 meses de idade. Quando a embolização é realizada antes de uma lesão cerebral importante, espera-se um melhor prognóstico do quadro.8 Com a terapia endovascular, evidenciou-se uma redução da mortalidade. Com isso, o procedimento cirúrgico é indicado para casos mais específicos.3

Sobre a terapia endovascular, o estudo de Lasjaunias e colaboradores, o maior estudo de embolização transarterial (216 pacientes) com MAVG, o óbito ocorreu em 10,6% dos pacientes, apesar da embolização, ou como resultado desse procedimento 4% tinham desenvolvimento neuropsicomotor normal, 15,6% apresentavam déficit cognitivo moderado e 10,4% apresentavam déficit cognitivo grave. A mortalidade neonatal foi de 52% em comparação com os 10,6% do conjunto de coorte.11

O RN descrito apresentou sinais de disfunção cardíaca e insuficiência respiratória nas primeiras horas de vida, evoluindo com TSV e convulsões, manifestações raras no período neonatal. Sabe-se que prognósticos difíceis estão reservados ao RN que apresenta IC grave ou lesões no parênquima cerebral tão precocemente. Outros achados, como aumento do perímetro cefálico, hemorragia subaracnoide/intraventricular, hidrocefalia, comumente encontrados nesses pacientes, não foram relatados neste neonato. Vale ressaltar que o manejo da IC neste paciente é um desafio e perpassa a utilização de inotrópicos, vasodilatadores e diuréticos. Além disso, a instabilidade clínica, como a apresentada no caso, torna imperativa que embolizações endovasculares sejam realizadas mais precocemente.

O manejo multidisciplinar da MAVG permanece um desafio. Apesar de o diagnóstico precoce pela ultrassonografia fetal anteceder e mobilizar os esforços para condução dos casos com adequada propedêutica após nascimento, evidenciam-se elevadas taxas de morbimortalidade neonatal.

 

REFERÊNCIAS

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