Artigos de Revisao
Autismo e os novos desafios impostos pela pandemia da COVID-19
Autism and the new challenges imposed by the COVID-19 pandemic
Adriana Rocha Brito1; Roberto Santoro Almeida2; Gabriela Crenzel3; Ana Silvia Mendonça Alves4; Rossano Cabral Lima5; Cecy Dunshee de Abranches6
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v21i2p73-78
1. Neuropediatra, Professora Adjunta de Pediatria da Universidade Federal Fluminense, membro do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e do Departamento Científico (DC) de Neurologia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ)
2. Psiquiatra de crianças e adolescentes, Chefe do Serviço de Saúde Mental do Hospital Municipal Jesus - Rio de Janeiro, psicanalista pela International Psychoanalytical Association, membro efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), coordenador do GT de Saúde Mental da SBP, membro do DC de Saúde Mental da SOPERJ
3. Psiquiatra de crianças e adolescentes, Presidente do DC de Saúde Mental da SOPERJ e membro do GT de Saúde Mental da SBP
4. Psiquiatra da infância e adolescência, psicanalista e membro do GT de Saúde Mental da SBP
5. Psiquiatra de crianças e adolescentes, Professor Associado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do GT de Saúde Mental da SBP e do DC de Saúde Mental da SOPERJ
6. Psiquiatra de crianças e adolescentes, terapeuta de família e servidora pública aposentada do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), membro do GT de Saúde Mental da SBP e do DC de Saúde Mental da SOPERJ
Endereço para correspondência:
Recebido em: 19/05/2020
Aprovado em: 20/05/2020
Instituição: Sociedade Brasileira de Pediatria, Grupo de Trabalho de Saúde Mental - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: A pandemia da COVID-19 gera novos desafios para crianças e adolescentes com autismo e suas famílias, impondo uma reestruturação da rotina e um reajustamento ao isolamento social compulsório implementado para reduzir o risco de contaminação.
OBJETIVO: Fornecer ao pediatra recomendações úteis para ajudar as famílias, minimizando o impacto da pandemia de COVID-19 e da quarentena nas vidas de crianças e adolescentes com autismo e de seus pais e cuidadores.
FONTE DE DADOS: Este artigo é baseado na revisão da literatura publicada sobre o tema, e na experiência clínica dos autores como médicos de crianças com diagnóstico de transtorno do espectro autista.
SÍNTESE DOS DADOS: Como um dos sintomas do transtorno do espectro autista é a resistência a mudanças, as modificações da rotina e a interrupção das atividades impostas pela pandemia de COVID-19 podem ser particularmente desafiadoras para pacientes autistas, gerando estresse e desencadeando mudanças emocionais e comportamentais.
CONCLUSÕES: Os pais estão sendo convidados a reorganizarem suas vidas diante das medidas de restrição social. Eles devem ser amparados e encorajados pelos pediatras a participar ativamente dos cuidados de seus filhos durante e após este período, já que o retorno para as atividades habituais representará um novo desafio.
Palavras-chave: Transtorno do espectro autista; Criança; Adolescente; COVID-19; Quarentena; Isolamento social.
Abstract
INTRODUCTION: The COVID-19 pandemic creates new challenges for children and adolescents with autism and their families, imposing a restructuring of routine and a readjustment to the compulsory social isolation implemented to reduce the risk of contamination.
OBJECTIVE: To provide the pediatrician with useful recommendations to help families, minimizing the impact of COVID-19 pandemics and quarantine on the lives of children and adolescents with autism and their parents and caregivers.
DATA SOURCE: This paper is based on the review of the published literature on the topic and the authors' clinical experience as doctors of children diagnosed with autism spectrum disorder.
DATA SYNTHESIS: As one of the symptoms of autism spectrum disorder is resistance to change, the modifications of routine and the interruption of activities imposed by COVID-19 pandemics can be particularly challenging to autistic patients, generating stress and triggering emotional and behavioral changes.
CONCLUSIONS: Parents are being invited to reorganize their lives in face of social restriction measures. They should be supported and encouraged by the pediatricians to actively participate in the care of their children during and after this period, as the return to the usual activities will represent a new challenge.
Keywords: Autism spectrum disorder; Child; Adolescent; Coronavirus Infections; Quarantine; Social Isolation.
INTRODUÇÃO
O autismo é uma síndrome que afeta o neurodesenvolvimento e se caracteriza por deficiências na interação e na comunicação social, associadas a um repertório restrito e repetitivo de comportamentos e interesses, e dificuldades nas atividades lúdicas e imaginativas.1-8 Em virtude da grande variação na intensidade das manifestações clínicas, abarcando indivíduos com todos os níveis de inteligência e habilidades de linguagem que compartilham das características centrais do quadro, em lugar de fragmentar os diagnósticos em diversas categorias e epônimos, as novas classificações deram preferência ao uso da expressão "transtorno do espectro autista" (TEA).1,4,5,7 O DSM-5 inclui especificadores de gravidade, que podem ser utilizados para descrever a sintomatologia apresentada no momento da avaliação, reconhecendo que o nível de gravidade pode oscilar de acordo com o contexto e variar ao longo do tempo.1,4,5
A Organização das Nações Unidas (ONU) escolheu a data de 2 de abril para celebrar o Dia Mundial de Conscientização do Autismo.9 No Brasil, desde 2018, a mesma data se tornou o Dia Nacional de Conscientização sobre o Autismo.10 Diante da rápida disseminação do novo coronavírus em vários países e do isolamento social decorrente,11-13 neste ano de 2020 a celebração ocorreu de forma virtual.
Em tempos normais, famílias de crianças e adolescentes portadores de TEA enfrentam enormes desafios para minimizar o potencial sofrimento causado pelo quadro e promover o desenvolvimento de seus filhos. Em tempos de pandemia de COVID-19 novas dificuldades surgiram, tornando necessárias medidas de ajuste.14 O isolamento social adotado como forma de contenção da contaminação,11,12,15,16 por exemplo, exige uma reestruturação da rotina que pode afetar adversamente os portadores do espectro autista, sabidamente sensíveis a mudanças e alterações do seu dia a dia.7,17
Esta publicação tem o objetivo de fornecer orientações úteis aos pediatras para o auxílio a famílias com crianças e adolescentes portadores de autismo, visando minimizar o impacto da pandemia e do isolamento social na vida destes pacientes e de seus pais e cuidadores, ajudando-os a vencer os desafios deste momento difícil.
O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E A INFECÇÃO PELO NOVO CORONAVÍRUS
A presença de autismo não é fator de risco para a COVID-19 nem para sua gravidade.15-19 As crianças e adolescentes com TEA apresentarão sinais e sintomas semelhantes aos outros jovens sem o transtorno. No entanto, características do transtorno podem criar dificuldades na adoção de medidas preventivas, que são as mesmas para indivíduos com e sem autismo.13,15,16
Alterações nas funções sensoriais são muito comuns em autistas.1,2,5,6,20,21 Observa-se com frequência grande interesse pelos aspectos elementares dos objetos, como seu odor, sabor e textura. É comum vê-los passando as mãos em tudo, colocando utensílios não comestíveis na boca, "saboreando" superfícies, ou levando objetos ao nariz para sentir o cheiro, o que aumenta a possibilidade de contaminação.18 Os pais devem manter a residência limpa e os ambientes bem ventilados, evitando o compartilhamento de utensílios.15
As medidas com a higiene devem ser priorizadas.15,22 Os cuidadores devem ter cautela com as compras que chegam da rua, higienizando-as de imediato. Os adultos que continuam trabalhando fora devem estar conscientes da necessidade de seguir todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para evitar o contágio e a transmissão do vírus,15,16 lembrando que o adoecimento de um dos pais e a necessidade de distanciamento do próprio filho, e eventualmente a morte desse cuidador, pode ter grande impacto na vida da criança.23 Nos casos de pacientes que brincam de maneira obsessiva com a água, pode-se aproveitar a oportunidade para treinar a lavagem das mãos.15,24
Se houver necessidade de atendimento médico em emergência pediátrica ou internação hospitalar, é imprescindível que o adulto de confiança da criança autista permaneça próximo, mantendo todos os cuidados de higiene.15,16
OS DESAFIOS DA QUARENTENA
A nova situação da pandemia tem ocasionado mudanças significativas na vida de todas as pessoas (isolamento social, distanciamento físico, medidas de higiene, modificação das atividades do dia a dia e outras).14,15 Todos estão sendo exigidos a se adaptar às novas condições de vida. No caso de portadores de TEA, tudo é ainda mais complicado. Grande parte dos autistas apresenta resistência a mudanças,1-3,5,17 e muitos exigem manter de forma rígida suas rotinas diárias. É sabido que crianças com autismo gostam e necessitam de rotina, e que mudanças repentinas do cotidiano podem desencadear alterações emocionais e comportamentais, tornando-as mais irritadas, agitadas, ansiosas e até mesmo agressivas.1-3,7,17,19,25 Algumas crianças tenderão a ficar mais isoladas. Pode-se observar também um aumento das estereotipias como resultado comportamental da elevação dos níveis de estresse,7 sem maior significado clínico.26
A rotina é fundamental para a criança autista.17 Viver em um ambiente estruturado com regras claras ajuda a criança a se organizar mentalmente e consequentemente se acalmar.3 Portanto, recomenda-se seguir, dentro do possível, a maior parte da rotina que a criança já vivenciava antes, mantendo-se os horários habituais de acordar, das refeições, de tomar banho, de usar o banheiro, de dormir e outros.22 Ao mesmo tempo, é necessário preparar cuidadosamente a criança ou adolescente autista para as mudanças inevitáveis.
Pode ser útil criar um quadro contendo o planejamento de todas as atividades do dia, registradas por escrito ou por imagens - fotos ou desenhos (de acordo com o grau de entendimento) que mostrem a ordem dos eventos.17,27 A previsibilidade traz conforto para a criança.3,17 No caso de famílias de autistas com alto desempenho, um quadro pode ser compartilhado, com espaço para cada membro escrever suas atividades.26
COMO EXPLICAR A QUARENTENA, O CORONAVÍRUS E A INTERRUPÇÃO DE ALGUMAS ATIVIDADES COTIDIANAS
Os pais devem fornecer informações simples e diretas sobre a pandemia e o isolamento social, de acordo com o nível de compreensão de seus filhos,26,27 respondendo com sinceridade às perguntas, com o cuidado de não os assustar com detalhes exagerados ou um tom alarmista. Encontram-se na internet vídeos explicativos e livrinhos de história sobre o coronavírus que podem ser úteis.
Embora escolares e adolescentes autistas com inteligência normal ou acima da média (autistas de alto desempenho) possam compreender intelectualmente as mudanças de vida ocasionadas pela pandemia, são mais vulneráveis ao estresse que pessoas sem o transtorno, e podem desenvolver quadros de ansiedade e depressão,1,2 o que exige um olhar atento dos pais para este risco em potencial e para a eventual necessidade de procurar ajuda.
Crianças com quadros autísticos mais graves ou comorbidade com deficiência intelectual apresentarão dificuldade ou mesmo impossibilidade de compreensão da nova situação, tornando necessário que os pais repitam o assunto por diversas vezes. Desenhos podem ser úteis.24 Para muitos pacientes, é difícil entender e respeitar determinadas regras como não tocar no rosto, cobrir a boca ao tossir ou lavar corretamente as mãos. É fundamental que os cuidadores insistam e tenham paciência de repetir inúmeras vezes as instruções, para que o paciente possa ir incorporando, na medida do possível, estas medidas de prevenção do contágio pelo vírus.15
Para alguns autistas com o hábito de visitar os avós todos os dias ou receber seus cuidados, pode ser difícil compreender a interrupção desses hábitos. É necessário explicar cuidadosamente a necessidade de proteger a saúde dos idosos, e implicar o paciente na adoção das medidas necessárias.
COMPETÊNCIAS ESCOLARES
Um ponto a ser cuidadosamente planejado é o das atividades escolares. Muitos alunos autistas são assistidos por professor de apoio educacional especializado, com material escolar adaptado.6 Muitas escolas estão oferecendo aulas por videochamada para que se mantenham, pelo menos em parte, as atividades acadêmicas propostas. Para alunos com esta possibilidade, aconselha-se tentar acompanhar as propostas da escola, evitando a rigidez ou cobranças exageradas. Recomenda-se que o encontro virtual com o professor ocorra no mesmo horário em que a criança frequentava a escola. Pode ser uma boa ideia tentar manter hábitos de rotina anteriores. Os pais podem vestir a criança com o uniforme escolar, preparar a lancheira com a merenda, manter a pausa do recreio etc.
No caso de não ser possível para o aluno o recurso das aulas remotas, recomenda-se entrar em contato com a escola para buscar alternativas adaptadas às circunstâncias especiais.26,27 As crianças que construíram vínculos com outras crianças devem ser estimuladas a manter contato social por videochamada ou por telefone com seus colegas.26,27
A REABILITAÇÃO INTERROMPIDA
Idealmente, os atendimentos terapêuticos anteriores por profissionais de diferentes especialidades (fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, psicomotricistas, etc.)3-6,8 deveriam ser mantidos por videochamada,27 com a mediação de um dos pais, no mesmo horário em que a criança era atendida presencialmente. Os pais não devem, obviamente, ocupar o lugar de terapeutas ou mediadores, mas podem auxiliar aplicando em casa o que for proposto pelos profissionais, visando dar continuidade ao tratamento que vinha sendo oferecido. Um dos focos dessa readequação é evitar que a criança perca habilidades anteriormente conquistadas.
É fundamental que crianças e adolescentes em psicoterapia continuem seus atendimentos por videochamada com as mesmas consultas semanais. As sessões remotas podem auxiliar na redução da ansiedade, além de oferecer um espaço para conversar com o especialista.23,26
TEMPO LIVRE, ATIVIDADES FÍSICAS E LAZER
A presença de padrões limitados de interesses e a dificuldade de se apropriar do mundo simbólico, características do transtorno, tornam as brincadeiras monótonas e repetitivas.1-3,5 Mesmo diante de tais dificuldades, é desejado que os pais disponham de tempo para ensinar o valor simbólico dos brinquedos e explorar possibilidades lúdicas junto com seus filhos.26,28 Alguns autistas apresentam interesses especiais e muitas vezes exclusivos,1-5 como a fascinação por mapas, animais, histórias em quadrinhos, eletrônica ou música, e outros. Os pais podem utilizar os temas de interesse específico dos filhos para participar de atividades em conjunto.26,28
Comportamentos sensoriais atípicos são muito comuns no espectro autista,1,2,5,20,21 podendo abrir espaço para que os pais proponham brincadeiras que envolvem os sentidos, como a manipulação de materiais com diferentes texturas, associação do olfato, do sabor e das cores de diferentes alimentos com seus nomes, etc. Muitos autistas gostam de música e podem demonstrar preferência por determinados ritmos ou pela repetição de certas melodias. Este interesse pode ser aproveitado para acalmar o indivíduo e desviar sua atenção em momentos de desorganização.
Várias atividades do dia a dia podem ser oportunidades de aprendizado.17 Os pais podem sugerir a participação e colaboração do filho nas tarefas domésticas, sempre respeitando seu nível de desenvolvimento e capacidades.17,19,29
Deve-se manter uma rotina de alimentação saudável.28,29 O ideal é que as refeições sejam compartilhadas à mesa pela família, com horários definidos para cada refeição. Os pais devem se lembrar de oferecer bastante água ao longo do dia para a criança. Podem também deixar frutas disponíveis para o consumo, sempre muito bem lavadas. Recomenda-se evitar alimentos industrializados.
Os pais devem estimular atividades físicas19 como dançar, pular corda, ou criar circuitos dentro de casa, convidando os filhos e participando com eles da atividade proposta.29 Para aqueles que moram em casa, é possível aproveitar o espaço no quintal para correr, jogar bola, brincar ao ar livre e explorar o contato com a natureza.29,30
Os videogames e a internet são bastante atraentes para autistas, mas há risco de exagero, especialmente no contexto atual de confinamento. Devem-se estabelecer regras claras de compartilhamento dos videogames ou da internet com os outros membros da família, evitando que o portador de autismo faça um uso abusivo de telas e aumente o isolamento social.12 Recomenda-se seguir as orientações propostas pela Sociedade Brasileira de Pediatria para o uso saudável das telas na infância e na adolescência.31,32 Neste momento, se utilizada de forma adequada, a tecnologia pode ser considerada uma aliada para as famílias, sobretudo por possibilitar o contato com os parentes, amigos e a escola.
ATENDIMENTOS MÉDICOS DE ROTINA
Embora não existam medicações para tratar as características nucleares do transtorno, alguns pacientes necessitam de terapia farmacológica para o controle de sintomas-alvo específicos,4-6,18 como agressividade, déficit de atenção, ansiedade, alterações de humor etc., ou para tratamento de comorbidades como epilepsia, transtorno do sono etc. É preciso assegurar o fornecimento regular de medicamentos de uso contínuo.
No caso de adoecimento, o ideal é que se mantenha o acompanhamento médico à distância, por meio da telemedicina, tanto com o pediatra geral quanto com os especialistas.18,22,25,33 É necessário conscientizar os pais sobre a segurança e os benefícios da aplicação da vacina contra a gripe, sendo indispensável lembrar que essa vacina não protege contra o coronavírus, mas previne a infecção pelo vírus influenza,34 reduzindo a procura pelos serviços de saúde, já tão sobrecarregados por pacientes com a COVID-19.16
Outro ponto a ser destacado é o risco de acidentes domésticos, causa de significativa morbimortalidade em crianças. Muitos ocorrem por falta de informação ou pela dificuldade de os responsáveis perceberem as ameaças dentro da própria casa. Os pais precisam conhecer os riscos para que possam oferecer aos filhos um ambiente seguro. O pediatra deve adverti-los de que a maioria dos acidentes é evitável e orientá-los acerca das medidas preventivas.35
SAÚDE MENTAL DOS PAIS
A quarentena mudou completamente a vida de todos. A pressão sobre os pais de pacientes autistas é exponencialmente maior. Para além do medo da doença e da morte, das consequências econômicas da pandemia e do estresse pelo isolamento social, há os fatores adicionais dos cuidados aos filhos especiais, muitas vezes sem o auxílio de funcionários, acompanhantes ou empregadas domésticas. Em muitos momentos, os pais poderão se sentir cansados, tristes, angustiados e desanimados. É fundamental lembrar que esse período é passageiro e que o isolamento é um cuidado necessário, adotado para evitar a rápida propagação do vírus.11-13,15,16
As adversidades deste momento podem se refletir no relacionamento dos casais, gerando tensão, que pode ser percebida pela criança autista. Recomenda-se que todos contribuam para suavizar as angústias do ambiente, tratando-se com respeito e tolerância. Alguns pais estão trabalhando em casa (home-office), sendo fundamental definir horários para as atividades laborativas, outros afazeres e lazer.29
Com o isolamento social, muitos pais não têm mais contado com o apoio domiciliar de terapeutas, mediadores ou empregados. Assumir toda a responsabilidade do cuidado dos autistas pode representar um estresse adicional,26 com consequências negativas para a saúde mental. Nesse contexto, consultas regulares por videochamada com os terapeutas de seus filhos podem ajudar. A fim de receber orientações dos profissionais, os pais podem compartilhar vídeos que mostrem o comportamento dos pacientes em casa.26
Deve-se instruir as famílias a buscar somente informações oficiais, recusando especulações ou fake news advindas de redes sociais.14 Recomenda-se evitar comentários preocupantes perto da criança, pois mesmo que ela não entenda, ainda assim pode captar a emoção dos pais e se desorganizar.
É fundamental que, para além das tarefas de gerenciamento do dia a dia, os cuidadores reservem tempo para se dedicarem ao seu descanso e lazer, preservando e mantendo o próprio bem-estar emocional.14,22
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de pandemia, em que medidas de cuidado e isolamento social são necessárias para a manutenção da saúde, pais de autistas estão sendo instados a explorar sua criatividade, a exercitar a paciência e a tolerância consigo mesmos, com seus filhos e com seus familiares, a acolher emoções muitas vezes desestruturantes, e a se reorganizar diante de comportamentos indesejados dos filhos. Os pediatras devem apoiar e orientar os pais, encorajando-os a participar ativamente do cuidado de seus filhos durante e após o período de distanciamento social, em que o retorno às atividades habituais constituirá um novo desafio para muitas crianças e suas famílias.
Cabe lembrar que a atual situação cria a oportunidade de aproximação entre pais de autistas e seus filhos, e a descoberta de novas possibilidades interpessoais de desenvolvimento. Por vezes, crises tornam possível o nascimento de recursos insuspeitados e o aprofundamento dos vínculos afetivos.
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35. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Segurança. Os acidentes são evitáveis e na maioria das vezes, o perigo está dentro de casa. SBP, abril de 2020. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/_22337c-ManOrient_-_Os_Acidentes_Sao_Evitaveis__1_.pdf; acesso em: 17 maio 2020.