Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 17(2) - Junho 2017

RELATOS DE CASO

Prolapso de uretra em pré-púbere: relato de caso

Pre-puberty urethral prolapse: case report

 

Nathane Santanna Felix1; Fernanda Pinto Mariz2; Ana Lúcia Ferreira3

1. Estudante de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro
2. Doutora em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora-Adjunta na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro
3. Doutora em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fundaçao Oswaldo Cruz. Professora-Associada na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Endereço para correspondência:

nathanefelix@gmail.com

Recebido em: 06.12.2016
Aprovado em: 05.01.2017
Instituiçao: Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Resumo

OBJETIVO: relatar e discutir um caso de sangramento vaginal por prolapso de uretra, no qual foi levantada a suspeita de abuso sexual.
DESCRIÇÃO DO CASO: criança de dois anos e 11 meses de idade apresentou início súbito de sangramento vaginal intenso após um período de tempo em que esteve brincando em área externa ao domicílio sem supervisão. Houve suspeita de abuso sexual pelos pais, afastada após exame ginecológico, que identificou prolapso de uretra. Foi realizada a ressecção da porção evertida da uretra, com resolução do quadro.
DISCUSSÃO: o abuso sexual deve ser sempre cogitado em pacientes com sangramentos urogenitais, entretanto este caso ilustra a importância de considerar outros diagnósticos diferenciais. A identificação do prolapso de uretra nesta paciente possibilitou não só a resolução do quadro, como também a tranquilização dos familiares quanto à suspeita de abuso.

Palavras-chave: Pré-escolar. Abuso sexual na infância. Doenças uretrais. Prolapso.


Abstract

OBJECTIVE: to report and discuss a case of vaginal bleeding due to urethral prolapse in which we suspected of sexual abuse.
CASE DESCRIPTION: a two-year and 11-month-old child had sudden onset of severe vaginal bleeding after a period of time playing outside her home without supervision. There was suspicion of sexual abuse by the parents. She was taken to the hospital and her gynecological examination showed urethral prolapse. We resected the everted portion of her urethra, with symptom resolution.
DISCUSSION: sexual abuse should always be considered in patients with urogenital bleeding; however, this case illustrates the importance of considering other differential diagnoses. Identifying urethral prolapse in this patient made it possible not only to resolve the condition, but also to reassure the family against the suspected abuse.

Keywords: Child, preschool. Child abuse, sexual. Urethral diseases. Prolapse.

 

INTRODUÇÃO

Muitas vezes o pediatra é o primeiro a ter contato com crianças que apresentam quadro clínico cuja causa pode ser acidente, violência ou alguma patologia, sendo importante que saiba conduzir adequadamente o esclarecimento da situação. Um desses quadros é o sangramento urogenital que frequentemente leva à suspeita de abuso sexual, mas pode ter outras causas. Dentre elas está o prolapso uretral, uma condição rara em meninas pré-púberes, que, por isso leva à confusão com outras causas de sangramento perivaginal.1

Este artigo tem como objetivo relatar e discutir um caso de sangramento vaginal por prolapso de uretra, no qual foi levantada a suspeita de abuso sexual. Acreditamos que a divulgação dessa rara ocorrência chame a atenção dos profissionais de saúde para a relevância da investigação das causas do sangramento vaginal, considerando todas as possibilidades diagnósticas, sem deixar de pensar na proteção da criança, mas evitando atitudes desnecessárias.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Criança de dois anos e 11 meses de idade, sexo feminino, com suspeita de abuso sexual foi atendida no Ambulatório de Pediatria Geral do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os pais referiam que no dia anterior a pré-escolar havia apresentado início súbito de sangramento vaginal intenso, após um período de tempo em que esteve brincando em área externa ao domicílio, sem supervisão. Os pais, preocupados com a possibilidade de abuso sexual, levaram imediatamente a criança para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) mais próxima de sua residência. Não havia pediatra no local, mas o médico que a atendeu também suspeitou de abuso sexual devido à grande monta do sangramento e às circunstâncias relacionadas ao início dos sintomas, orientando que procurassem um serviço especializado. Durante o atendimento no Ambulatório de Pediatria Geral do IPPMG, o pai informou que desde o início do quadro sua filha não parecia sentir dor ou apresentar qualquer mudança de comportamento, mas que ainda assim suspeitou de abuso e chegou a questionar a criança sobre um determinado vizinho ter "mexido" na genitália, mas ela negou. Segundo ele, sua filha é uma criança "que conta até se alguém encostar no braço dela". Apesar da suspeita de abuso sexual levantada inicialmente pelos pais e pelo médico da UPA, o pai relatou que após conversar com a filha achou esta hipótese pouco provável. No consultório, a criança estava tranquila, brincando, subindo e descendo da cadeira sem demonstrar qualquer desconforto durante a anamnese e o exame físico geral. Ao despi-la, verificou-se que ela estava com um absorvente higiênico embebido em sangue vivo. O exame físico geral estava completamente normal, mas como a criança mostrou resistência ao exame da genitália, optou-se por encaminhá-la ao Serviço de Ginecologia. No atendimento ginecológico a criança estava tranquila e não se opôs ao exame. Foi verificada, na ocasião, a alteração na genitália com aspecto típico de prolapso de uretra (Figura 1), sem outras lesões, com hímen íntegro e sem lesão na região anal, não sendo reforçada a hipótese de abuso sexual. O tratamento proposto foi a ressecção da porção evertida da uretra, com resolução do quadro (Figura 2).

 

 

 

 

DISCUSSÃO

O sangramento genital em pré-púberes deve ser sempre investigado. Dentre as causas destacam-se trauma, abuso sexual, corpo estranho, puberdade precoce, vaginites infecciosas, tumores genitais, líquen escleroso e prolapso de uretra. A prevalência varia entre os estudos, sendo o prolapso de uretra uma causa rara nesta faixa etária.2 O abuso sexual é, na maioria das vezes, a principal hipótese diagnóstica considerada tanto pelos médicos como pelos responsáveis.3,4

O prolapso de uretra é frequentemente visto em mulheres pós-menopausa, sendo raro em meninas pré-púberes,4 acometendo uma a cada 3.000 crianças.5 É uma condição benigna, que ocorre quando a mucosa da uretra é evaginada por meio do meato uretral, causando sangramento abundante devido à friabilidade dessa mucosa.6 O prolapso é caracterizado pela eversão circular completa da mucosa uretral através do meato uretral externo. Há congestão vascular e o aparecimento de uma massa polipoide friável.7

Quando sintomático, a apresentação clínica do prolapso de uretra em pré-púberes é principalmente sangramento urogenital, ocorrendo especialmente em meninas entre dois e dez anos de idade.8 Distúrbios miccionais como disúria e retenção urinária são raros nesta faixa etária.8 Dor em região genital pode estar presente nos casos em que ocorre evolução para trombose, ou, ainda, naqueles em que uma área extensa da mucosa uretral encontra-se prolapsada.9 No caso apresentado, o único sintoma foi o sangramento intenso.

A fisiopatologia é pouco conhecida, porém as causas propostas para o prolapso de uretra são: suporte inadequado das estruturas periuretrais, fraqueza da submucosa, aumento da pressão intra-abdominal e disfunção neuromuscular, tendo início antes da puberdade ou pós-menopausa, quando os níveis de estrogênio estão baixos.10

Em um estudo envolvendo 58 crianças com prolapso de uretra, foram identificados trauma perineal, constipação, diarreia e tosse intensa como possíveis fatores de risco associados.11 Também foi proposto que o sobrepeso e a obesidade podem aumentar a susceptibilidade de prolapso de uretra na infância.10 A criança relatada neste caso não apresentava qualquer comorbidade associada.

O diagnóstico é clínico, baseado na anamnese e no exame físico. Tipicamente observa-se uma massa no introito vaginal em forma de rosquinha, com eritema e edema e com a uretra no centro da massa. Pode haver um aspecto gangrenoso e a massa pode cobrir toda a vulva.7 Apesar do aspecto característico ao exame físico, nem sempre o prolapso de uretra em crianças é diagnosticado em um primeiro atendimento. Em geral, assim como ocorreu com a paciente descrita, pré-púberes com sangramento genital são atendidas inicialmente em serviços de emergência, recebendo na maioria das vezes o diagnóstico de abuso sexual.3,4

Na paciente relatada, a visualização da lesão característica possibilitou o diagnóstico de prolapso de uretra. Apesar de traumas, incluindo aqueles gerados por abuso sexual, serem considerados como fatores externos que possam favorecer o prolapso de uretra,9 neste caso, apesar de uma história clínica sugestiva, causas traumáticas que levassem a tal volume de sangramento certamente seriam acompanhadas de outros sintomas. Desta forma, considerando o exame físico e o comportamento da criança, a associação com abuso sexual foi descartada.

O tratamento clínico é baseado em banhos de assento e aplicação de estrogênio tópico. Quando o prolapso não regride, a ressecção cirúrgica da mucosa prolapsada pode ser necessária. Entretanto, o tratamento conservador, muitas vezes, não é satisfatório, havendo persistência do sangramento e do desconforto durante o tratamento.8

A cirurgia, por outro lado, é simples, com baixo risco de complicações e proporciona a resolução completa do problema. Sendo assim, a excisão cirúrgica da mucosa prolapsada é o tratamento de escolha.12

A tomada de atitude dos médicos diante de um quadro de sangramento urogenital requer um bom conhecimento dos diagnósticos diferenciais, tendo em vista ser o abuso sexual uma possibilidade importante nos casos de sangramento em meninas pré-púberes.4

O prolapso uretral representa mais da metade dos casos de crianças periciadas para investigar a possibilidade de abuso sexual devido à queixa ou à alteração anogenital isolada, sem relato de abuso sexual no histórico. As demais apresentam doenças ou variações anatômicas que são confundidas com abuso sexual.13 Tal como no caso aqui descrito, o sangramento vaginal foi a apresentação clínica em 15 dos 16 casos de prolapso de uretra dessa amostra. A maior parte dos casos (87%) foi encaminhada à perícia por suspeitas de abuso sexual levantadas por médicos, mas 13% o fizeram por iniciativa direta dos pais, que procuraram a delegacia para esclarecimento de suspeita levantada por eles. No caso em questão, os pais levantaram a possibilidade e os primeiros profissionais que atenderam a criança concordaram com a necessidade de esclarecer a suspeita de abuso sexual. Apesar disso, nenhuma das duas partes procurou instâncias legais antes do esclarecimento diagnóstico do sangramento vaginal, o que poupou a criança de desgastes além dos necessários para resolver a questão.

Uma das dificuldades do diagnóstico de abuso sexual é justamente o fato de ele não deixar sinais físicos na maior parte dos casos. Por outro lado, as alterações emocionais e comportamentais são frequentes, embora nem sempre reconhecidas pelos cuidadores e profissionais que lidam com a criança.14 Um dos motivos que não reforçava o abuso sexual como causa do sangramento da criança em questão foi, justamente, seu comportamento ativo, extrovertido e alegre durante a consulta, apesar do sangramento presente. Além disso, não parecia sentir dor, o que seria pouco provável tendo em vista que uma lesão vulvar ou vaginal que causasse sangramento de tamanha monta teria de ser extensa ou profunda.

As crianças na fase pré-escolar são menos propensas a iniciar o processo de revelação do abuso sexual deliberadamente, de forma intencional. Em geral, necessitam que familiares ou profissionais percebam alterações clínicas ou comportamentais que funcionarão como situações desencadeadoras da revelação.15 No caso aqui descrito, o sangramento proporcionou ao pai e aos profissionais conversarem com a criança a fim de esclarecer se havia sido abusada sexualmente.

Por fim, ressaltamos que o abuso sexual deve ser sempre cogitado em pacientes com sangramentos urogenitais, entretanto, este caso ilustra a importância de considerar outros diagnósticos diferenciais. A identificação do prolapso de uretra nesta paciente possibilitou não só a resolução do quadro, como também a tranquilização dos familiares quanto à suspeita de abuso e a proteção da criança por não ter sido submetida a uma investigação para esclarecimento de violência sexual.

 

REFERÊNCIAS

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2 Gondim RM, Munoz DR, Petri V. Child abuse: skin markers and differential diagnosis. An Bras Dermatol. 2011;86(3):527-36.

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5 Mitre A, Nahas W, Gilbert A, Glina S, Saiovici S, Mazzucchi E et al. Urethral prolapse in girls: familial case. J Urol [case reports]. 1987;137(1):115.

6 Shavit I, Solt I. Urethral prolapse misdiagnosed as vaginal bleeding in a premenarchal girl. Eur J Pediatr [case reports]. 2008;167(5):597-8.

7 Silva WS. Doenças e variações anatômicas confundidas com abuso sexual infantil: estudo descritivo. Salvador. Dissertação [Mestrado em Medicina] - Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública; 2012.

8 Hillyer S, Mooppan U, Kim H, Gulmi F. Diagnosis and treatment of urethral prolapse in children: experience with 34 cases. Urology. 2009;73(5):1008-11.

9 Aprile A, Ranzato C, Rizzotto MR, Arseni A, Da Dalt L, Facchin P. "Vaginal" bleeding in prepubertal age: a rare scaring riddle, a case of the urethral prolapse and review of the literature. Forensic Sci Int [case reports review]. 2011;210(1-3):e16-20.

10 Valerie E, Gilchrist BF, Frischer J, Scriven R, Klotz DH, Ramenofsky ML. Diagnosis and treatment of urethral prolapse in children. Urology. 1999;54(6):1082-4.

11 Rudin JE, Geldt VG, Alecseev EB. Prolapse of urethral mucosa in white female children: experience with 58 cases. J Pediatr Surg. 1997;32(3):423-5.

12 Ballouhey Q, Galinier P, Gryn A, Grimaudo A, Pienkowski C, Fourcade L. Benefits of primary surgical resection for symptomatic urethral prolapse in children. J Pediatr Urol [Multicenter Study]. 2014;10(1):94-7.

13 Silva WS, Ribeiro FM, Santos MS, Guimarães GK, Almeida VPS, Barroso Jr UO. Doenças e variações anatômicas confundidas com abuso sexual em crianças. Pediatr Mod [Estudo Descritivo]. 2013;49(8):325-9.

14 Sanderson C. Sinais e sintomas de abuso sexual em crianças. In: Abuso sexual em crianças: fortalecendo pais e professores para proteger crianças de abusos sexuais. São Paulo: M Brooks do Brasil Editora; 2005.

15 Baía PAD, Veloso MMX, Magalhães CMC, Celina Maria Colino, DellAglio DD. Caracterização da revelação do abuso sexual de crianças e adolescentes: negação, retratação e fatores associados. Temas em Psicologia. 2013;21(1):193-202.