Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 20(2) - Junho 2020

Editorial

O Dia em que a Terra Parou

The Day the Earth Stood Still

 

Ana Silvia Mendonça-Alves1; Gabriela J Crenzel1,2

1. SBP, Grupo de trabalho de Saúde Mental - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
2. SOPERJ, Departamento de Saúde Mental - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

 

Endereço para correspondência:

gabriela.crenzel@gmail.com

Recebido em: 02/05/2020

Aprovado em: 03/05/2020


Instituição: SBP, Grupo de trabalho de Saúde Mental - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

 

Resumo

A pandemia do novo coronavírus impôs mudanças abruptas para humanidade com reações diversas tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. O bastão da história está conosco. Como estamos escrevendo esse capítulo? Temos que pensar nos efeitos em quem está na linha de frente e em quem está em isolamento. Os pontos mais fundamentais sobre os quais devemos nos debruçar para trabalhar as dificuldades e elaborar mecanismos de suporte e superação, considerando as capacidades inerentes a cada pessoa. Ao partilhar o que estamos vivendo, podemos desenvolver vivências de pertencimento. A Terra é nossa nau. E as barras nas quais nos seguramos, durante esta tempestade, somos nós, uns aos outros. O nosso equilíbrio pode alternar dependendo do momento. Nos revezando na função de suporte, tentando manter a delicadeza no olhar para si e para o outro.

Palavras-chave: Pandemias. Infecções por Coronavirus. Isolamento Social. Angústia Psicológica. Empatia. Arte


Abstract

The pandemic of the new coronavirus imposed abrupt changes for humanity with different reactions both from an individual and collective point of view. The baton of history is with us. How are we writing this chapter? We have to think about the effects on those on the front line and those in isolation. We must address to develop support and overcoming mechanisms, considering the capabilities inherent to each person. By sharing what we are living, we can develop experiences of belonging. Earth is our ship. And the bars we hold on to during this storm are us, each other. Our balance can shift depending on the moment. Taking turns in the support function, trying to keep the tenderness in looking at oneself and looking at the other.

Keywords: Pandemics. Coronavirus. Social Alienation. Anxiety. Empathy. Art

 

Vivemos agora algo que chegou de forma abrupta, atingindo a todos, e de consequências inimagináveis: a pandemia do novo coronavírus. Temos nos confrontado com experiências que vão além das realidades de nossos cotidianos. Somos os contadores da história que nos atravessa. Sabemos do passado pelo registro de gerações que não estão mais na Terra, exceto através de nós, seus descendentes. O bastão da história está conosco. Como estamos escrevendo este capítulo? Cada um de nós está vivendo sua experiência pessoal, com sua própria história como bagagem, em cenários diversos.

Temos que pensar nos efeitos em quem está na linha de frente e em quem está em isolamento, com medo do contágio, medo de contaminar os demais, medo do que está por vir... A solidão de quem está internado e a angústia de quem não pode sequer visitar. E, no pior dos desfechos, a perda de pessoas queridas e o luto conturbado.

Como pensar os efeitos do isolamento em nível global? Sabemos que não há, necessariamente, uma coincidência entre o sentimento de desamparo e solidão e estar fisicamente sozinho num local ou cercado de pessoas. E como afeta aqueles que não podem parar? Paradoxalmente, mesmo os profissionais de serviços essenciais, como os da saúde, estão tendo que se isolar dos seus. Há pessoas com a possibilidade de estar em ambientes confortáveis; outros precisam dividir espaços pequenos, sem infraestrutura. E mesmo sem necessidade urgente de sair, alguns não estão tolerando manter-se isolados.

Dispomos de ferramentas tecnológicas de comunicação que nos permitem compartilhar, muito rapidamente, nossas experiências pessoais, colaborando na construção de sentidos pessoais e coletivos. O isolamento pode causar tédio, desânimo, angústia... Podem ser vividos momentos de extremo pessimismo. Mas temos momentos de tranquilidade e a certeza de estar fazendo o necessário, nos quais é possível aproveitar o que está acontecendo para olhar para dentro e ao redor, repensar a vida, cuidando de si e dos outros.

A maior parte da humanidade parou. Geólogos reportaram diferenças nas medições sismológicas da Terra e menos ruídos em nosso planeta, sempre cheio de indústrias em produção, aviões voando, veículos em movimento. Contam que em Wuhan, na China, onde a pandemia teve início, depois de anos e anos de barulho foi possível ouvir os pássaros novamente.1

Em muitas cidades, as pessoas passaram a manter as janelas abertas e aproveitar o sol que entra. A tocar seus instrumentos, a cantar, se cumprimentar, bater palmas. Ocorrem manifestações de reconhecimento aos profissionais de saúde e aos que mantêm os serviços essenciais. Multiplicam-se ações solidárias. "Por mais que a ciência se desenvolva, o mar continua perigoso", nos diz Ishmael, em Moby Dick.2 Usemos todas as nossas ferramentas para atravessar essa tempestade, principalmente as alegrias, a esperança e a empatia. Procuremos nos fortalecer e perseverar compartilhando o conhecimento, aproveitando as diversas manifestações da arte e colocando em prática nossa solidariedade. Fazer o bem ao próximo é mais que caridade. Trata-se de um conceito de justiça social, como é descrito no importante princípio do judaísmo, a "tzedakah".3

O Papa Francisco compartilhou: "tribulações, entrega e paz". Nos caminhos tortuosos da vida, precisamos buscar a paz. Não uma simples tranquilidade, mas uma paz que chega ao âmago e fortalece nossa esperança.4

No xamanismo, existe um rito de passagem chamado "busca da visão". Consiste em passar alguns dias sozinho na floresta, sem água, sem comida, sem proteção. Ao término desse rito, acredita-se que a pessoa adquira uma visão nova do mundo, por ter enfrentado seus medos e suas dificuldades. É uma forma de encarar o que está acontecendo conosco agora.

Ao partilhar o que estamos vivendo, podemos desenvolver vivências de pertencimento. Citando Freud, "assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, também o indivíduo humano participa do curso do desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue seu próprio caminho de vida".5 Freud também relata que a explosão da Primeira Grande Guerra revelou a fragilidade de muitas coisas que até então sua geração acreditava que fossem sólidas: as descobertas da ciência, a ênfase nos direitos humanos, o respeito ao próximo.6 Naquele momento crítico, muitos adotaram retrocessos no seu comportamento e atitudes gravemente egoístas. Também podemos observar esses fenômenos atualmente: a negação da ciência, autoridades com a prepotência de propor ideias de pouca consideração com o valor da vida do outro. Mas, mesmo para quem insiste em negar, todos teremos que encarar com perplexidade que

o que se acreditava que fosse estável, não o é.

Estamos temerosos, já enfrentamos perdas humanas e materiais. É o momento para lembrar de outros tipos de bens: nossa sensibilidade, capacidade de generosidade, empatia, aprendizagem, adaptação, inventividade...

Estamos todos no mesmo barco. A Terra é nossa nau. E as barras nas quais nos seguramos, durante esta tempestade, somos nós, uns aos outros. Nosso equilíbrio pode alternar dependendo do momento. Revezando-nos na função de suporte, tentamos manter a delicadeza no olhar para si e para o outro.

Temos a oportunidade de reaprender a observar todas as maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora. Coisas que jamais irão se desfazer. Seria uma insensatez, um absurdo acreditar nisso. Depois de atravessar tudo isso, poderemos perceber que a descoberta da fragilidade daquilo que julgávamos permanente não lhe tirou seu valor. Pelo contrário! Talvez possamos reconstruir o que se perdeu em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.

 

REFERÊNCIAS

Gibney E. Coronavirus lockdowns have changed the way Earth moves: A reduction in seismic noise because of changes in human activity is a boon for geoscientists. Nature [Internet]. 2020 March 31. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-020-00965-x

Melville H. Moby Dick. 4a ed. Nova Cultural Ltda: São Paulo; 2002.

Charity (Tzedakah): What is Tzedakah [Internet]. Chicago: American-Israeli Cooperative Enterprise (AICE); 1999 [acesso em 2 maio 2020]. Disponível em: https://www.jewishvirtuallibrary.org/what-is-tzedakah

Papa Francisco. Meditações matutinas na santa missa celebrada na capela da Domus Sanctae Marthae:Conselho de Paulo. L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 19, 7 maio 2015. Disponível em:http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2015/documents/papa-francesco-cotidie_20150505_oconselho-de-paulo.html

Freud S. O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 1ª Ed. Imago: Rio de Janeiro; 1974. Volume XXI, cap. VIII, p. 165.

Freud S. Sobre a transitoriedade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 1ª Ed. Imago: Rio de Janeiro; 1974. Volume XIV, p. 344-348.