Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 17(2) - Junho 2017

RELATOS DE CASO

Desnutrição energético-proteica grave no lactente causada por hipogalactia materna: relato de caso

Severe protein energy malnutrition in the infant caused by maternal hypogalactia: case report

 

Ana Carolina Bechara Abraao1; Maria Fernanda Marranghelo D'Amico2; Fatima Regina de Almeida Patiño3

1. Residente em Pediatria no Conjunto Hospitalar do Mandaqui
2. Gastroenterologista Pediátrica. Médica da Enfermaria, Preceptora e Coordenadora da Residência Médica de Pediatria do Conjunto Hospitalar do Mandaqui
3. Gastroenterologista Pediátrica. Médica da Enfermaria e Preceptora de Pediatria do Conjunto Hospitalar do Mandaqui

 

Endereço para correspondência:

carol-bechara@hotmail.com

Recebido em: 11.02.2017
Aprovado em: 10.04.2017
Instituiçao: Conjunto Hospitalar do Mandaqui

 

Resumo

OBJETIVO: descrever um caso de desnutrição energético-proteica grave no lactente causada por hipogalactia materna.
DESCRIÇÃO DO CASO: lactente encaminhada de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) por perda de peso importante detectada em consulta de rotina, para investigação da causa da desnutrição. Foram realizados diversos exames, cujos resultados estavam dentro da normalidade, chegando-se à conclusão que a hipogalactia materna foi o agente causador. A criança ficou internada recebendo suplementação alimentar com fórmula láctea apresentando rápida recuperação do peso.
DISCUSSÃO: a desnutrição severa representa um grave problema de saúde pública. Cuidados de base comunitária apresentam um baixo custo de intervenção e podem ser uma estratégia mais condizente com a realidade dos países em desenvolvimento.

Palavras-chave: Transtornos da lactaçao. Desnutriçao proteica. Aleitamento materno.


Abstract

OBJECTIVE: describe a case of severe protein energy malnutrition in the infant caused by maternal hypogalactia.
CASE DESCRIPTION: infants referred by a Basic Health Unit (UBS) for significant weight loss detected in a routine visit, to investigate the cause of malnutrition. A number of tests were performed, the results of which were within normal limits, and it was concluded that maternal hypogalactia was the causative agent. The child was hospitalized receiving dietary supplementation with milk formula presenting a rapid recovery of weight.
DISCUSSION: severe malnutrition represents a serious public health problem. Community-based care has a low intervention cost and may be a strategy more in keeping with the reality of developing countries.

Keywords: Lactation disorders. Protein malnutrition. Breast feeding.

 

INTRODUÇÃO

O aleitamento materno é a alimentação ideal para o crescimento e desenvolvimento adequado dos lactentes, podendo ter influências emocionais e modificar biologicamente a saúde das mães e suas crianças.1

A hipogalactia é causa mais frequente de desmame precoce, gerando uma interrupção na ligação mãe-bebê existente através da amamentação. Ocorre normalmente por erros na técnica de amamentação, quando não se valoriza o processo de esvaziamento das mamas, sucção e pega adequada e quanto à ignorância sobre os fatores envolvidos na lactação. No geral, fatores biológicos e psicológicos atuam no desenvolvimento da lactação insuficiente, que pode levar à desnutrição.1

Globalmente, a insuficiência da lactação é um problema de saúde pública, pois a substituição do leite materno por outra fonte de alimentação aumenta o risco de morbimortalidade infantil por desnutrição nos países em desenvolvimento, cuja incidência varia de 23% a 63% durante os quatro primeiros meses após ausência de aleitamento materno ou durante o período de lactação insuficiente.1,2

O objetivo deste relato é descrever o caso de uma lactente com desnutrição energético-proteica grave causada por hipogalactia materna.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente do sexo feminino, com dois meses e seis dias de idade, encaminhada de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) ao nosso serviço por perda de peso importante detectada em consulta de rotina. Mãe negava febre, alterações urinárias ou intestinais e doenças prévias, relatando ainda mama apenas no seio materno, a cada três horas, com pega adequada e posicionamento correto do lactente.

De acordo com a carteira da criança, a mãe havia realizado dez consultas de pré-natal, negando o uso de drogas ilícitas, bem como tabagismo e etilismo. A paciente nasceu a termo, com 40 semanas, de parto normal, sem intercorrências, com peso de 3.470 g e estatura de 49 cm, recebendo alta junto com a mãe após 48 horas, com peso de 3.190 g e perímetro cefálico (PC): 35 cm.

História do crescimento, desenvolvimento e vacinação estavam adequados para a idade. Em uso de aleitamento materno exclusivo.

Em relação à história familiar, não tinha irmãos, pai hígido, mãe asmática, com 31 anos. A família morava em casa de alvenaria, com saneamento básico e rede de esgoto.

Fez três consultas de rotina prévias, pois o posto de saúde apresentava com frequência problemas com o funcionamento da balança e a ausência de médico, com os seguintes dados antropométricos anotados:

a) 18 dias de vida - P = 2.930 g, E = 50,5 cm, PC = 35 cm;

b) dois meses - P = 2.670 g, E = 52 cm, PC = 37 cm;

c) dois meses e cinco dias - P = 2.530 g, E = 52 cm, PC = 37 cm.

Ao exame físico: regular estado geral, ativa, reativa, anictérica, acianótica, afebril, descorada +/4+, hidratada, aparelho cardiorrespiratório sem alterações, abdome flácido, escavado, com ruídos hidroaéreos presentes, sem massas ou visceromegalias palpáveis. Extremidades com boa perfusão, sem edemas visíveis. Apresentava escassez de tecido celular subcutâneo, atrofia de musculatura da região glútea, com pregas cutâneas exacerbadas (Figura 1). Peso: 2.495 g (escore Z P/I < -3), estatura: 51,8 cm (escore Z E/I < -2).

 

 

a) Exames laboratoriais de entrada:

b) hemoglobina - 10,2;

c) hematócrito - 30;

d) plaquetas - 345 mil;

e) leucócitos - 6.220;

f) proteínas - 5,9;

g) albumina - 3,1;

h) transaminase glutâmica oxalacética (TGO) - 850;

i) transaminase glutâmica pirúvica (TGP) - 966;

j) gama glutamil transferase (GGT) - 178;

k) fosfatase alcalina - 111;

l) TORCHS - negativas;

m) HIV - negativo;

n) glicemia - 70.

Feito diagnóstico de desnutrição energético-proteica grave, foi colocada em soro de manutenção basal com oferta hídrica de 100 ml/kg, introduzindo fórmula láctea de primeiro semestre de 30 ml a cada três horas, aceita vorazmente pela criança, complementar ao leite materno. Mãe foi orientada quanto ao posicionamento adequado da criança durante a amamentação, pega correta do seio materno e importância do esvaziamento total de um seio antes da mudança para o contralateral.

Ao ser indagada sobre o estado nutricional da lactente, informou desconhecer que a aparência emagrecida da filha fosse considerada anormal e que, até passar pela última consulta médica na unidade de saúde, nunca foi informada sobre o ganho de peso inadequado da criança.

Solicitados posteriormente ecocardiograma, ultrassonografia de abdome total, tomografia computadorizada (TC) de crânio, ionograma, bilirrubina total e frações, urina 1 e urocultura não mostraram alterações. Os níveis alterados das enzimas hepáticas foram posteriormente associados ao estado de desnutrição e normalizados em sete dias.

O soro de manutenção foi progressivamente reduzido até ser suspenso e a quantidade de fórmula láctea foi aumentada devido à boa aceitação pela criança e ganho de peso diário:

a) três dias após introdução da fórmula - 2.655 g (ganho de 160 g = 53,3 g/dia);

b) cinco dias após introdução da fórmula - 2.735 g (ganho de 240 g = 48 g/dia).

Teve alta hospitalar após 12 dias de internação com 2.995 g e 52,5 cm (ganho de 500 g = 41,6 g/dia), com melhora considerável da aparência. Devido à evolução clínica favorável após introdução da fórmula infantil complementar ao leite materno e a diversos exames laboratoriais e de imagem sem alterações, a hipogalactia foi considerada a causa da desnutrição energético-proteica. Orientada a permanecer em aleitamento materno com complementação de 90 ml de fórmula infantil. Solicitado retorno após sete e 28 dias para reavaliação médica:

a) retorno após sete dias da alta, com dois meses e 24 dias - P = 3.310 g, E: 52,9 cm (ganho de 45 g/dia);

b) retorno após 28 dias da alta, com três meses e 22 dias - P = 4.530 g, E: 53,5 cm, PC: 35 cm (ganho de 43,5 g/dia), sendo então encaminhada ao posto de saúde para dar continuidade ao acompanhamento de puericultura (Figura 2).

 

 

DISCUSSÃO

No Brasil, entre 2003 e 2008, houve uma redução na taxa de desnutrição em aproximadamente 62% nas crianças menores de cinco anos, totalizando um valor de 4,8%.3 Em 2012, segundo relatórios das Nações Unidas, o país diminuiu pela metade o número de pessoas passando fome, apresentando a menor quantidade de indivíduos subalimentados entre os países mais populosos, com 3,4 milhões de pessoas, correspondendo a menos de 10% da quantidade total da América Latina, com 34,3 milhões.4

Crianças severamente desnutridas são levadas ao médico quando apresentam uma doença aguda, que auxilia na transição entre marasmo (adaptação nutricional) e kwashiorkor, em que a adaptação não é mais adequada. Neste relato, a criança foi encaminhada ao hospital devido à perda de peso evidente, sem nenhuma comorbidade associada, o que ocorre em uma minoria dos casos.5

O grau de desnutrição aguda e crônica, definido como perda ponderal e deficit de estatura linear, respectivamente, pode ser avaliado por meio das medidas antropométricas. No início do processo de desnutrição, há deficit de peso, seguido do deficit de estatura e, por último, diminuição do PC. Estimar a gravidade e duração do período de privação nutricional ajuda na reabilitação da criança que está desnutrida.6

Quanto à avaliação clínica, o kwashiorkor é definido como o aporte insuficiente de proteínas, com consumo calórico adequado. No marasmo, há redução dos estoques de gordura no organismo e perda de massa muscular, sendo considerada a forma de desnutrição proteico-calórica mais comum. Geralmente, as crianças com marasmo podem apresentar constipação severa e fome voraz durante o processo de realimentação. No exame físico podem ser observados reduzido peso e altura para a idade, aparência de magro e fraco, hipotensão, hipotermia, pele fina e seca, redundância de dobras cutâneas e cabelo fino e esparso, que é facilmente arrancado.7

A paciente do relato foi classificada como desnutrida do tipo marasmática por apresentar grande parte das características clínicas descritas acima, principalmente pele fina, dobras cutâneas exacerbadas e fome voraz durante o processo de realimentação, com rápida recuperação do peso a partir do início da suplementação alimentar.

O protocolo para a gestão de crianças gravemente desnutridas, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) consiste em três fases: estabilização do quadro, reabilitação e acompanhamento.7,8

Na fase inicial deve ser feito o manejo da hipoglicemia, hipotermia e desidratação, bem como a detecção e o tratamento de infecções. A alimentação deve ser iniciada nesta época e aumentada progressivamente após a primeira semana, quando a fase de reabilitação começa.6 Nossa paciente apresentou um bom aceite da alimentação complementar durante esse período, ficando inicialmente em uso de soro de manutenção basal a fim de evitar o desevolvimento de desidratação e hipoglicemia.7

A fase de reabilitação dura de duas a seis semanas. Nesse período, os responsáveis pela criança, principalmente a mãe, são treinados para continuar os cuidados em casa, devendo também ser investigados e abordados todos os problemas sociais existentes. Por fim, na fase de acompanhamento, deve ser feito o seguimento do desenvolvimento físico, mental e emocional da criança após a alta.7,8

A mãe da nossa paciente foi insistentemente orientada sobre modo de preparo da fórmula infantil, bem como a importância de associá-la como complemento ao leite materno que deveria ser oferecido de modo adequado, respeitando as técnicas de amamentação, até que o aleitamento materno exclusivo fosse suficiente para suprir as necessidades da criança. Posteriormente, foi acompanhada no serviço com algumas consultas de retorno, nas quais foi verificado ganho progressivo de peso e retiradas as dúvidas que os responsáveis tinham em relação à alimentação da menor, sempre enfatizando a importância de manter o aleitamento materno.

Estudos da OMS mostram que a convicção de não ter leite suficiente é uma das principais causas de interrupção do aleitamento materno. A meta do profissional da saúde, portanto, é estimular o aleitamento, dando assistência a todo o processo de amamentação.

A desnutrição é um grave problema de saúde pública, pois a qualidade de vida dos afetados não melhora com o tratamento paliativo. Estimular os cuidados de base comunitária apresenta um baixo custo de intervenção e pode ser a estratégia mais condizente com a realidade dos países em desenvolvimento.

 

REFERÊNCIAS

1 Sultana A, Rahman KUR, Manjula MS. Lactation insufficiency and treatment. Medical Journal of Islamic World Academy of Sciences. 2013;21(1):19-28.

2 Kent JC, Prime AK, Garbin CP. Principles for maintaining or increasing breast milk production. J Obstet Gynecol Neonatal Nurs. 2012;41(1):114-21.

3 Secretaria de Comunicação Social do Brasil. Blog do Planalto [homepage na internet]. Em cinco anos, desnutrição infantil cai 62% no Brasil - Jun. 2010. [Acesso em 04 fev 2013]. Disponível em: http://blog.planalto.gov.br/em-cinco-anos-desnutricao-infantil-cai-62-no-brasil/

4 Food and Agriculture Organization of United Nations. O Estado da insegurança alimentar no mundo. Relatório 2014. Brasília 2014. [Acesso em 01 fev 2016]. Disponível em: http://www.fao.org.br/download/SOFI_p.pdf

5 Forrester TE, Badaloo AV, Boyne MS, Osmond C, Thompson D, Green C et al. Prenatal factors contribute to the emergence of kwashiorkor or marasmus in severe undernutrition: evidence for the predictive adaptation model. PLoS One. 2012;7(4):e35907.

6 Nichols BL. Malnutrition in developing countries: clinical assessment. UpToDate. Dez 2015.

7 Phillips SM, Jensen C. Micronutrient deficiencies associated with malnutrition in children. UpToDate. Jul 2016.

8 Klish WJ, Nichols BL. Severe malnutrition in children in developing countries: treatment. UpToDate. Mai 2016.