Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 19(3) - Setembro 2019

Relato de Caso

Manifestações atípicas da chikungunya em lactente febril - Relato de caso

Atypical manifestations of chikungunya in febrile infant - Case report

 

Maysa Silva Teixeira1; Alan Bittencourt da Silva2; Thales Fraga Ferreira da Silva3; Antonio Dourado Cavalcanti Neto2; Rulliany Lizia Tinoco Marins2; Manoela Silva de Oliveira2; Yve Cardoso de Oliveira2; Ana Flávia Malheiros Torbey1; Áurea Lúcia Alves de Azevedo Grippa de Souza1; Christiane Mello Schmidt1

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v19i3p65-68

1. Hospital Universitário Antônio Pedro, Serviço de Pediatria - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil
2. Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Medicina - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil
3. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Escola de Medicina - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

 

Endereço para correspondência:

christianes850@gmail.com

Recebido em: 05/07/2019

Aprovado em: 29/01/2020


Instituição: Hospital Universitário Antônio Pedro, Serviço de Pediatria - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil

 

Resumo

INTRODUÇÃO: A chikungunya é uma arbovirose causada pelo vírus Chikungunya, transmitido por fêmeas infectadas dos mosquitos Aedes aegypti e A. albopictus. A principal manifestação clínica dessa síndrome febril aguda é uma poliartralgia intensa, que é usualmente acompanhada por edema e pode persistir após a fase aguda da doença. Achados clínicos atípicos como dermatoses, meningoencefalite, pericardite e retinite são observados principalmente em lactentes e idosos.
OBJETIVO: Relatar caso de um paciente de três meses com manifestações atípicas da chikungunya, destacando a importância dessa arbovirose no diagnóstico diferencial de lactentes febris.
DESCRIÇÃO DO CASO: Lactente masculino de três meses admitido com febre associada à irritabilidade e eritema difuso. Ceftriaxone foi iniciado após punção lombar devido à febre persistente sem foco. Durante a internação, o paciente apresentou lesões vesiculobolhosas em membros superiores e inferiores, sugestivas de forma atípica da chikungunya, que foi confirmada com a técnica de reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa em amostra sanguínea. O ecocardiograma transtorácico revelou derrame pericárdico sem repercussão hemodinâmica. O lactente recebeu alta hospitalar com boa evolução clínica sem infecção cutânea secundária.
DISCUSSÃO: O atual momento epidemiológico no Brasil e a maior frequência de manifestações atípicas de chikungunya em lactentes reforçam a importância da suspeita clínica dessa arbovirose nas síndromes febris agudas, que constituem um desafio diagnóstico em lactentes.

Palavras-chave: Infecções por Arbovírus; Febre de chikungunya; Lactente.


Abstract

INTRODUCTION: Chikungunya is an arboviral disease caused by chikungunya virus transmitted by female mosquitoes infected with Aedes aegypti and A. albopictus. The main clinical manifestation of this acute febrile syndrome is a severe polyarthralgia which is often associated with edema and may persist after the acute phase of the disease. Atypical clinical findings as dermatosis, meningoencephalitis, pericarditis and retinitis are more frequently observed in infants and elderly.
OBJECTIVE: Reporting a case of a three-month-old patient with atypical manifestations of chikungunya, highlighting the relevance of this arboviral disease in differential diagnosis of febrile infants.
CASE DESCRIPTION: Three-month-old male infant admitted with fever associated with irritability and diffuse erythema. Ceftriaxone was initiated after lumbar puncture due to persistent fever of unknown origin. During hospitalization, the patient presented blistering lesions on limbs suggestive of atypical form of chikungunya which was confirmed by the reverse transcription polymerase chain reaction assay on blood sample. The transthoracic echocardiogram revealed pericardial effusion without hemodynamic repercussion. The infant was discharged with good clinical evolution without secondary cutaneous infection.
DISCUSSION: The current epidemiological situation in Brazil and the higher frequency of atypical manifestations of chikungunya in infants highlight the relevance of clinical suspicion of this arboviral disease in acute febrile syndromes which represent a diagnostic challenge in infants.

Keywords: Arbovirus infections; Chikungunya fever; Infant.

 

INTRODUÇÃO

A chikungunya é uma arbovirose causada pelo vírus chikungunya (CHIKV), um vírus RNA de cadeia simples do gênero Alphavirus e família Togaviridae, transmitido através da picada de fêmeas de mosquitos Aedes aegypti e A. albopictus infectadas pelo CHIKV.1,2 Em 2019, 130.820 casos prováveis foram registrados no Brasil, e o estado do Rio de Janeiro concentrou o maior número de casos prováveis da doença, com 85.758 notificações.3 A maioria dos indivíduos infectados pelo CHIKV é sintomática, porém a chikungunya geralmente tem curso benigno e autolimitado.4 Sua apresentação clássica é composta pela tétrade febre, poliartralgia simétrica, exantema maculopapular e conjuntivite não purulenta.4 A poliartralgia, usualmente acompanhada por edema, está presente em mais de 90% dos pacientes na fase aguda e pode persistir e se agravar nas fases subaguda e crônica.1 Contudo, as artralgias são menos frequentes em crianças. Nessa faixa etária, as manifestações neurológicas são mais comuns e as manifestações dermatológicas são mais variadas.4 Nos lactentes e idosos, a chikungunya tende a evoluir com maior gravidade e diversidade de achados clínicos.2 Essas formas atípicas podem ocorrer sem febre e artralgia e incluem pneumonia, hepatite, pancreatite, nefrite, dermatoses vesiculobolhosas, miocardite, pericardite, neurite óptica, uveíte, meningoencefalite e síndrome de Guillain-Barré.1

O objetivo deste trabalho é relatar o caso de um paciente de três meses com manifestações atípicas de chikungunya, destacando a importância dessa arbovirose como diagnóstico diferencial em lactentes febris, que constituem um desafio na prática pediátrica.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

IRP, 3 meses, masculino, natural de Niterói-RJ, atendido em uma emergência pediátrica com febre, hiporexia e eritema difuso há um dia. Atraso nas vacinas pentavalente e meningocócica C. Mãe com história de febre, artralgia e exantema há uma semana. Ao exame, lactente em bom estado geral, irritado ao manuseio, febril (Tax 38,2ºC), hidratado, eupneico, corado e com boa perfusão capilar periférica. Fontanela anterior normotensa e sem lesões cutâneas. Restante do exame físico sem alterações. Exames laboratoriais de admissão e seguimento na Quadro 1. No segundo dia de internação hospitalar (IH), o paciente mantinha febre com irritabilidade e eritema difuso, especialmente em tronco. Ceftriaxone foi iniciado após punção lombar (resultado na Quadro 1). No terceiro dia de antibioticoterapia, o paciente ficou afebril, com irritabilidade mantida, e surgiram lesões vesiculobolhosas em membros inferiores e superiores, associadas a edema em pés, sugestivas de forma atípica de chikungunya (Figura 1A). Nesse momento, o antibiótico foi suspenso.

 

 

 


Figura1. A: Lesões vesiculobolhosas em membro inferior. B: Máculas hipocrômicas em membro inferior.

 

Esquema de analgesia oral com dipirona e paracetamol foi realizado com base na avaliação da dor pela escala FLACC (Face, Legs, Activity, Cry, Consolability), com boa resposta. No oitavo dia de IH, o ecocardiograma transtorácico foi realizado e revelou pequeno derrame pericárdico, sugestivo de pericardite com função ventricular esquerda preservada, sem aumento dos diâmetros cavitários. A fundoscopia, também realizada no mesmo dia, não indicou alterações. Houve rompimento espontâneo das lesões vesiculobolhosas, com progressão para lesões hipocrômicas sem infecção bacteriana secundária (Figura 1B). O lactente recebeu alta hospitalar no 11º dia de IH com boa evolução clínica e sem necessidade de analgesia. A suspeita de chikungunya foi confirmada pela técnica de reação em cadeia da polimerase via transcriptase reversa (RT-PCR) em amostra sanguínea coletada no quinto dia de IH.

 

DISCUSSÃO

A febre representa um dos principais motivos de consulta pediátrica e constitui um desafio diagnóstico nos lactentes, principalmente nos mais jovens, devido a sua apresentação clínica com sinais e sintomas inespecíficos. Embora a maioria dos casos de febre sem foco seja causada por infecções virais benignas, é necessário afastar a possibilidade de infecções bacterianas potencialmente graves através de exames laboratoriais.5

O diagnóstico de chikungunya com manifestações atípicas é desafiador na prática pediátrica, principalmente quando o paciente apresenta apenas febre no ínicio do quadro clínico. Nesse caso, optamos pela realização de punção lombar e início de antibioticoterapia, pois a persistência de febre sem foco e as alterações laboratoriais indicavam a possibilidade de meningoencefalite bacteriana. Além disso, o paciente apresentava atraso vacinal para microrganismos causadores de doença bacteriana invasiva. Contudo, a cultura negativa do líquor, o surgimento de lesões cutâneas e a história epidemiológica materna levantaram a suspeita de Chikungunya, que foi confirmada posteriormente com RT-PCR. Outros diagnósticos diferenciais de lesões vesiculobolhosas em crianças, como a síndrome da pele escaldada estafilocócica, impetigo bolhoso, reação bolhosa à picada de inseto, erupção fixa por droga e síndrome de Stevens-Johnson secundária a medicamentos ou infecções foram excluídos durante a investigação clínica.6 O paciente apresentou alterações liquóricas sugestivas de meningoencefalite viral e meningite foi descrita em 21% dos lactentes com chikungunya e em dois lactentes (14,2%) com menos de um ano de idade.2,7

A elevação da aspartato aminotransferase no paciente foi relatada em 21% dos lactentes com chikungunya.2 Esse achado também foi observado em 11 crianças (78%), das quais seis eram lactentes, e em 85% dos lactentes com chikungunya que apresentaram lesões vesiculobolhosas.7,8 A leucopenia com linfopenia inferior a 1.000 células/mm3 é a alteração laboratorial mais comum da chikungunya, porém não foi observada no paciente.1 Embora o aumento de bastões seja mais frequente em infecções bacterianas, esse achado não é específico e pode ser encontrado em infecções virais, principalmente em crianças febris.9 A presença de mais de 10% de bastões no paciente também foi descrita em 43% dos lactentes com chikungunya.2

As lesões vesiculobolhosas apresentadas pelo paciente foram observadas em 28% dos lactentes com Chikungunya.2 Essa manifestação dermatológica também foi relatada em oito crianças (57%), das quais sete eram lactentes, e em um terço dos lactentes com menos de três meses de idade.7,10 A presença de extremidades edemaciadas no paciente foi observada em metade dos lactentes com chikungunya.10

O surgimento de máculas hipocrômicas no paciente coincidiu com a evolução das lesões vesiculobolhosas da chikungunya.8 As lesões vesiculobolhosas possuem alto risco de complicações infecciosas em lactentes, e infecção cutânea bacteriana foi descrita em 23% dos lactentes com chikungunya.8 Além disso, 15% dos lactentes apresentaram infecções bacterianas graves, como pielonefrite e bacteremia.10 Tais complicações não foram observadas no paciente.

O derrame pericárdico em fetos e neonatos infectados pelo CHIKV por transmissão vertical já foi relatado.11 A presença de derrame pericárdico não gerou repercussões hemodinâmicas no paciente e o uso de antiinflamatórios não foi necessário. O aumento inicial da creatinofosfoquinase fração MB (CKMB), seguido da sua normalização sem elevação da troponina afastou a possibilidade de miocardite associada, já que a troponina I é o marcador mais específico de injúria miocárdica e até 20% da CKMB podem ser encontrados na musculatura esquelética.12 A avaliação oftalmológica foi realizada para investigar outras manifestações atípicas da Chikungunya, como neurite óptica, episclerite, retinite e uveíte. Essas alterações não foram observadas no paciente.

A pesquisa do RNA viral com RT-PCR permite um diagnóstico precoce do primeiro ao quinto dia após o início dos sintomas (período de maior viremia), mas não apresenta utilidade após o oitavo dia de infecção.1 Como não há terapia antiviral para chikungunya, seu tratamento consiste em hidratação, suporte sintomático, cuidado com as lesões cutâneas e analgesia escalonada conforme faixa etária e fase da doença, como foi realizado no paciente.1,2 Atualmente, não há uma vacina efetiva contra a chikungunya.13

 

CONCLUSÃO

O atual momento epidemiológico no Brasil reforça a importância da suspeita clínica da chikungunya nas síndromes febris agudas. Portanto, deve-se pensar no diagnóstico de chikungunya nos casos de lactentes febris com manifestações cutâneas, especialmente lesões vesiculobolhosas, em regiões com circulação do CHIKV.2

 

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Chikungunya: Manejo Clínico. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.

2. Duarte MCMB, Neto AFO, Bezerra PGM, Cavalcanti LA, Silva VMBS, Abreu SGAA, et al. Infecção por Chikungunya em lactentes. Rev. Bras. Saúde Matern. Infant. 2016; 16 (1): 73-81.

3. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Boletim Epidemiológico. Monitoramento dos casos de arboviroses urbanas transmitidas pelo Aedes (dengue, chikungunya e zika), Semanas Epidemiológicas 1 a 49. Brasília: Ministério da Saúde; 2019.

4. Ward CE, Chapman, JI. Chikungunya in Children: A Clinical Review. Pediatr Emerg Care. 2018; 34(7): 510-515.

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