Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 17(3) - Outubro 2017

Editoriais

Razões para brincar

 

Márcia de Oliveira Gomes Gil

Psicóloga, Mestre e Doutora em Educaçao pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora de políticas públicas educacionais para a primeira infância. Coordenadora da Pós-Graduaçao em Docência na Educaçao Infantil da Universidade Castelo Branco. Membro do Comitê de Saúde Escolar da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro

 

 

Feche os olhos por um momento e imagine que você está cercado de crianças. Pode ser uma festa, um encontro, um parque ou até mesmo uma reunião familiar. O que você ouve? O que você vê? Possivelmente suas respostas incluem sons e ações que remetem a brincadeiras e situações lúdicas. A relação que fazemos entre as crianças e a brincadeira é direta, fruto das nossas experiências enquanto crianças e das experiências que temos com outras.

Mas será que as crianças de hoje brincam da mesma forma que nós brincamos? Será que têm o mesmo tempo que tínhamos para brincar?

A brincadeira acompanha as modificações históricas e sociais, sofrendo alterações na forma e no conteúdo daquilo que é brincado, assim como no tempo que é reservado para que essas brincadeiras aconteçam. Este é o tema central dessa discussão que aqui se inicia.

Há muitos anos existe o reconhecimento por parte de filósofos, psicólogos, sociólogos e educadores de que as brincadeiras são importantes para a formação e constituição psicológica do ser humano.

A Psicologia, ciência pioneira no estudo da infância, estruturou, ao longo dos tempos, conhecimentos relacionados com diversas facetas do desenvolvimento infantil, particularmente as relativas ao brincar.

Mesmo considerando as diferenças epistemológicas entre os vários pesquisadores que investigaram esse tema no campo psicológico, a maioria chegou a conclusões positivas sobre o valor da dimensão simbólica e lúdica das brincadeiras como elementos fundamentais para a socialização, aprendizagem e desenvolvimento do ser humano. Por isso, as funções do brincar devem ser valorizadas em todos os níveis da vida.

Podemos elencar alguns benefícios da brincadeira na visão de alguns dos principais teóricos do desenvolvimento humano.

Para Jean Piaget,1 brincar é desenvolvimento e aprendizagem. É a partir da ação que a criança desenvolve sobre o meio físico e social, e que se constroem as estruturas de pensamento. Assim sendo, diante de um conflito ou uma novidade, ela busca novas estratégias para compreender os problemas que surgem, reorganizando, do mesmo modo, suas estruturas de pensamento e possibilitando outras mais complexas. A brincadeira evolui numa tendência que segue o trajeto dos jogos de exercício (construções), jogos simbólicos (faz de conta, desenhos, imitações etc.) e jogos com regras explícitas (por exemplo, amarelinha, bola de gude, xadrez etc.). A criança, ao brincar, procurando representar a realidade em que vive, depara-se com situações problemáticas que tenta resolver.

Para Lev Vygotsky,2 o brincar atende às necessidades da criança. Na brincadeira a criança sempre age como se ela fosse maior do que é na realidade, aproximando-se, assim, de seu potencial. Vygotsky enfatiza que, ao brincar, a criança entra em contato com regras - tanto aquelas que repete do mundo adulto como as que constrói para dar sentido à brincadeira. Dessa forma, nas interações sociais dos momentos de brincadeira há diferentes possibilidades de desenvolvimento.

Para teóricos da Psicanálise, como Melaine Klein,3 as representações simbólicas possibilitam elaborações afetivas. A simbolização autoriza à criança transferir não apenas interesses mas também fantasias, ansiedades e culpa a outros objetos, além de pessoas. Essa projeção da atividade psíquica na brincadeira permitiria a qualquer adulto ter acesso a esse mundo interior das crianças. Nessa perspectiva, a criança, ao brincar, estará representando e reelaborando seus medos, suas angústias, suas ansiedades e seus desejos.

Embora o preenchimento das necessidades, estudado por Vygotsky,2 a ideia de elaboração afetiva, destacada por Melanie Klein,3 e os princípios interativos, descritos por Piaget,1 sejam necessários e fundamentais para se compreender o brincar, eles são insuficientes. É preciso também considerar elementos próprios do campo sociocultural.4

O brincar gira em torno da cultura lúdica, que é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que tornam a brincadeira possível, com a incorporação de aspectos da cultura em que a criança vive. A criança, o adolescente ou o adulto, ao representar uma situação, necessariamente o faz(em) partindo das relações sentidas ou vivenciadas no ambiente e na cultura. O brincar de uma criança no Brasil é, portanto, diferente do brincar de uma criança em qualquer outro país, o que nos permite entender que há raízes sociais e culturais nas diferentes formas do brincar. Dessa forma, assimilam nas construções simbólicas as regras e os papéis sociais com os quais convivem. As crianças, ao representar, conhecem e incorporam a realidade. Com a interiorização das regras e dos papéis sociais, a criança constrói formas imaginárias, apoiando suas próprias criações em esquemas que são os mesmos encontrados em sua trajetória cultural e de relações com objetos e pessoas. Assim, inclui-se na cultura.

Logo, podemos afirmar que os jogos e as brincadeiras preparam para a convivência social e democrática. Os valores próprios da convivência, do respeito e da solidariedade se consolidam a partir das vivências dos jogos e de suas regras.

As funções do brincar descritas anteriormente justificam sua inserção, ressignificação e valorização. Fazê-lo no contexto cotidiano - sem dúvida - é uma tarefa árdua e criativa, outorgada a pais e educadores, que infelizmente vem, no entanto, adquirindo um status de atividade menos importante.

O brincar ou a brincadeira é a atividade principal da criança. Uma ação livre, iniciada e conduzida por ela. Um exercício de autonomia, no qual a criança pode tomar decisões, expressar sentimentos, lidar com valores, conhecer a si mesma, aos outros e ao mundo em que vive.

Brincar permite a representação e repetição de ações, a ampliação da atividade criadora, o compartilhamento de aprendizagens, a afirmação e exploração da identidade da criança, a representação e recriação do mundo à sua volta. Dessa forma, o indivíduo vai se apropriando de novas culturas, na medida em que a ele são apresentados novos repertórios e possibilidades.

Brincar é compartilhar, é socializar e interagir. É assim que as crianças vão conhecendo o mundo e recriando situações. Assim elas se desenvolvem.

Queremos crianças criativas, participativas, curiosas, investigativas e críticas? Se a resposta a esta pergunta for sim, pense seriamente em oportunizar tempos e espaços para brincar.

Brincar remete a brinquedos. E muitos pensam que a falta desses materiais estruturados e elaborados com essa intenção pode trazer dificuldades para a brincadeira. Na verdade não é assim. Considere que caixas de papelão, panelas, papéis, tintas, roupas e outros apetrechos, não necessariamente vistos como brinquedos, são excelentes materiais para o exercício da criatividade e inventividade infantil.

Mas o desafio da brincadeira não para por aí. O mundo da pressa e do pronto confere às brincadeiras um desvalor, presente em expressões como "hora de fazer nada" ou "hora de descarregar as energias", reservada apenas para algum pequeno momento da rotina das crianças. Essa visão é encontrada em escolas e espaços familiares.

Na escola, tais posturas, antes mais presentes na educação de crianças a partir de 7 anos, pode ser já verificada nas instituições voltadas para as crianças menores, com a valorização e exigência de tarefas cada vez mais burocráticas.5 Com a crescente pressão social e política para que a alfabetização se concretize cada vez mais cedo, mesmo instituições e professores que trabalham com crianças de 0 a 5 anos vêm sentindo reflexos que trazem consequências na valorização dada ao brincar, refletidas na prática pedagógica cotidiana.

Nas famílias, as interações e as brincadeiras vêm sendo substituídas por inúmeras atividades, como aulas e esportes, destinando o pouco tempo livre das crianças à utilização de equipamentos eletrônicos, vídeos e TV. Para além do prejuízo das relações, considere que o excesso de atividades direcionadas prejudica o desenvolvimento da autonomia.

É necessário repensar tais práticas e orientar as famílias a permitir e incentivar as brincadeiras infantis, especialmente aquelas nas quais há a participação de outras crianças e/ou adultos. Brincar é terapêutico para todos que brincam - sejam crianças ou adultos.

Há muitas razões para brincar. Negar o universo simbólico, lúdico, é negar o direito ao pleno desenvolvimento humano e à sua inserção cultural.

Brincar é coisa muito séria! E, nos dias atuais, uma ousadia. É preciso ousar. É preciso brincar.

 

REFERÊNCIAS

1 Piaget LE. A formação do símbolo na criança. Trad.: A. Cabral e C. M. Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar; 1971.

2 Vygotsky LS. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Coleção Psicologia e Pedagogia. Nova Série. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes; 1989.

3 Klein M. The writings of Melanie Klein: love, guilt and reparation and other works 1921-1945. v. 1. New York: The Free Press; 1975.

4 Brougère G. Brinquedo e cultura. Coleção Questões da Nossa Época, v. 43, 3. ed. São Paulo: Cortez; 2000.

5 Gil MOG, Pimentel AP. O brincar na infância: velhas questões e novos desafios. IV Colóquio Internacional Educação, Cidadania e Exclusão, 2015.