Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 12(1) - Agosto 2011

Artigos de Revisao

Metahemoglobinemia: etipatogenia e quadro clínico

Methaemoglobin: etiopathogenesis and clinical features

 

Daniel Frossard Rodrigues1; Fernanda Coelho Vieira1; Maria Elisabeth Frossard Rodrigues2

1. Residente de Pediatria do IPPMG-UFRJ.
2. Mestre em Medicina pelo Programa de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ. Médica do Serviço de Medicina Transfusional e do Centro de Referência para Doença Falciforme do IPPMG.

 

Endereço para correspondência:

Dra Maria Elisabeth Frossard Rodrigues
Rua André Cusaco, 101 Jardim Guanabara. Ilha do Governador
Rio de Janeiro, RJ CEP - 21940-290

 

Resumo

Devido a sua raridade e ao potencial risco de óbito, a metahemoglobinemia é uma entidade que deve ser conhecida pelo médico na emergência e cogitada em casos de choque cianótico na ausência de sinais de cardiopatia associada. Os autores apresentam revisão não sistemática da literatura. Ressaltam a importância do reconhecimento diagnóstico da entidade e dos fatores de risco para permitir o tratamento precoce.

Palavras-chave: Metahemoglobina, cianose, choque.


Abstract

Due to its rarity and the potential risk of death, methemoglobinemia is a entity that should be known by the physician in Emergency room and thought in cyanotic shock cases in the absence of associated signals of cyanotic heart disease.The authors present a non-systematic review of literature. They emphasize the importance of recognizing the diagnosis and risk factors of methemoglobinemia to allow early treatment.

Keywords: Methaemoglobin, cyanosis, shock.

 

INTRODUÇÃO

A manifestação clínica de cianose na criança abre um espectro de diagnósticos diferenciais, sendo que os mais relacionados a este sinal clínico são aqueles de causas cardiorrespiratórias(1). Entretanto, é fundamental a suspeição de etiologias menos freqüentes, como a metahemoglobinemia, que podem ser fatais, exigindo diagnóstico preciso e tratamento adequado mais rapidamente.

A metahemoglobinemia é uma causa rara de cianose na faixa pediátrica, caracterizada pela presença de uma concentração sérica de metahemoglobina superior a 2%(2).

É uma síndrome de etiologias distintas, de prevalência indeterminada, e que reúne alterações congênitas variadas e reações a agentes químicos diversos.

 

FISIOPATOLOGIA

A molécula de hemoglobina é formada por um tetrâmero, constituído por cadeias alfa, beta, gama ou delta. A forma de hemoglobina mais comum nos adultos, a hemoglobina A, é composta de duas cadeias α e de duas cadeias β. Cada cadeia é constituída de um polipeptídeo globina ligada a um grupo prostético heme, o qual consiste de anel de protoporfirina IX complexado com um único átomo de ferro no estado ferroso (Fe2+). Assim, cada molécula de hemoglobina apresenta quatro átomos de ferro. O ferro em estado ferroso pode se ligar reversivelmente a uma molécula de oxigênio somando o total de quatro moléculas de oxigênio transportadas por cada molécula de hemoglobina(3). A metahemoglobina, bem como a carboxiemoglobina e a sulfemoglobina, corresponde a uma disemoglobina, ou seja, espécie de hemoglobina que não se liga ao oxigênio. A metahemoglobina é a forma não funcional oxidada da hemoglobina na forma férrica (Fe+3). Isto aumenta a sua afinidade pela molécula de oxigênio ligado. Assim, além de a metahemoglobina não se ligar ao oxigênio, ela desvia a curva de dissociação da hemoglobina parcialmente oxidada para a esquerda prejudicando também a liberação de oxigênio para os tecidos(4).

Qualquer agente oxidante pode provocar a oxidação da hemoglobina e formação de metahemoglobina. No entanto, os sistemas redutores naturais intra-eritrocitários de redução da metahemoglobina, mantêm seu nível abaixo de 2%. Desta forma, os mecanismos responsáveis por esse equilíbrio são a redução direta de compostos oxidantes antes da formação da metahemoglobina ou mesmo após a sua formação.

Dois mecanismos respondem pela redução da metahemoglobina e envolvem as enzimas Diaforese 1 ou citocromo B5 redutase e Diaforese 2(5). A Diaforese 1 ou redutase de hemoglobina dependente do NADH é responsável por 95% da redução. A Diaforese 2 ou redutase de metahemoglobina dependente de NADPH (fosfato de nicotinamida adenina dinucleotídeo) é responsável pelos 5%. Restantes. Poderá ser aumentada em quatro ou cinco vezes em situações de grande estresse oxidativo devido à ação de um cofator exógeno, o azul de metileno(6).

Cabe ressaltar que, em pacientes com deficiência da glicose-6-fosfato-desidrogenase, a enzima Diaforese 2 não é funcionante, uma vez que depende da via da hexose-monofosfato como fonte de NADPH.

 

ETIOLOGIA

A metahemoglobinemia ocorre nas formas congênita e adquirida. Não se dispõe de prevalências exatas, mas acredita-se que os casos adquiridos sejam mais freqüentes que os de origem congênita(7). A forma adquirida ou aguda é resultante de exposição direta a agentes oxidantes ou situações que desencadeiem estresse oxidativo. Pode ser aguda ou crônica e a sintomatologia depende da velocidade de formação da metahemoglobina. Normalmente, os primeiros órgãos a serem acometidos são aqueles que têm maior necessidade de oxigênio(8).

A dapsona e anestésicos locais como a lidocaína e benzocaína são agentes farmacológicos que podem provocar metahemoglobinemia na forma adquirida(9). Os agentes oxidantes atuam acelerando a oxidação da hemoglobina de 100 a 1000 vezes e conseqüentemente os mecanismos responsáveis por redução e equilíbrio na produção de metahemoglobina não são capazes de efetuar a redução da metahemoglobina(10).

Outros agentes químicos como pesticidas, herbicidas, fertilizantes, fumaça de escapamento de automóveis e tinta para sapato, também estão relacionados à doença(11). Os nitratos e nitritos têm grande poder oxidante e são substâncias que têm amplo emprego na indústria alimentícia como conservantes e corantes. Estão presentes em refeições prontas para bebês, alimentos com sabor barbecue e muitos outros produtos. Os nitratos também participam como contaminantes de água potável(12).

Os lactentes são particularmente suscetíveis à metahemoglobinemia uma vez que têm atividade reduzida do citocromo B5 redutase (de 50% a 60% com relação ao adulto) até os quatro meses de idade. Além disto, a hemoglobina fetal é mais facilmente oxidada que hemoglobina A. Também o pH intestinal mais elevado aumenta o poder oxidante devido ao crescimento de bactérias gram-negativas conversoras de nitratos alimentares em nitritos.

O desmame anterior aos quatro meses de idade expõe o lactente à contaminação por nitratos de origens diversas, inclusive de fontes naturais. Assim é possível que a intoxicação eleve a formação de metahemoglobina em velocidade maior do que a capacidade de redução nesta faixa etária. A gravidade do quadro depende de fatores como a quantidade de toxina a que o indivíduo foi exposto, a capacidade metabólica individual, a absorção intestinal e a recirculação êntero-hepática(13).

A forma congênita ou crônica é a causa mais comum de metahemoglobinemia e tem como causa a deficiência da enzima citocromo B5 redutase. É uma herança autossômica recessiva, classificada em: o tipo I, que acomete somente hemácias maduras, tem distribuição mundial, é endêmico em algumas populações como os índios Athabascan e Navajo da América do Norte e os Yakutsk nativos da Sibéria(14). Em outros grupos étnicos, o defeito ocorre de forma esporádica; o tipo II atinge todos os tipos celulares(8).

Os indivíduos homozigotos que apresentam a doença congênita têm de 10% a 35% de metahemoglobina em relação à hemoglobina total e, em geral, apresentam cianose e policitemia. Os sintomas se iniciam quando os níveis de metahemoglobina alcançam mais de 40%(12).

A expectativa de vida é igual a da população em geral e as gestações ocorrem normalmente. Nos indivíduos heterozigotos a atividade do citocromo B5 redutase é em torno de 50% da atividade observada nos indivíduos saudáveis. Em condições de normalidade e sem estresse oxidativo, esses níveis são suficientes para manter a fração de metahemoglobina dentro dos valores de normalidade, ou seja, abaixo de 1%. Mesmo assim, em condições de estresse oxidativo agudo, que superem a capacidade do eritrócito em reduzir a metahemoglobina, parte dos pacientes que desenvolvem a síndrome aguda, o fazem por serem heterozigotos para deficiência de CB5R. A instalação abrupta do quadro mostra que os indivíduos heterozigotos sofrem mais que os homozigotos, já que estes desenvolvem mecanismos de tolerância desde o nascimento, enquanto os heterozigotos não o fazem(11). De 10% a 15% dos indivíduos com deficiência congênita desta enzima apresentam doença do tipo II, causada por deficiência enzimática em todas as variedades de células, incluindo células não-eritróides como fibroblastos, linfócitos e células do sistema nervoso central. A doença é de ocorrência esporádica em todo o mundo e pode apresentar-se com retardo mental e atraso no desenvolvimento. A expectativa de vida nesses pacientes é reduzida devido às complicações neurológicas. O tratamento com agentes redutores não evita complicações nem altera o mau prognóstico da doença(8).

Outra causa de metahemoglobinemia congênita é a doença da hemoglobina M. Esta doença é herdada com padrão autossômico na qual a expectativa de vida não é afetada na forma dominante. Acredita-se que a homozigose seja incompatível com a vida. Nessa condição a hemoglobina sofre mutações na cadeia de globina, com estabilização do ferro do radical heme no estado oxidado Fe3+, por substituição de histidina por tirosina na cadeia alfa ou beta. Há formação de complexo ferro-fenolato resistente à redução e a hemoglobina M não pode ser reduzida. Até o momento, diversas variantes da hemoglobina M já foram identificadas e caracterizadas(8). Quando a mutação acomete a cadeia alfa, a cianose se apresenta desde o nascimento. Mas quando a cadeia beta é afetada, a cianose surge a partir dos seis meses de idade, período em que a maior parte da hemoglobina F já foi substituída pela hemoglobina A(14). Os pacientes apresentam-se cianóticos e não costumam exibir sintomas a não ser que sejam expostos a fármacos ou toxinas que podem provocar descompensação clínica.

 

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

O diagnóstico de metahemoglobinemia deve ser suspeitado quando há cianose em pacientes que apresentam valores normais da pressão arterial de oxigênio na gasometria arterial. Classicamente há discordância entre os valores da oxigenação aferidos através da gasometria arterial e oximetria de pulso, uma vez que este último método não é capaz não captar a hemoglobina na sua forma oxidada(1).

A anemia torna os pacientes mais sensíveis à metahemoglobinemia por diminuir a reserva funcional de hemoglobina. Acima de 12% a 15% observamos sangue marrom "cor de chocolate" e cianose central que não responde à administração de oxigênio suplementar e a cianose é desproporcional aos discretos sintomas gerais(8).

As manifestações clínicas são decorrentes da diminuição da capacidade carreadora de oxigênio e têm como substrato a hipóxia tecidual. Em geral, metahemoglobina abaixo de 15% resulta somente em pigmentação acinzentada da pele, mas é comum essa condição passar despercebida.

Os sintomas neurológicos e cardiovasculares (tontura, cefaléia, ansiedade, dispnéia, sintomas de baixo débito cardíaco, sonolência e crise convulsiva) habitualmente surgem quando a fração de metahemoglobina ultrapassa 20% a 30%. Portanto conforme aumentam os valores da metahemoglobina, há redução do nível de consciência, depressão respiratória, choque e óbito. A morte ocorre quando as frações de metahemoglobina atingem 70%(6), podendo ocorrer com níveis mais baixos de metahemoglobina quando associada a comorbidades.

Pacientes com doenças congênitas desenvolvem adaptações fisiológicas e podem tolerar níveis elevados sem apresentar sintomas. As adaptações re-ferem-se a modificações na concentração de 2,3-DPG e pH, síntese das cadeias de globina e policitemia. Esses pacientes em condições de estresse oxidativo podem ter descompensação clínica ou em condições patológicas que elevem a sua demanda metabólica, como as que se manifestam com síndrome de resposta inflamatória sistêmica(8).

 

CONCLUSÃO

A metahemoglobinemia é uma síndrome com diferentes etiologias e de prevalência ainda não determinada. Sendo assim, o alto grau de suspeição alcançado através do conhecimento da doença contribuiria para que a síndrome não fosse subdiagnosticada e também que fosse implementado o tratamento específico o mais breve possível elevando assim os índices de sucesso terapêutico(1).

Embora a metahemoglobinemia seja uma causa incomum de cianose, principalmente em crianças, o seu diagnóstico deve ser sempre pensado, principalmente quando frente a um paciente com cianose não responsiva à administração de oxigênio inalatório e cujos valores da oximetria de pulso não coincidem com a concentração arterial de oxigênio pela gasometria. Cabe ressaltar que é fundamental excluir a presença de cardio e pneumopatias que pudessem justificar a cianose.

Informações básicas sobre o curso da síndrome, como as referidas acima, associadas à anamnese em que se bus-quem ativamente fatores relacionados a estresse oxidativo tornam possível o diagnóstico precoce e o melhor manejo terapêutico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2. Chui JSW, Poon WT, Chan KC et al. Nitrite induced methaemoglobinaemia aetiology, diagnosis and treatment. Anaesthesia 2005;60:496-500.

3. Kern K, Langevin PB. Methemoglobinemia after topical anesthesia with lidocaine and benzocaine for a difficult intubation. J Clin Anesth 2000;12:167-172.

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5. Maddali MM, Fahr J. Postoperative methemoglobinemia with associated G-6-P-D deficiency in infant cardiac surgery enigmas in diagnosis and management. Ped Anesth 20105;15:334-337

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8. Prchal, JT .Clinical features, diagnosis, and treatment of methemoglobinemia.< http://www.uptodate.com/patients/content/topic.do?topicKey=~s3s3E8GGa7D0awB>. 2009

9. Baraka AS, Ayoub CM, Yazbeck-Karam V et al. Prophylactic methylene blue in a patient with congenital methemoglobinemia. Can J Anaesth 2005;52:258-261.

10. Yazbeck-Karam VG, Aouad MT, Kaddoum RN et al. Methemoglobinemia after a blast injury. Anesthesiology 2004;100:448-449.

11. Carvalho, S, Lima L, Fernandes, H et al. Metahemoglobinemia por tinta de sapato. < http://www.hmariapia.min-saude.pt/revista/marco2004/Metahemoglobinemia.pdf> .2004.

12. Hoffman R, Bens EJ, Shattil SJ et al. Hematology, 4ª Ed. p 650-667. 2005

13. Bouziri A, Khaldi A, Menif K, et al. Unusual cause of severe toxic methemoglobinemia in an infant: a case report. Int J Emerg. Med 2010; 27;3:57-9. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20414384 > 2010.

14. Nascimento, TS, Pereira, ROL, Mello, HLD at al, Metemoglobinemia: do Diagnóstico ao Tratamento. Rev Bras Anestesiol 2008;651:6.

 

 

Trabalho de conclusão da Residência Médica em Pediatria dos dois primeiros autores no Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG- UFRJ). Rio de Janeiro, RJ.

 

 

AVALIAÇÃO

1. História de uso de medicamentos e desenvolvimento de cianose não responsiva à oxigenioterapia, palidez intensa, hemoglobinúria e discrepância na medida de oxigênio entre oximetria de pulso e gasometria, pode ser resultado de:

a) Estresse oxidativo.
b) Pneumonia grave.
c) Cardiomiopatia exógena.
d) Aspiração endotraqueal.
e) Todas estão corretas.

2. A faixa etária que pode ser mais acometida pelo uso de drogas que desencadeiam estresse oxidativo e provocam metahemoglobinemia é:

a) Pré-escolar.
b) Escolar.
c) Lactentes.
d)
Recém-nascidos.
e)
Todas estão corretas.

3. Algumas situações elevam o risco de metahemoglonemia adquirida devido ao aumento da formação de nitrito no metabolismo do paciente. Marque uma destas situações possíveis:

a) Desmame anterior aos quatro meses.
b) Refeições prontas para bebês.
c) Elevação do pH intestinal por crescimento de bactérias gram-negativas .
d) Atividade reduzida do citocromo B5 redutase.
e) Todas estão corretas.

Quadro de resposta na página 24