Artigo Original
Tratamento dietético da alergia às proteínas do leite de vaca: um estudo da percepção de mães
Dietary treatment of allergy to cow's milk: a study based on mother's perception
Fernanda Lopes Pinto1; Maria Fernanda Petroli Frutuoso2; Patrícia da Graça Leite Speridião3
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v21i4p176-182
1. Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista, Programa de Pós-Graduação em Alimentos, Nutrição e Saúde - Santos - São Paulo - Brasil
2. Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista, Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva - Santos - São Paulo - Brasil
3. Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista, Departamento de Saúde, Educação e Sociedade - Santos - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
patricia@dominustech.net/patricia.speridiao24@unifesp.br
Recebido em: 09/11/2020
Aprovado em: 13/07/2021
Instituição: Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista, Programa de Pós-Graduação em Alimentos, Nutrição e Saúde - Santos - São Paulo - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: A percepção de mães sobre o processo de diagnóstico e tratamento da APLV pode ser uma ferramenta auxiliar para os profissionais da saúde, no entendimento da complexidade e das dificuldades enfrentadas, além de subsidiar ações que possam ser construídas a partir do contexto de vida de cada mãe/criança/família.
OBJETIVO: Conhecer a percepção de mães sobre o tratamento dietético da alergia às proteínas do leite de vaca dos seus filhos atendidos em ambulatório especializado em alergia alimentar.
MÉTODO: Estudo qualitativo realizado entre setembro e dezembro de 2017, com 15 mães que responderam a três perguntas sobre sua percepção no momento do diagnóstico da alergia às proteínas do leite de vaca e as dificuldades enfrentadas no tratamento dietético. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas pelo método de análise de conteúdo.
RESULTADOS: A idade das mães variou entre 20 e 45 anos, a maioria é casada, cursou o ensino médio e se encontra desempregada. Os relatos das mães indicaram a construção de um processo adaptativo positivo, mas repleto de medo e angústia, pelo desconhecimento sobre a alergia às proteínas do leite de vaca e seu tratamento dietético.
CONCLUSÃO: A percepção das mães sobre o tratamento dietético de crianças com alergia às proteínas do leite de vaca é permeada por angústia e medo sobre como as informações e orientações são fornecidas no serviço especializado, entre outros fatores.
Palavras-chave: Percepção. Mães. Hipersensibilidade a leite. Crianças.
Abstract
INTRODUCTION: The perception of mothers about the process of diagnosis and treatment of CMPA can be an auxiliary tool for health professionals, in understanding the complexity and difficulties faced, in addition to supporting actions that can be built from the context of life of each mother/child/family.
OBJECTIVE: To understand the perception of mothers about the dietary treatment of allergy to cow's milk proteins in their children treated at an outpatient clinic specializing in food allergy.
METHOD: Qualitative study carried out between September and December 2017, with 15 mothers who answered three questions about their perception at the time of diagnosis of allergy to cow's milk proteins and the difficulties faced in dietary treatment. The interviews were recorded, transcribed and analyzed using the content analysis method.
RESULTS: The age of the mothers ranged between 20 and 45 years, most are married, attended high school and is unemployed. The mothers' reports indicated the construction of a positive adaptive process, but full of fear and anguish, due to the lack of knowledge about allergy to cow's milk proteins and their dietary treatment.
CONCLUSION: The perception of mothers about the dietary treatment of children allergic to cow's milk proteins is permeated by anguish and fear about how information and guidance are provided in the specialized service, among other factors.
Keywords: Perception. Mothers. Milk hypersensitivity. Children.
INTRODUÇÃO
A alergia às proteínas do leite de vaca (APLV) é a alergia alimentar mais predominante entre pacientes pediátricos com idade abaixo dos três anos, podendo apresentar manifestações gastrintestinais, cutâneas, respiratórias e cardiovasculares. A incidência da APLV no Brasil encontra-se em torno de 2,2% e sua prevalência, em 5,7% com indícios de aumento.1,2
O tratamento da APLV baseia-se na restrição total do alérgeno alimentar (leite de vaca e derivados), caracterizando a "dieta de exclusão". Contudo, vale ressaltar que, por vezes, essa dieta requer períodos prolongados, demandando prescrição cautelosa, pois pode promover distúrbios nutricionais, desnutrição, além da oferta diminuída de cálcio, sobretudo durante a fase de crescimento.3,4,5 A exclusão das proteínas do leite de vaca da dieta constitui um procedimento auxiliar na diagnose da alergia.6,7 Assim, a APLV caracteriza-se como a alergia alimentar mais prevalente na infância, sendo necessária vigilância constante da dieta por parte dos pais ou responsáveis pela criança.8
A mãe exerce, normalmente, grande influência no processo de alimentação da criança, não só pela preparação do alimento para a família, mas também pelo papel educador sobre o ato de se alimentar, impactando fortemente a relação entre alimentação e maternidade. Contudo, a maternidade por si só traz intensa carga emocional para a mulher, com o surgimento de nova relação com um ser absolutamente dependente, gerando alegria, amor, prazer, mas também angústia, raiva, medo e insegurança, sobretudo quando a criança é portadora de uma situação clínica como a APLV.3,9
O modo como a mãe entende suas vivências, incluindo o diagnóstico de doenças, requer interpretação, ainda que provisória e incompleta, adquirida por meio da percepção, ou seja, como a consciência apreende um dado objeto e seus fenômenos utilizando as sensações como instrumento.9,10,11 A necessidade de reestruturação da rotina materna frente à APLV do filho configura um fator que pesa sobre as mães. A compreensão da percepção das mães de crianças em tratamento dietético da APLV pode possibilitar ações que as auxiliem no processo de enfrentamento das situações por elas vivenciadas.9
Conhecer a percepção dessas mães sobre o processo de diagnóstico e tratamento da APLV pode ser uma ferramenta auxiliar para os profissionais da saúde, no entendimento da complexidade e das dificuldades enfrentadas, além de subsidiar ações que possam ser construídas a partir do contexto de vida de cada mãe/criança/família. Assim, o presente estudo objetivou conhecer a percepção das mães de crianças com APLV acompanhados em ambulatório especializado, sobre o tratamento dietético e como elas o enfrentam.
MÉTODO
O estudo foi realizado em ambulatório de alergia alimentar de um hospital público, na cidade de São Paulo. A coleta de dados aconteceu entre setembro e dezembro de 2017. As participantes foram convidadas a participar do estudo, aleatoriamente, na sala de espera do ambulatório especializado. Assim, a casuística de conveniência contou com 15 mães de crianças com APLV que concordaram em participar do estudo mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Por meio de formulário estruturado, dados demográficos e socioeconômicos das participantes foram coletados, incluindo-se o tempo de acompanhamento dos filhos no serviço especializado, idade, estado civil, escolaridade, ocupação e número total de filhos.
Para conhecer a percepção das mães, utilizou-se metodologia qualitativa com base na análise de conteúdo, a qual proporciona o levantamento de indicadores (quantitativos ou não), permitindo a inferência de conhecimentos inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, ou seja, uma abordagem designada ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produto da interpretação que os seres humanos fazem, como pensam, se sentem, vivem e constroem seus artefatos e a si mesmos.10
Os depoimentos das mães foram tomados em local privativo e reservado, com auxílio de um gravador digital. A entrevista foi estruturada com base em três questões norteadoras acerca dos sentimentos da mãe ao receber o diagnóstico de APLV, das dificuldades impostas pelo tratamento dietético e sobre como essas mães avaliam a alimentação dos seus filhos (1 - O que a senhora pensou/sentiu quando recebeu o diagnóstico da APLV de seu filho? 2 - Há alguma dificuldade da família para a realização do tratamento dietético de seu filho? Se sim, quais? 3 - A senhora considera a alimentação do seu filho boa/adequada ou ruim/inadequada? Explique). A partir da transcrição das respostas, estas foram analisadas pelo método/técnica de análise do conteúdo, conforme proposto por Minayo,12 sendo que os depoimentos das mães permitiram construir cinco categorias de respostas: 1) sentimentos no momento do diagnóstico; 2) sentimentos em relação aos profissionais do serviço especializado; 3) compreensão e aceitação da APLV; 4) dificuldades para realização do tratamento dietético; 5) avaliação da alimentação dos filhos durante o tratamento dietético. Por questões éticas e relativas à preservação do sigilo, os nomes das participantes foram substituídos pela letra M seguida de números cardinais na apresentação dos resultados.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo sob o nº CAAE: 55256416.8.0000.5505, e se encontra de acordo com as Resoluções do Conselho Nacional de Saúde nºs 510/2016 e 580/2018.
RESULTADOS
Características demográficas e socioeconômicas das participantes foram apresentadas segundo a frequência absoluta e relativa. A idade das mães variou entre 20 e 45 anos. Em relação ao estado civil, nove são casadas, quatro são solteiras e duas, divorciadas. Quanto à escolaridade e ocupação, a maioria das mães (11) cursou até o ensino médio e a maior parte delas (10) está empregada. O número de filhos dessas mães variou entre 1-5. Em relação ao tempo de acompanhamento dos filhos no ambulatório especializado, encontrou-se um período que variou entre 1-18 meses (Tabela 1).
A análise do conteúdo, com base nos depoimentos das mães, apontou a construção de um processo adaptativo positivo, porém repleto de medo e angústia pelo desconhecimento sobre a APLV e seu tratamento dietético. Alguns trechos desses depoimentos são destacados de acordo com cada categoria de resposta (Quadro 1).
DISCUSSÃO
Estudos que incluem abordagem qualitativa sobre aspectos da alergia alimentar, em especial a APLV, são escassos na literatura nacional e internacional, sobretudo quando a proposta é conhecer a percepção de mães de crianças sob tratamento dietético baseado na dieta de exclusão de leite de vaca e derivados. Assim o presente estudo vem apresentar um conjunto de informações delicadas acerca dos sentimentos vivenciados por mães de crianças com APLV, obtidos por meio da abordagem qualitativa que permite a elucidação de processos sociais de determinados grupos, constituindo um modelo de conhecimento mais completo entre ligações e elementos.10,12
Em relação ao diagnóstico de APLV, os depoimentos das mães aparecem repletos de dúvidas e medo, possivelmente, em razão das informações oferecidas não terem sido acessíveis à sua compreensão, destacadas nas falas a seguir:
Ninguém sabia me explicar o que era a doença. (M5).
Sensação de o que eu faço agora? Você fica sem mundo porque é um mundo totalmente diferente. Nossa, meu filho vai comer o quê? Vai beber o quê? O primeiro ano foi muito difícil (M10).
É possível observar um sentimento de insegurança dessas mães, por desconhecerem a doença, além da ausência de informações fornecidas por profissionais do serviço especializado, que vão de encontro às necessidades de compreensão. Diante disso, é possível questionar se esses profissionais estão realmente preparados para o atendimento complexo que essas mães demandam. Nesse contexto, é imperativo trazer à baila essa problemática, haja vista que tais informações são elementares e fazem parte integrante do protocolo de atendimento e conduta da equipe do ambulatório.
Outro aspecto não menos importante é o fato de que essas mães levam seus filhos para o seguimento no ambulatório por tempo bastante considerável, variando entre 1-18 meses, sendo muito pouco provável que essas mães não tenham sido orientadas sobre a APLV e seu tratamento durante todo esse período de acompanhamento. Contudo, o presente estudo tenta, justamente, trazer elucidação sobre qual é a percepção dessas mães sobre esses aspectos. Estudo de Veríssimo9 descreve a maternidade como um estado de intensa carga emocional para a mulher, sendo a relação mãe-filho provocadora de múltiplos sentimentos como alegria, amor, prazer, angústia, medo, raiva e insegurança, podendo ser intensificada diante da descoberta de uma doença como a APLV.
De acordo com Bollinger et al.,13 é compreensível o desenvolvimento de ansiedade e proteção por parte dos cuidadores de crianças com alergia alimentar, considerando a gravidade das manifestações clínicas e a possível falta de controle em determinadas situações, podendo levar crianças e familiares ao isolamento com restrição de atividades sociais em função do medo à exposição ao alérgeno. Cummings et al.14 também referem impactos psicossociais graves nos casos de alergias alimentares, dentre eles, a depressão, tanto para as crianças como seus familiares. Nesse sentido, é relevante destacar que as crianças envolvidas no estudo apresentam, quando de APLV importante, exuberância de manifestações clínicas que incluem sangramento nas fezes, baixo-peso e inapetência, entre outras, constituindo aspectos de grande influência na percepção de seus cuidadores/mães.
Em estudo realizado por Yonamine et al.,8 é possível perceber frustração com sofrimento e sentimento de culpa nos depoimentos de mães cujos filhos demandam alguma privação alimentar, sobretudo quando elas podem comer de tudo e atender às preferências alimentares dos outros membros da família. Algumas mães apontaram preocupação com a alimentação dos filhos, principalmente com as restrições impostas pelo tratamento dietético, conforme observado nos depoimentos a seguir.
Vou ter que ficar no pezinho dele. (M14).
Fiquei muito triste em saber que ele não ia poder comer nada de leite. (M15).
Nesse sentido, a suspensão do leite na dieta aparece como uma preocupação importante para as mães, dada a importância nutricional e à construção social do leite de vaca na alimentação infantil, de acordo com o trecho a seguir:
Você normalmente não escuta muito isso; suspender o leite de uma criança que está em fase de crescimento (M14).
A utilização de leite de diversas espécies animais na alimentação humana data de tempos anteriores à Era Cristã, sendo o leite de vaca o alimento mais empregado como substituto do leite materno e considerado importante fonte de proteínas, cálcio, fósforo e vitamina D.15 Contudo, a ingestão de leite de vaca não é recomendada para crianças menores de um ano de idade, sendo indicado o aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida e sua continuidade por até 24 meses em caráter complementar. Tal indicação é fundamentada, entre outros fatores, na diminuição do risco de desenvolver APLV e na redução das manifestações alérgicas mais graves, durante a primeira infância.16,17 Entretanto, a preocupação com a exclusão do leite de vaca no tratamento da APLV, em especial para os lactentes, é justificável, uma vez que o elevado valor nutricional do leite de vaca e seus derivados são promotores do crescimento e desenvolvimento infantil. Esses aspectos nutricionais corroboram a necessidade da realização adequada da dieta de exclusão, a fim de garantir os nutrientes presentes no leite de vaca e prevenir deficiências nutricionais que podem promover distúrbios no crescimento e desenvolvimento da criança.18,19
A questão de não ter recebido informações ou recebido informação insuficiente sobre o manejo da terapia dietética na APLV no serviço especializado, sobretudo acerca da continuidade do aleitamento materno, chega a chocar. Essa percepção é destacada nos seguintes trechos:
Ninguém me disse que eu não podia comer nada que tinha leite, quando dava de mamá. (M6).
Ela [a pediatra] falou que era pra mim tirar o leite, continuei amamentando, mas comia manteiga, comia bolacha. (M8).
Lactentes em aleitamento materno exclusivo também podem apresentar reações alérgicas às proteínas do leite de vaca.18 Quando se detectam tais manifestações em crianças menores de seis meses de vida e amamentadas exclusivamente ao seio, a conduta nutricional deve se basear na continuidade do aleitamento, mas a mãe deverá restringir em sua dieta, alimentos fontes de proteínas do leite de vaca, uma vez que estas são veiculadas à criança através do leite materno.1,17,19 A mãe receberá suplementação de cálcio e vitamina D enquanto durar a restrição de leite e derivados em sua dieta.1,4
A incidência de APLV em crianças alimentadas exclusivamente com leite materno é menor quando comparada a lactentes em uso de fórmula infantil e alimentos variados. Apenas 0,5% das crianças em aleitamento materno exclusivo podem apresentar APLV, sendo que as manifestações clínicas tendem a ser leves e moderadas, uma vez que a concentração de proteínas do leite de vaca presentes no leite materno é 100 mil vezes menor quando comparada ao leite de vaca. Acrescenta-se, ainda, a presença de imunomoduladores do leite humano e da microbiota distinta entre os lactentes que recebem fórmula infantil e leite materno.17 Diante dos inúmeros benefícios do aleitamento materno, tanto para as mães quanto para as crianças, os profissionais da saúde devem aconselhar sua continuidade, além de informar adequadamente sobre a suspensão de produtos alergênicos da alimentação.17
Em estudo qualitativo no qual crianças com APLV recebiam aleitamento materno, uma das mães relacionou seu consumo de leite de vaca com a diarreia do filho, e na consulta médica, obteve a informação de que não é possível essa relação.9 Nesse estudo foi observado a ambivalência das mães em relação à APLV, e nossos resultados reforçam a presença dessa ambivalência. Entretanto, é importante ressaltar aos profissionais atores desse cenário que as orientações inadequadas sobre o manejo dietético na APLV podem levar a graves consequências no crescimento e desenvolvimento da criança. Nesse contexto, deve ser ressaltada a importância da condução adequada do manejo dietético, tanto no sentido de restringir alimentos que contenham proteínas do leite de vaca, quanto na indicação de alimentos que são permitidos,20 assegurando a exclusão do alérgeno da alimentação das mães que se encontram amamentando seus filhos.
A análise dos depoimentos até aqui permitiu conhecer os caminhos percorridos por essas mães para a construção dos processos de aceitação e compreensão da doença e seu tratamento. A partir do momento em que as mães se tornam empoderadas sobre a doença e o tratamento, os cuidados com a criança são facilitados, sobretudo quando condicionados ao acompanhamento ambulatorial e às orientações profissionais adequados que proporcionam maior segurança às mesmas.8,20
Estudo de Hu, Grbich e Kemp20 realizado com pais de crianças com alergia alimentar mostrou que a demanda por conhecimento é constante, tanto no momento diagnóstico quanto no período de acompanhamento da doença. A aquisição de conhecimentos sobre a APLV auxilia no manejo do tratamento, aumenta o vínculo entre a família e os profissionais de saúde, favorecendo confiança mútua, além de promover o cuidado bem-sucedido da criança de acordo com apontamentos do estudo que também avaliou a percepção de cuidadores de pacientes com APLV.8
Compete aos profissionais da saúde o entendimento da importância do alcance da sua resposta adaptativa positiva aos familiares de crianças com APLV, pois a vigilância constante das mães e o medo das consequências são entraves no processo adaptativo e de compreensão do curso da doença.21 Entretanto, é de igual importância que as mães e familiares de crianças com APLV tenham conhecimento sobre a alta taxa de remissão total dos sintomas, que costuma ocorrer por volta dos três anos de idade, quando 85 a 90% das crianças se tornam tolerantes ao leite de vaca.21,22 Informações como esta podem aumentam a confiabilidade e o cuidado da mãe, assim como a crença na cura.
A maioria das mães referiu não encontrar dificuldade para a realização do tratamento dietético, sendo possível aderir às orientações nutricionais que norteiam a dieta de exclusão do leite de vaca e derivados. Nos trechos dos depoimentos a seguir, é possível observar que os demais familiares também se adaptaram às regras do tratamento dietético sem dificuldade.
Não, não, nenhuma. Nenhuma porque até os meus pais se adaptaram. O pai dela também se adaptou. Agora a gente toma mais suco, não toma mais vitamina porque a gente tomava bastante, diminuiu a bolacha, diminuiu tudo. Ficou bem mais natural. Até eu já aprendi a fazer coisas que eu nunca imaginei. (M11).
Não, nenhuma! Não porque todo mundo já sabe, todo mundo já entende. Não, não tem problema. (M15).
No entanto, algumas mães relataram muita dificuldade quanto ao custo elevado da dieta recomendada, apesar de uma delas reconhecer que seu filho estava recebendo alimentação mais balanceada e saudável, a qual incluía frutas e hortaliças, além de reduzir o consumo de alimentos industrializados.
As escolhas alimentares são processos complexos influenciados por fatores biológicos, sociais, culturais e econômicos. A renda familiar pode levar à baixa adesão às orientações nutricionais no tratamento dietético de uma situação clínica que envolve restrições alimentares, como é o caso da APLV. Nesses casos é imperativo, além de terapêutico, que ocorram mudanças no comportamento alimentar da criança, podendo se estender aos familiares, o que aumenta ainda mais o custo com a alimentação.
Também é possível observar, nas falas das mães, a ausência de dificuldades na realização da dieta, mesmo com a exclusão do leite de vaca. É possível que depoimentos como esse sejam justificados em razão da existência de políticas públicas governamentais que garantem a substituição do leite de vaca na dieta e que, apesar do alto custo, são dispensadas pela Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP). Atualmente no Brasil, algumas Secretarias de Estado da Saúde mantêm o fornecimento regular de fórmulas especiais para o tratamento da APLV a partir da avaliação criteriosa de pediatras e nutricionistas para crianças até dois anos de idade, garantindo assim o direito à alimentação adequada, com nutrientes indispensáveis para o crescimento e desenvolvimento, evitando comprometimento nutricional irreversível.6
Parcela expressiva das mães avaliou positivamente a alimentação dos seus filhos durante o tratamento da APLV, utilizando, em suas falas, expressões como "boa", "balanceada", "saudável", "ideal" e "equilibrada". Um trecho desse tipo de fala é apresentado a seguir:
"Eu acho boa. Ele desenvolveu, cresceu, engordou, coisa que ele não desenvolvia" (M10).
CONCLUSÃO
A realização do presente estudo permitiu conhecer e entender as percepções de mães sobre a dieta restritiva dos filhos em tratamento por APLV, além de proporcionar subsídios aos atores da rotina diária de enfrentamento da APLV. Em conclusão, o estudo permitiu verificar que a percepção das mães sobre o tratamento dietético de crianças com APLV é ambivalente e permeada por angústia, medo, dificuldades, facilidades e ausência de compreensão das informações fornecidas no ambulatório de alergia alimentar.
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