Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 17(1) - Fevereiro 2017

Comunicaçao breve

A (in)visibilidade da violência psicológica familiar nos atendimentos de adolescentes usuários dos ambulatórios de um hospital pediátrico público terciário

The (in)visibility of family psychological violence in the visits of adolescents who use the outpatient clinics of a tertiary public pediatric hospital

 

Cecy Dunshee de Abranches1; Simone Gonçalves de Assis2

1. Doutora em Ciências
2. Doutora em Saúde Pública com Pós-Doutorado pelo Family Life Development Center/Cornell University. Pesquisadora e Coordenadora Executiva do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Carelli/Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz

 

Endereço para correspondência:

cecydunshee@gmail.com

Instituição: Instituto Fernandes Figueira/Fundação Oswaldo Cruz Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz

Recebido em: 22.11.2016

Aprovado em: 21.12.2016

 

Resumo

OBJETIVO: diante da magnitude dos impactos da violência na saúde juvenil, investigou-se a (in)visibilidade da ocorrência da violência psicológica (VP) familiar.
MÉTODOS: estudo transversal quantitativo, com amostra de 229 adolescentes usuários de serviços ambulatoriais de um hospital pediátrico público terciário e da revisão de seus prontuários.
CRITÉRIO DE INCLUSÃO: usuário de 12 a 18 anos, acompanhado e sem deficiência cognitiva. A revisão dos prontuários foi realizada após a ocorrência das entrevistas, por meio do arquivo médico, em 172 prontuários (75,1% dos adolescentes entrevistados).
RESULTADOS: em 98% dos relatos verbais encontrou-se a exposição à VP familiar, sendo 26,4% dos pacientes em seu grau mais severo, sem nenhuma referência nos prontuários. Não se constatou associação estatística entre VP familiar e problemas clínicos atuais e pregressos, embora tenha sido elevada a sua associação com problemas de saúde mental.
CONCLUSÕES: devido à elevada ocorrência de VP familiar na amostra investigada, sugere-se a inclusão da averiguação dos maus-tratos juvenis no relacionamento familiar no diagnóstico pediátrico diferencial, assim como a necessidade de se ter mais estudos sobre os efeitos da violência sobre a saúde física.

Palavras-chave: Violência doméstica. Medicina do adolescente. Psicologia do adolescente. Consultórios médicos. Registros médicos.


Abstract

OBJECTIVE: considering the magnitude of the impact of violence on youth health, we investigate the (in)visibility of the occurrence of psychological violence (PV) family.
METHODS: quantitative cross-sectional study with a sample of 229 adolescent users of outpatient services of a public tertiary pediatric hospital and review of records. Inclusion criteria: user 12-18 years with and without cognitive impairment. A review of medical records was performed after the occurrence of the interviews, through the medical file, in 172 records (75.1% of the adolescents interviewed).
RESULTS: in 98% of verbal reports met exposure to VP family, being 26.4% of patients in the most severe grade, with no reference in the records. There was no statistical association between VP and family clinical problems present and past, although it has been elevated to its association with mental health problems.
CONCLUSIONS: due to the high occurrence of VP family in the sample studied, it is suggested to include the investigation of abuse in juvenile family relationship in pediatric differential diagnosis, as well as the need to have more studies on the effects of violence on physical health.

Keywords: Domestic violence. Adolescent behavior. Adolescent psychiatry. Physicians’ offices. Medical records.

 

INTRODUÇÃO

A violência tornou-se um problema de saúde pública, em função do impacto que traz para a saúde individual e coletiva.1 As situações de maus-tratos vividas pelos adolescentes no contexto familiar apresentam dificuldades na identificação, na notificação e na intervenção por parte dos profissionais de saúde.2 A grande relevância da pesquisa desses maus-tratos está diretamente ligada ao fato de que na maioria das expressões da violência intrafamiliar os abusadores são membros da própria família, incluindo os pais.3,4

Para além da notificação e contabilização de casos, discute-se o papel dos serviços na detecção precoce, na caracterização e na proposição de estratégias ao seu enfrentamento.3 É fato que a falta de informações básicas para identificar os casos de maus-tratos, influenciada por fatores pessoais dos profissionais e pela estrutura dos serviços, bem como pelo modelo biomédico vigente, podem ser aspectos que dificultam a identificação de possíveis casos, pois sinais e sintomas de violência intrafamiliar podem ser confundidos com outros diagnósticos diferenciais.2,3,4

Uma das formas de abuso, de difícil detecção, porém muito lesiva para a formação do indivíduo, é a violência psicológica (VP).5 Esta ocorre quando os adultos sistematicamente humilham, demonstram falta de interesse, tecem críticas excessivas, induzem culpa, desencorajam, ignoram sentimentos ou cobram excessivamente o adolescente.6 Esse abuso, feito por pessoas significativas ao adolescente, que deveriam protegê-lo, tem a capacidade de afetar o potencial de resiliência (capacidade de superação dos problemas), que é considerado um importante fator de proteção na prevenção dos agravos da violência.6,7

Possíveis efeitos da exposição à VP na infância podem ser:

a) incapacidade de aprender;

b) incapacidade de construir e manter satisfatória relação interpessoal;

c) inapropriado comportamento e sentimentos frente a circunstâncias normais;

d) humor infeliz ou depressivo;

e) depressão maior crônica ou recorrente;

f) baixa autoestima;

g) ansiedade;

h) distúrbios alimentares (obesidade, anorexia e bulimia);

i) atraso no desenvolvimento e crescimento;

j) tendência a desenvolver sintomas psicossomáticos.8,9,10

Partindo desse conhecimento, procurou-se investigar a partir de dados secundários existentes nos prontuários dos adolescentes que participaram de uma pesquisa de tese de doutorado sobre VP familiar e a saúde mental de adolescentes,11 os problemas orgânicos que poderiam estar associados à exposição à VP no contexto familiar.

 

MÉTODOS

Como metodologia empregada neste estudo, realizou-se um estudo transversal com amostra representativa de 229 adolescentes entre janeiro e setembro de 2011, em três ambulatórios (pediatria, adolescente e saúde mental) de um hospital pediátrico público terciário, localizado no Município do Rio de Janeiro. Este é um hospitalreferência para o Sistema Único de Saúde (SUS) na saúde de crianças, adolescentes e mulheres, tendo sua demanda referida de todas as áreas programáticas do Município do Rio de Janeiro, assim como de outras cidades e estados.

Da amostra investigada, todos responderam ao questionário com a escala de VP,12 que avalia as experiências vividas por jovens diminuídos em suas qualidades, suas capacidades, seus desejos, suas emoções e que foram excessivamente cobrados por pessoas significativas. O escore dessa escala12 foi definido como a razão entre o somatório dos pontos associados às frequências de cada um dos itens (de 1-nunca a 5-sempre) e a pontuação máxima que seria alcançada (90) multiplicada por 100. O ponto de corte foi estabelecido como valores acima e abaixo do terceiro quartil, sendo categorizadas como: ausente a moderada (respostas "nunca", "às vezes" ou "raramente" na maioria dos itens) e severa (frequência elevada na maioria das respostas - "sempre/quase sempre").

Um total de 172 prontuários foram encontrados no arquivo médico e revisados (75,1%) após as entrevistas terem sido realizadas. Dentre as perdas, 4,8% referem-se a prontuários não encontrados e 20,1% decorreram de pronto-atendimento, não tendo gerado prontuário.

O estudo foi aprovado pelo Parecer n. 0031/10 do Comitê de Ética em Pesquisa do hospital local da pesquisa.

 

RESULTADOS

Como resultados tem-se que a amostra foi composta por adolescentes com idade média de 13,5 anos (DP = 2,0). Um total de 54,1% pertence ao sexo masculino; 39,5% se denominam como cor de pele parda (preta 19,8%, branca 34,9% e amarelo/indígena 5,8%); 83,5% integram os estratos sociais médios e populares C, D e E, segundo os critérios de classificação econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP).*

Um total de 26,4% dos adolescentes relatou conviver com violência severa praticada por pessoas significativas de sua família. São especialmente vítimas de: culpabilização por falhas ocorridas, críticas por coisas feitas e ditas, gritos e berros sem motivo, insistência em falar sobre os erros cometidos no dia a dia e descrédito dos entrevistados por parte dos familiares. A mãe foi o familiar que mais perpetrou VP sobre o adolescente, seguida pelo pai e pelos irmãos. Dentre os adolescentes que sofrem VP ausente a moderada, apenas cinco relatos dos 229 são provenientes de pessoas que nunca sofreram nenhuma forma de VP, indicando que a VP faz parte da comunicação existente no cotidiano familiar da maior parte dos entrevistados. A despeito disso, na revisão dos prontuários não se encontrou nenhuma observação, detecção, ou notificação desse tipo de maus-tratos ocorridos no contexto familiar, demonstrando a sua invisibilidade nas consultas pediátricas.

A avaliação clínica apresentada nos 172 prontuários mostra que as principais ocorrências no item "queixa principal" foram: problemas dermatológicos (26,9%), acompanhamento do desenvolvimento e crescimento (20,9%), controle do peso (18,6%) e distúrbio afetivo (13,4%).

Em relação à história pregressa dos entrevistados nesses prontuários, 50,6% apresentavam problemas de alergia, 36,6% tinham problemas do aparelho respiratório, 30,8% faziam controle do peso, 28,7% já haviam passado pela cirurgia pediátrica, 22,2% apresentaram problemas perinatais e 22,1% estavam em tratamento neurológico. Desse modo, encontrou-se um perfil de usuários de longo acompanhamento institucional, com média de 124,5 meses (DP = 55,8) ou 10 anos e 4 meses e mediana de 141. A associação entre VP familiar com problemas clínicos atuais e história pregressa não mostrou significância estatística.

Associações importantes foram encontradas na pesquisa-base da referida tese de doutorado11 em relação às chances de ocorrerem transtornos de saúde mental nos expostos à VP familiar, que aumentaram sua ocorrência em vigência da gravidade da VP, como detalhado na tabela 1.

 

 

DISCUSSÃO

Os achados deste estudo indicam que, apesar do crescente reconhecimento de que os serviços de saúde possuem um papel fundamental na implementação das modificações necessárias ao enfrentamento da violência intrafamiliar, ainda se encontram lacunas na identificação e notificação dos casos de maus-tratos.3,4,5,13 A formulação de propostas de capacitação focadas nas reais necessidades dos profissionais de saúde pode vir a ser uma qualificação para a rede de atendimento.14,15

Este artigo é baseado em resultados parciais de tese de doutorado,11 na qual se percebeu que incluir na anamnese perguntas sobre maus-tratos, em suas diferentes formas, e sobre o relacionamento e estrutura familiar pode facilitar a detecção dos casos, contribuindo com a implementação da prevenção e enfrentamento das situações de violência familiar.

O sentimento de insatisfação do responsável com o adolescente sob seus cuidados foi outro ponto relevante, pois ao ser associado com VP na família, mostrou que aqueles que se declararam mais ou menos satisfeitos ou insatisfeitos apresentaram mais tendência a ter filhos que informam serem vítimas de VP na família (OR = 2,5) do que os entrevistados que têm responsáveis plenamente satisfeitos em relação ao adolescente sob seus cuidados.

O perfil de história clínica pregressa encontrada pode estar ligado ao fato do hospital local da pesquisa ser um hospital de referência para o SUS nos casos de gestação de alto risco neonatal, problemas cirúrgicos pediátricos e nas especialidades pediátricas de alergia, doenças infectoparasitárias e pneumologia, em especial às doenças crônicas. Mesmo assim, a prevalência de 50,6% de alergia nas histórias pregressas é bem alta quando comparada com outras especialidades-referência do mesmo hospital. Como citado, os possíveis efeitos da VP podem ser distúrbios de alimentação e sintomas psicossomáticos. 8,9,10 Fica a sugestão de se incluir no diagnóstico diferencial desses problemas a investigação da possibilidade de maus-tratos infantojuvenis no relacionamento familiar, assim como a necessidade de se ter mais estudos sobre os efeitos da violência sobre a saúde física.

Como limitações do artigo, ressaltam-se: a inexistência de ponto de corte para a escala de VP com comprovada sensibilidade e especificidade;10 o tamanho da amostra, que dificultou a realização das associações; e as dificuldades encontradas nas revisões dos prontuários, como o acesso aos prontuários no arquivo médico da instituição que nem sempre eram encontrados quando solicitados, a letra dos profissionais que redigem as consultas, muitas vezes incompreensível, a falta de padronização e cronologia nas datas das consultas, dificultando encontrar as consultas relativas ao dia da entrevista da pesquisa, o que acarretou em perdas de revisão de prontuários.

Portanto, através da capacitação, sensibilização, conscientização e envolvimento de diferentes profissionais, em trabalho de rede com diversos setores da sociedade, pode-se vislumbrar um diferente enfrentamento do fenômeno de maus-tratos contra adolescentes, em busca da integralidade do cuidado, articulando a produção do cuidado desde a atenção primária até o mais complexo nível de atenção, exigindo ainda a interação com os demais sistemas para garantia de direitos, proteção e defesa de adolescentes.14,15

 

REFERÊNCIAS

1 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. Relatório Mundial sobre violência e saúde. Genebra: Organização Mundial da Saúde; 2002.

2 Bannwart TH, Brino RF. Dificuldades enfrentadas para identificar e notificar casos de maus-tratos contra crianças e/ou adolescentes sob a ótica de médicos pediatras. Rev Paul Pediatr. 2011;29(2):138-45.

3 Rocha PCX, Moraes CL. Violência familiar contra a criança e perspectivas de intervenção do Programa Saúde da Família: a experiência do PMF/Niterói (RJ, Brasil). Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(7):3285-96.

4 Mascarenhas MDM, Silva MMA, Malta DC, Lima CM, Carvalho MGO, Oliveira VLA. Violência contra a criança: revelando o perfil dos atendimentos em serviços de emergência, Brasil, 2006 e 2007. Cad Saúde Pública. 2010;26(2):347-57.

5 Garbarino J. Psychological child maltreatment: a developmental view. Prim Care. 1993;20(2):307-15.

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8 Allen B. An analysis of the impact of diverse forms of childhood Psychological maltreatment on emotional adjustment in early adulthood. Child Maltreat. 2008;13(3):307-12.

9 Shaffer A, Yates TM, Eehand R. The relation of emotional maltreatment to early adolescent competence: developmental processes in a prospective study. Child Abuse Negl. 2009;33(1):36-44.

10 Leeson FJ, Nixon RDV. The role of children's appraisals on adjustment following psychological maltreatment: a pilot study. J Abnorm Child Psychol. 2011;39:759-71.

11 Abranches CD. A (in)visibilidade da violência psicológica familiar e a saúde mental de adolescentes usuários de um hospital público pediátrico terciário. Tese [doutorado em Saúde da Criança e da Mulher]. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro, 2012.

12 Pitzner JK, Drummond PD. The reliability and validity of empirically scaled measures of psychological/verbal control and physical/sexual abuse: relationship between current negative mood and a history of abuse independent of other negative life events. J Psychosom Res. 1997;43(2):125-42.

13 Oliveira MT, Lima MLC, Barros MDA, Paz AM, Barbosa AMF, Leite RMB. Subregistro da violência doméstica em adolescentes: a (in)visibilidade na demanda ambulatorial de um serviço de saúde no Recife-PE, Brasil. Rev. Bras. Saúde Mater Infant. 2011;11(1):29-39.

14 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidados para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: MS; 2010.

15 Bannwart TH, Brino RF. Maus-tratos contra crianças e adolescentes e o papel dos profissionais de saúde: estratégias de enfrentamento e prevenção. In: Habigzang LF, Kpller SH. Violência contra crianças e adolescentes: teoria, pesquisa e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012.