Relato de Caso
Reações alérgicas a venenos de formigas
Allergic reactions to ant poisons
Priscilla Filippo Alvin de Minas Santos; Bruna Piassi Guaitolini Vargas
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v19i2p50-53
Hospital Municipal Jesus, Ambulatório de Alergia e Imunologia - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Endereço para correspondência:
Recebido em: 28/05/2019
Aprovado em: 18/11/2019
Instituição: Hospital Municipal Jesus, Ambulatório de Alergia e Imunologia - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: As formigas são insetos sociais. A espécie Sonelopsis invicta é a mais comumente encontrada no Brasil, sendo frequente no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Os acidentes envolvendo crianças e adultos são comuns e podem causar reações locais e/ou sistêmicas graves.
OBJETIVO: Relatar um caso de reações alérgicas a venenos de formigas.
DESCRIÇÃO DO CASO: Paciente masculino, 9 anos, natural do Rio de Janeiro, apresentou dois episódios em locais diferentes de reações alérgicas locais extensas, com infecção secundária após ferroada de formigas-defogo. Iniciou acompanhamento médico especializado, sendo solicitada imunoglobulina E específica para formiga (Sonelopsis invicta) pelo método Immunocap, com resultado de 39,10 KUA/L (valor de referência < 0,10), confirmando o diagnóstico da reação alérgica.
COMENTÁRIOS: A reação local extensa ocorre em 19% das crianças. Pacientes que apresentaram reação local extensa têm risco aumentado entre 5 a 10% de reação sistêmica se ferroado novamente. O pediatra deve estar atento para o diagnóstico das reações, orientações especializadas, manejo e acompanhamento individualizado dos pacientes.
Palavras-chave: Venenos de formigas; Anafilaxia; Mordeduras e picadas.
Abstract
INTRODUCTION: Ants are social insects. The species Sonelopsis invicta is the most commonly found in Brazil, mainly in the South, Southeast and Midwest. Accidents involving children and adults are common and can cause serious local and/or systemic reactions.
OBJECTIVE: To report a case of allergic reactions to ant venoms.
CASE DESCRIPTION: Male, 9 years old, from Rio de Janeiro, presented two episodes at different sites of extensive local allergic reactions with secondary infection after stinging of fire ants. A specialized medical follow-up was initiated and specific ant immunoglobulin E (Sonelopsis invicta) was requested by the Immunocap method, with a result of 39.10 KUA/L (reference value <0.10), confirming the diagnosis of allergic reaction.
COMMENTS: The extensive local reaction occurs in 19% of children. Patients who have had extensive local reaction have an increased risk of 5 to 10% of systemic reaction if they are stented again. The pediatrician should be attending to the diagnosis of reactions, specialized guidelines, management and individualized follow-up of patients.
Keywords: Ant venoms; Anaphylaxis; Insect bites and stings.
INTRODUÇÃO
As formigas são insetos sociais, com ampla distribuição em áreas habitadas por seres humanos. As picadas desses insetos são comuns, com dados indicando que 56,6 a 94,5% da população geral já foi picada pelo menos uma vez na vida.1 A mais comumente encontrada no Brasil pertence à espécie Sonelopsis invicta (formiga-de-fogo), frequente no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. São frequentes também no sudeste dos Estados Unidos (EUA), com infestação em 13 estados,3 sendo considerada uma praga agrícola e um problema de saúde pública.4. A alergia a formiga-de-fogo é a causa mais frequente de hipersensibilidade aos himenópteros nessa região dos EUA, representando até 42% de todos os casos em áreas endêmicas.5 São conhecidas por causa de seus hábitos agressivos; suas ferroadas são dolorosas e comparadas ao fogo na pele.6 Seu veneno possui alcaloides e proteínas que podem causar hiperemia na pele, edema, pústulas, urticária, broncoespasmo, choque anafilático e até morte.7,8
A hipersensibilidade a formigas é uma das causas mais importantes de reações sistêmicas graves, com relato de fatalidades por anafilaxia após a ferroada que ocorre em áreas urbanas e rurais no mundo inteiro.9 Os acidentes envolvendo crianças e adultos são comuns, devido a sua ampla distribuição. Há inúmeros relatos de ferroadas por formiga-de-fogo em residências, inclusive em lares de idosos.3 Nos EUA, adultos com disfunção cognitiva e bebês têm sido vítimas de ataques por grande quantidade desses insetos em ambientes fechados.3 O diagnóstico pode ser realizado pela história clínica, exame físico, por testes in vivo e in vitro. O tratamento pode ser dividido em imediato e preventivo.
Este artigo descreve o relato de um paciente com reações alérgicas locais extensas após ferroadas de formigas em diferentes ocasiões, que evoluiu com infecção secundária.
DESCRIÇÃO DO CASO
JFRH, 9 anos, banco, masculino, residente em Paciência, natural do Rio de Janeiro, iniciou acompanhamento médico especializado para rinite alérgica e asma, com história positiva para rinite familiar e negativa para alergia a himenópteros. Durante as consultas, referiu estar brincando no quintal de casa quando recebeu uma ferroada por formigas-de-fogo em membro inferior direito (MID). Apresentou dor local, edema, eritema, sensação de queimação e coceira intensa. Evoluiu com pápula, posteriormente pústula estéril e edema extenso em MID. Após 48 horas procurou atendimento médico, tendo sido indicada internação por 7 dias, com uso de antibioticoterapia venosa por infecção secundária, corticoesteroide venoso e anti-histamínico oral. Recebeu alta com remissão completa da lesão.
Após dois meses, foi ferroado novamente por formigas em região genital, com edema peniano, eritema e dor intensa. A responsável medicou com anti-inflamatório por conta própria e procurou atendimento de emergência após 24 horas, sendo internado novamente com antibioticoterapia venosa, antihistamínico e corticoesteroides por 7 dias. Foi encaminhado para investigação com alergista e imunologista. Solicitou-se imunoglobulina E específica para formiga (Sonelopsis invicta) pelo método Immunocap, com resultado de 39,10 KUA/L (valor de referência < 0,10), confirmando o diagnóstico de reação alérgica.
O paciente e seus responsáveis receberam orientações especializadas apropriadas para evitar contato com insetos, e foram prescritas medicações para uso em caso de possíveis acidentes. A família também foi orientada sobre os sinais e sintomas de riscos de possíveis reações graves, para procurar atendimento médico.
DISCUSSÃO
O paciente vive no Rio de Janeiro, na Região Sudeste, onde é comum a presença de formigas-de-fogo. Foi relatado que a taxa anual de ataque desses insetos varia entre 13 e 58%.4 Mesmo uma breve exposição a áreas endêmicas pode resultar em taxas elevadas de picada e desenvolvimento de imunoglobulina E específica para Solenopsis invicta. Provavelmente, esse adolescente já tinha sido sensibilizado, pois após a ferroada apresentou dor com sensação de queimação e eritema local que evoluiu pápula, pústula estéril e edema extenso em diferentes ocasiões.
Na resposta à picada de formiga-de-fogo, ocorre uma erupção cutânea entre 25-50 mm de diâmetro, com formação de pápulas, e posteriormente vesículas com líquido claro que se transformam em pústulas estéreis em 24 horas.4 Em torno de 17 a 56% dos pacientes evoluem com reação local extensa, que são muito dolorosas e duram em torno de 24-72 horas.4 A reação local extensa ocorre em 19% das crianças. Pacientes que apresentaram reação local extensa têm risco aumentado entre 5 a 10% de reação sistêmica se ferroados novamente e devem ser orientados e acompanhados regularmente.9
A maioria das reações sistêmicas fatais acomete adultos maiores de 40 anos.11 Essas reações de hipersensibilidade são causadas pelos venenos de formigas, que são compostos de vários peptídeos biologicamente ativos com componentes proteicos (cada espécie tem uma variedade de proteínas alergênicas).2,11 São consideradas manifestações alérgicas as reações imediatas, que resultam de uma hipersensibilidade do tipo I, mediadas pela imunoglobulina E (IgE) a componentes reconhecidos como alérgenos contidos no veneno da formiga, em um paciente previamente sensibilizado.11
As reações de hipersensibilidade podem ser dividas em imediatas e tardias. As reações imediatas ocorrem minutos até 4 horas após a ferroada de formigas. Podem ser divididas em reações locais (dor, edema, eritema, calor e pústulas estéreis no local da ferroada) e locais extensas (reação maior que 10 cm de diâmetro, persistindo por mais de 24 horas), reação cutânea generalizada (prurido e urticária) e reação sistêmica (anafilaxia) .2
As reações anafiláticas são graves, podem se manifestar como urticária generalizada, edema laríngeo ou cutâneo, náuseas, vômitos, dor abdominal, broncoespasmo, perda da consciência e/ou colapso cardiovascular. Essas reações ocorrem em 0,6 a 5% dos casos.6,12
Baseando-se na anamnese relatada (o paciente morava em casa com quintal na área urbana, onde há presença de insetos, tipo e localização das lesões, sinais e sintomas associados), foi feita a correlação das manifestações clínicas apresentadas com a dosagem da IgE específica para Solenopsis invicta positiva no sangue (teste in vitro), determinando-se o diagnóstico.12 Durante a consulta com o especialista, ao exame físico o paciente não apresentava mais lesão.
É importante lembrar que, em pacientes com história de reação alérgica, os sinais vitais devem ser avaliados e as possíveis lesões cutâneas investigadas. Uma vez confirmado o diagnóstico, o paciente e seus familiares receberam orientações, a fim de prevenir novas exposições aos insetos e possíveis reações. O paciente deve usar um cartão contendo seus dados, a alergia identificada e ter um plano terapêutico prescrito pelo médico assistente, em caso de um incidente.12 Neste caso, não houve anafilaxia.
A prevalência de anafilaxia por picada de inseto é baixa em crianças pequenas, mas há um aumento com a idade.10 Independentemente da especialidade, o médico deve identificar os sinais e sintomas de gravidade e prescrever a adrenalina nos quadros de anafilaxia, que muitas vezes é subdiagnosticada.13
A dose de adrenalina usada nos casos de anafilaxia é de 0,01mg/Kg até 0,3mg para crianças, e 0,3 a 0,5mg para adultos, diluída numa solução de 1:1.000 (1mg/mL), por via intramuscular. Adrenalina autoinjetável deve ser prescrita para pacientes com história prévia de reações graves.2,13 Os casos potencialmente fatais de anafilaxia estão relacionados à subutilização da adrenalina.12,13
A presença de outra doença alérgica, como rinite e asma, não parece constituir fator de risco para desencadear reação sistêmica após a picada de inseto himenóptero.14 Espera-se que, brevemente, seja disponibilizada para venda no Brasil a adrenalina autoinjetável.13 O paciente e seus familiares devem ter uma prescrição de anti-histamínicos e corticoesteroides para uso em caso de reações por 5 a 7 dias, devendo ser orientados a procurar atendimento médico de emergência mais próximo. Em alguns países, como na Austrália, existe um plano de ação para anafilaxia, em que o paciente tem um cartão com os dados pessoais e orientações para o uso da EpiPen® ou EpiPen® Jr.10
O único tratamento que pode potencialmente prevenir reações sistêmicas adicionais à picada é a imunoterapia com veneno, que é relatada como eficaz em 97-98% dos pacientes tratados com veneno de formiga, além de ter um impacto benéfico na qualidade de vida desses pacientes.1,14 Imunoterapia específica para venenos de formiga-de-fogo pode ser considerada para adultos e crianças com reações sistêmicas com teste cutâneo de leitura imediata (Prick test) ou anticorpos específicos IgE mediados positivos (documentando sensibilização ao veneno do inseto). Em crianças com reações cutâneas por formiga-defogo com risco de alta exposição, tal indicação deve ser avaliada. A imunoterapia específica não é indicada se não for possível verificar a sensibilização ao veneno de insetos.1 Quando bem indicada, a imunoterapia permite evitar recorrências de reações graves induzidas por veneno de himenópteros.13,15 Estudos relatam que a dessensibilização a venenos de himenópteros é eficaz em crianças, com uma duração média de pelo menos 7-8 anos, assim como nos adultos.16
As medidas profiláticas para evitar ferroadas de insetos também fazem parte do tratamento, tais como: dedetizar o domicílio, evitar deixar restos de alimentos pela casa, manter a lixeira fechada, evitar locais com concentração de insetos, evitar andar com os pés descalços próximo a piscinas ou em jardins, evitar atividades como jardinagem, evitar fazer piquenique, usar roupas com mangas compridas, entre outros.1,4
O pediatra deve estar atento ao diagnóstico das reações, orientações e manejo individualizado dos pacientes. O acompanhamento dos pacientes alérgicos com alergista e imunologista é fundamental.13
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