Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 4(2) - Agosto 2003

Revisoes em Pediatria

Integralidade na assistência à criança: a estratégia de atenção integrada às doenças prevalentes da infância no programa de saúde da família

Integrated management of children: integrated management of childhood illness (IMCI) strategy in the family health program

 

Rosana Alves

Médica do Serviço de Pneumologia do Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória - Vitória -ES Doutora em Pesquisa Clínica.-Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Resumo

INTRODUÇÃO - o Ministério da Saúde (MS) do Brasil identifica duas ações concretas para reduzir a morbimortalidade e os custos das doenças infantis: o Programa de Saúde da Família (PSF) e a estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI). Poucas investigações para avaliar essas ações foram realizadas.
OBJETIVO - apresentar dados epidemiológicos de crianças menores de 5 anos no Brasil, descrevendo o atendimento prestado a crianças menores de cinco anos de idade em unidades do PSF de acordo com a estratégia AIDPI.
METODOLOGIA - revisão não sistemática da literatura de fontes dedados como MEDLINE e LILACS e de documentos do M S.
RESULTADOS - a morbimortalidade por doenças infecciosas, especialmente diarréia e pneumonia ainda é expressiva no Brasil e em paises em desenvolvimento. As unidades de saúde necessitam ser estruturadas principalmente no que diz respeito a classificação dos pacientes, indicação e comparecimento ao retorno.
CONCLUSÕES - recomenda-se reforço na capacitação dos profissionais de saúde na estratégia AIDPI e supervisão mais freqüente.

Palavras-chave: AIDPI, Criança, Saúde da família


Abstract

INTRODUCTION - The Ministry of Health - Brazil identifies two concrete actions to reduce morbi-mortality and costs of childhood illnesses: the Family Health Program (FHP) and Integrated Management of Childhood Illness strategy (IMCI).
OBJECTIVE - To describe health epidemiological data of children under five years of age in FHP health facilities according IMCI strategy.
METHODOLOGY - review of literature based in MEDLINE, LILACS and Ministry of Health-Brazildo-cuments.
RESULTS - Brazilian morbi-mortality by infectious diseases as diarrhea and pneumonia is still expressive as well other undeveloped countries.. The FHP facilities should be well structured mainly about patient classification, the orientation to return and the attendance to follow up visits.
CONCLUSIONS - It is recommend reinforcement on the training of health workers on the IMCI strategy and more frequent supervision.

Keywords: IMCI, Children, Family health

 

Aproximadamente 10 milhões de crianças morrem a cada ano no mundo antes de completarem cinco anos de idade. A maioria destas causas é conhecida: pneumonia, diarréia, malária e sarampo, doenças estas associadas ou não à desnutrição. No Brasil, a pneumonia e a diarréia ainda estão entre as principais causas de mortalidade infantil1,2,3.

No mundo desenvolvido as mortes são evitadas pela boa qualidade de vida, mas principalmente devido ao acesso aos serviços de saúde. Muitas crianças no mundo em desenvolvimento vivem em precárias condições, dificultando sua sobrevivência e seu pleno desenvolvimento4,5.

Na década de 70, as grandes potências econômicas reconheceram a grande e crescente desigualdade e injustiça social nas condições de vida nos países em desenvolvimento, onde há pobreza e abandono de setores prioritários para a população: saúde e educação. Em 1975, a 28ª Assembléia Mundial da Saúde se projeta com o slogan "Saúde para todos". Assim o conceito de saúde para todos e por todos passa a ser organizado para a atenção primária de saúde6.

A necessidade de novos enfoques no cuidado da saúde e a existência de experiências em várias partes do mundo levou a OMS e a UNICEF a organizar uma conferência internacional sobre o tema em 1978, na cidade de Alma-Ata. Apesar de algumas distorções, onde o enfoque médico sobrepunha o da saúde, o encontro resultou na Declaração de Alma-Ata, onde todos os 134 governos presentes se responsabilizaram para ação nacional e internacional a fim de desenvolver e implementar a atenção primária sanitária em todo o mundo. Desde então, Alma-Ata e "atenção primária de saúde" são termos indissolúveis6.

Nos últimos 30 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPS) têm formulado instrumentos, programas e estratégias visando a diminuição da morbimortalidade infantil. Através de resultados aprendidos com estes programas voltados para o controle de doenças específicas, uma nova estratégia foi desenvolvida buscando o manejo da criança como um todo, de maneira integrada. Através de experiências de sucesso de intervenção efetiva na saúde da criança, como imunização, Terapia de Reidratação Oral, controle e assistência às Infecções Respiratórias Agudas (IRA) e incremento nutricional do lactente, formulou-se o núcleo central da estratégia: manejo integrado das doenças mais prevalentes em menores de cinco anos.

Nesta última década, a OMS em conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência - UNI-CEF, desenvolveu a estratégia AIDPI - Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (IMCI - Integrated Management of Childhood Illness)7.

A estratégia AIDPI tem por finalidade promover uma rápida queda na mortalidade em crianças menores de cinco anos. Trata-se de uma nova abordagem da atenção à saúde na infância, desenvolvida originalmente pela Organização Mundial de Saúde - OMS e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância e a Adolescência - UNICEF, caracterizando-se pela avaliação simultânea e integrada do conjunto de doenças de maior prevalência na infância, ao invés do enfoque tradicional que busca abordar cada doença isoladamente1,8.

No início dos anos 90, a estratégia AIDPI foi introduzida nos países não desenvolvidos, inicialmente na Ásia e África e, posteriormente, na América Latina. Em 1996 as normas gerais para a atenção clínica propostas pela estratégia AIDPI foram adaptadas para refletir as características epidemiológicas e culturais do Brasil, e 4 estados foram selecionados para a fase de implementação inicial: Ceará, Pará, Pernambuco e Sergipe. Em 1998, esse processo foi expandido para outros distritos e regiões. Em julho de 1999, 1.034 profissionais de saúde tinham sido treinados na estratégia AIDPI, entre facilitado-res, docentes universitários e médicos/enfermeiras. As atividades da estratégia envolveram 16 estados. Em 2000, 22 estados desenvolviam alguma atividade da estratégia9.

Neste período, a estimativa de mortalidade de menores de cinco anos no Brasil para o ano de 1997 foi de 48,3/1000. Em 1998 a Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) foi estimada em 33,1/1000 nascidos vivos. A mortalidade infantil vem declinando nos últimos 20 anos em função de algumas ações, como o aumento da rede de saneamento básico e de saúde, queda da fecundidade, campanhas de vacinação e implantação do Programa de Saúde Materno Infantil - assistência e controle das infecções respiratórias agudas, terapia de rehidratação oral, acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, incentivo ao aleitamento materno e outras ações no pré-natal e parto8,10.

Este declínio, entretanto, não se fez de forma homogênea, uma vez que o país ainda apresenta grandes diferenças regionais, principalmente sócio-econômicas. Com isto os indicadores de mortalidade infantil, assim como a velocidade do seu declínio, diferem de região para região. Em 2000, as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste apresentavam TMI semelhantes, em torno de 20 por mil nascidos vivos; a região Norte apresentava TMI de 30 e a região Nordeste de 45 / 1000 nascidos vivos9, 10.

Apesar da queda da mortalidade infantil, o atual perfil de saúde infantil no Brasil representa, ainda, um grande desafio para o Ministério da Saúde. Se por um lado observamos uma maior proporção relativa de óbitos por afecções originadas no período perinatal - causas de mais difícil intervenção - por outro lado, convivemos ainda com uma morbidade elevada por doenças do subdesenvolvimento, como as pneumonias, diarréias, desnutrição e, na região norte, a malária.

Em relação à morbidade, em 2001 mais de 1.680.000 crianças menores de cinco anos de idade foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde, com um custo superior a 400 milhões de reais. As principais causas de internação foram problemas respiratórios e doenças infecto - parasitárias, em um total de 68%. Com um bom atendimento em nível primário, voltado para a prevenção, acredita-se que o número de internações se reduza, contribuindo para diminuição destes gastos9.

Os índices de morbimortalidade infantil apresentam diferenças regionais intimamente relacionadas com a política econômica adotada, problemas sócio-econômicos da população e a rede pública de saúde. Neste cenário, o Ministério da Saúde do Brasil identifica duas ações concretas para reduzir a morbimortalidade e os custos das doenças infantis e promover a eqüidade: o Programa de Saúde da Família (PSF) e a estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI)7.

A Estratégia de Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância

A estratégia AIDPI busca reduzir não somente as mortes, mas também a freqüência e gravidade de doenças, evitando seqüelas e contribuindo assim para um crescimento e desenvolvimento saudável da criança menor de cinco anos. Combina aspectos específicos voltados para um manejo melhor da criança doente com aspectos nutricionais, imunização e outros fatores importantes, que estão envolvidos na saúde da criança, incluindo a saúde materna7.

Segundo relatório do Banco Mundial, na área da Saúde Pública, esta estratégia revelou a melhor relação custo / benefício em 19933.

No Brasil, a estratégia AIDPI enfoca pneumonia, diarréia, otite, doença febril, anemia e desnutrição, além do incremento nutricional e promoção ao aleitamento materno, imunização e acompanhamento do crescimento e desenvolvimento. No momento atual, outros componentes estão sendo organizados: neonatal, asma e doenças bronco-obstrutivas e violência/acidentes (comunicação pessoal Dr. Benguigui, Y.). A estratégia utiliza sinais e sintomas que apresentam uma boa relação de sensibilidade e especificidade. A avaliação destes sinais e sintomas, associada a uma sistematização de atendimento, prioriza a gravidade e integra várias condições das quais a criança pode estar sofrendo. Os pilares da estratégia são: manejo dos casos, através da habilidade profissional, organização do sistema de saúde e participação da comunidade1,11,12,13.

Essa estratégia, direcionada para o atendimento em nível primário, é apresentada em uma série de quadros que mostram a seqüência e a forma dos procedimentos a serem adotados pelos profissionais de saúde14.

A avaliação da criança é feita usando um mínimo de sinais clínicos que rapidamente determinam a gravidade do caso - sinais gerais de perigo. Quando um destes sinais está presente, a criança é classificada como Doença Muito Grave, sendo necessário referir para um hospital ou serviço de atenção secundária. Deve-se, sempre que possível, iniciar o tratamento prévio à remoção.

Se a avaliação destes sinais é negativa, inicia-se a avaliação para as doenças prevalentes, através das seguintes perguntas e observações1 :

 

1. A CRIANÇA ESTÁ COM TOSSE OU DIFICULDADE PARA RESPIRAR?

Em caso positivo, avaliam-se freqüência respiratória e a presença do desconforto respiratório, valorizando a tiragem subcostal. Além destes, busca-se detectar sibilância e es-tridor. A criança receberá uma das classificações:

  • "Pneumonia Grave ou Doença muito Grave" - A criança apresenta tiragem subcostal ou estridor em repouso. Deve ser referida urgentemente para hospital e receber tratamento prévio com uma dose de antibiótico intra-muscular;
  • "Pneumonia" - A criança apresenta respiração rápida - taquipnéia, sem tiragem. O tratamento domiciliar é indicado com antibiótico e orientações para retorno em 2 dias;
  • "Não é pneumonia" - Não apresenta nenhum sinal de pneumonia. O responsável recebe orientações para o cuidado da criança em casa.
  • Uma vez que as infecções do trato respiratório inferior, geralmente bacterianas, são freqüentemente a primeira ou segunda causa de morte de crianças em países em desenvolvimento, deve-se iniciar o tratamento antibiótico assim que possível.

     

    2. A CRIANÇA ESTÁ COM DIARRÉIA?

    Se a criança apresenta diarréia, avaliam-se os sinais para detectar desidratação - letargia, sede, olhos fundos e "sinal da prega" - verificação do tempo de retorno da pele ao estado anterior, quando esta é levantada pelo polegar e indicador como um beliscão suave. Classificação:

  • "Diarréia com desidratação grave ou Doença muito Grave" - a criança apresenta-se com pelo menos dois dos seguintes sinais: le-tárgica ou inconsciente, olhos fundos, não consegue beber ou bebe muito mal ou sinal da prega positivo, isto é, a pele demora 2 segundos ou mais para retornar ao estado normal. A criança deverá ser transferida para o hospital, ini-ciando-se hidratação venosa com etapa rápida de solução salina;
  • "Diarréia com desidratação" - Apresenta pelo menos dois sinais que se seguem: inquieta ou irritada, olhos fundos, bebe avidamente, com sede ou sinal da prega levemente positivo, isto é, a pele demora até 2 segundos para retornar ao estado normal. Inicia-se Terapia de Reidratação Oral e depois de hidratada, a criança recebe sais de reidratação oral para continuar o tratamento no domicílio e orientações para retorno;
  • "Diarréia sem desidratação" -tratamento domiciliar com orientações para uso do soro de reidratação oral.
  • Se houver sangue nas fezes é acrescentado o termo "Disenteria" à classificação, antibioticoterapia é iniciada e orientado retorno em 2 dias . Caso a diarréia tenha duração mínima 14 dias, é classificada como "Diarréia Persistente" e dieta com baixo teor de lactose é iniciada.

     

    3. A CRIANÇA TEM FEBRE?

    A criança com história de febre é avaliada para presença de malária ou meningite. Avalia-se a pele em busca de petéquias, a nuca para detectar rigidez e abaulamento de fon-tanela para a possibilidade de meningite. Com a avaliação destes sinais a criança é classificada:

  • "Doença febril Grave ou Doença muito Grave" - a criança é transferida, após receber a primeira dose de antibiótico e
  • "Doença febril" - tratamento domiciliar com antitérmico e orientações para retorno em 2 dias.
  • No Brasil o componente malária é aplicado nas regiões endêmicas, principalmente região da Amazônia Legal, área com alto risco, composta pela região Norte e os estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão.

     

    4. A CRIANÇA TEM DOR DE OUVIDO?

    Se a resposta for positiva, a criança recebe a classificação de Otite, principalmente se ocorrer otorréia.

  • "Mastoidite" - Se a criança apresenta tumefação dolorosa ao toque atrás da orelha, deverá ser referida urgentemente ao hospital com administração da primeira dose de antibiótico.
  • "Otite média aguda" - Se há se-creção purulenta visível no ouvido há menos de 14 dias ou dor de ouvido. O tratamento domiciliar é indicado com antibiótico e marcação de retorno em 2 dias.
  • "Otite média crônica" - Secreção purulenta visível por mais de 14 dias. Não é tratada com antibiótico. Orientações para limpeza do ouvido e retorno em 2 dias.
  • "Não há infecção de ouvido" - Não há sinais descritos anteriormente.
  •  

    5. AVALIAÇÃO DA PALIDEZ DA PALMA DA MÃO (ANEMIA)

    Classificada como:

  • "Anemia grave" - A criança apresenta palidez palmar grave, é referida para serviço secundário, para dosagem da hemoglobina e avaliação de hemotransfusão;
  • "Anemia" - A criança que apresenta palidez palmar leve recebe tratamento domiciliar com sulfato ferroso e orientação para retorno em 14 dias. Mebendazol também é prescrito pela alta prevalência de verminose.
  • "Sem anemia" - sem palidez palmar.
  •  

    6. AVALIAÇÃO DO ESTADO NUTRICIONAL

    Inspeção visual de todo o corpo da criança, com atenção em pés, pela possibilidade de edema. Peso da criança anotado no gráfico Peso x Idade e avaliado:

  • "Desnutrição grave" - emagrecimento acentuado visível ou edema de ambos os pés. A criança é referida urgentemente para hospital.
  • "Peso muito baixo para idade" - o valor anotado encontra-se abaixo da linha inferior do cartão da criança do MS. Avalia-se e orienta-se a alimentação da criança e o retorno em 5 dias (em 2 dias em menores de 6 meses).
  • "Peso baixo para idade ou ganho insuficiente" - o valor encontra-se entre as linhas média e inferior do cartão da criança do MS ou o ganho de peso é insuficiente. Avalia-se e orienta-se a alimentação da criança e o retorno em 30 dias (em 2 dias em menores de 6 meses).
  • "O peso não é baixo" - Avalia-se e orienta-se a alimentação da criança, apenas em menores de 2 anos.
  • Na abordagem da criança de uma semana a dois meses de idade, algumas perguntas, avaliações e classificações diferem da criança maior. Os sinais de classificação grave descritos anteriormente são aplicados. Febre ou hipotermia, dificuldade de alimentação, presença de pústulas extensas na pele e secreção em coto umbilical que se estende à pele são também avaliados e, se presentes, levam à classificação de "Possível infecção bacteriana Grave". O lactente jovem é encaminhado urgentemente ao hospital, já tendo sido aplicada a primeira dose de antibiótico. Caso a infecção restrinja-se ao umbigo ou apresente poucas pústulas na pele, a classificação será "Infecção Bacteriana Local" e é prescrito antibiótico para o domicílio, com orientações para retorno em 2 dias.

    Boa parte da capacitação dos profissionais de saúde é dirigida para o "conversar com as mães ou responsáveis", explicando a situação da saúde de seu filho e como tratá-lo, avaliando a forma pela qual a criança está sendo alimentada. A mãe é instruída a reconhecer os sinais de alerta, os quais indicam que a criança deve ser trazida imediatamente para atendimento em uma unidade de saúde1,7.

    Algumas crianças deverão ser reavaliadas em até cinco dias, geralmente por estarem com doenças infecciosas que necessitam de tratamento com antibiótico. O intervalo estipulado para o retorno da criança depende de sua faixa etária, condição de saúde e da classificação recebida1,14.

    Se a criança necessita de instruções para o tratamento e aconselhamento, o profissional de saúde ensina a mãe a administrar medicamentos via oral, a aumentar a ingestão de fluidos na criança com diarréia e a tratar infecções localizadas em casa. Por último explica a data do retorno e quando retornar imediatamente1,7.

    Portanto, a consulta de retorno é uma parte importante do processo de manejo de casos e do conteúdo de educação aos pais na estratégia AIDPI. Caso a criança não retorne para reavaliação e o tratamento administrado não surtiu o resultado esperado, a doença pode agravar-se e a criança pode evoluir para óbito. Esta consulta avaliará se a criança está melhorando com o tratamento prescrito. Crianças com febre precisam ser reavaliadas se não estão melhorando. O retorno é especialmente importante para crianças com problemas de alimentação, que deverão retornar para avaliação do ganho de peso7.

    A estratégia AIDPI só pode ser efetiva se a família levar a criança doente no momento oportuno a um profissional de saúde que recebeu capacitação adequada. Por isso, um aspecto importante da prática da atenção integrada é orientar as famílias (e procurar certificar-se sobre a compreensão da mensagem transmitida) em relação a: os sinais de perigo que demandam atendimento urgente no serviço de saúde; o calendário de consultas de rotina para vacinação; o significado das curvas de crescimento e os marcos de desenvolvimento, os cuidados a serem prestados à criança em casa e as medidas de prevenção e promoção da saúde.

    O Processo de Municipalização e o Programa de Saúde da Família

    Na segunda metade do século passado a concepção de saúde enfocada apenas no tratamento das doenças associado ao contexto político sócio-econômico do Regime Militar favorecia a manutenção ou piora dos indicadores de saúde, onde apenas os doentes cobertos pela Previdência Social eram assistidos. Neste período, os programas de assistência à saúde eram orientados sob a forma de cuidados médico-hospitalares, onde recursos e esforços priorizavam o tratamento da doença. Com a abertura política, nos anos 80, onde a concepção de que o meio social influi de forma decisiva no desenvolvimento das doenças, inicia-se a discussão sobre a inter-relação doença, pobreza e desenvolvimento sócio-econômico e a participação popular alcança o Estado democrático e a Constituição Cidadã, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)15.

    A partir da Lei 8080 de 1990, o Sistema Único de Saúde é implantado, visando à reorganização da atenção à saúde. O Ministério da Saúde (MS) propõe a descentralização, priorizando o nível local como porta de entrada, atendimento e resolução dos principais problemas de saúde da população, assim como a vigilância e a promoção à saúde - atribuições do PSF15.

    A implantação das Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Saúde de 1993 e 1996 (NOB - SUS 93 e NOB - SUS 96) promoveu a integração dos governos federal, estadual e municipal e a descentralização de responsabilidades e recursos para a operacionalização do SUS. O conjunto de responsabilidades e recursos, antes concentrado no nível federal, foi transferido para o nível municipal, no processo denominado municipalização15.

    O aprofundamento do processo de regionalização resultou na Norma Operacional da Assistência à Saúde de janeiro de 2001 (NOAS - SUS 01 / 2001), que se baseia em universalidade, eqüidade no acesso e integralidade da atenção. Além de garantir o acesso de toda população ao primeiro nível de referência municipal, o mais próximo possível de sua residência, a norma organiza os serviços de média complexidade ambula-torial e hospitalar16.

    O Programa de Saúde da Família vem se configurar neste contexto de priorização de atividades voltadas para a promoção e assistência à saúde, através da atenção primária à família, participação da comunidade, identificação e vigilância dos problemas de saúde e das situações de risco. Esta proposta de atenção primária centrada na saúde da família tem sido aplicada de diversas formas, tanto em experiências isoladas, como em programas integrados voltados para a reorganização dos serviços de saúde em diversos países, tais como Inglaterra, Cuba, Canadá, Estados Unidos, Colômbia e Equador17.

    No Brasil, as primeiras equipes de Saúde da Família foram formadas em janeiro de 1994, mas a estratégia iniciou-se antes, em 1991, com a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), ambos com o objetivo de fazer chegar o SUS às populações mais carentes e marginalizadas. Atualmente o "Saúde da Família" não é mais um programa e sim uma proposta de reestruturação do modelo de atenção, reorganizando a prática assistencial em novas bases9,18. A equipe da unidade de saúde da família é formada pelos seguintes profissionais: médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde, todos com regime de dedicação integral. Algumas unidades também contam com odontólogo.

    São atribuições da Equipe de Saúde da Família9,16:

  • Conhecer a realidade das famílias (sócio-econômicas, psico-cultural, demográfica e epidemiológica);
  • Identificar problemas de saúde e situações de risco;
  • Valorizar o vínculo, a responsabilização, a continuidade e a relação de confiança;
  • Promover a vigilância da saúde;
  • Aplicar as ações programáticas em tuberculose, hanseníase, doenças sexualmente transmissíveis (DST), doenças crônicas, doenças relacionadas ao trabalho e ao meio ambiente;
  • Resolver a maior parte dos problemas, garantindo a referência;
  • Prestar assistência integral e promover a saúde através da educação para a saúde;
  • Desenvolver a auto-estima, troca de experiências, apoio mútuo e o auto-cuidado;
  • Promover ações intersetoriais e parcerias com organizações para a melhoria da qualidade de vida e do meio ambiente;
  • Incentivar a formação e participação nos Conselhos de Saúde.
  • Em 2003, o PSF funcionava em 4.276 municípios brasileiros com 17.608 equipes de saúde da família. Cada equipe atende entre 600 a 1000 famílias - 3.475 pessoas em média. Em 2004, cerca de 19 mil equipes promovem uma cobertura de mais de 60 milhões de brasileiros. A meta para 2006 é ampliar para 32 mil o número de equipes, atendendo assim a 100 milhões de pessoas ou cerca de 77% da população brasileira9,19.

    Com o funcionamento adequado, as unidades de saúde do PSF têm uma resolutividade de 85% dos problemas de saúde de sua comunidade. Mas a avaliação realizada pelo Ministério da Saúde mostrou que esta implantação e funcionamento diferem em determinadas regiões decorrentes do processo de municipalização da saúde9.

    Alguns autores investigaram o PSF em nosso meio. Em relação à satisfação da população, no município de Teresi-na, em 1999 observou-se desconfiança e pouca valorização dos profissionais de saúde em relação ao PSF20. Já no triênio 1998-2000 em 14 municípios do Estado de São Paulo, a implantação do PSF mostrou-se como um dos fatores que contribuiu para a queda das taxas de mortalidade infantil e de abandono da vacina DPT21.

    Nas Unidades de Saúde da Família, a assistência à criança se dá através da estratégia AIDPI. Uma vez que as instituições de ensino ainda não formam o profissional com a qualificação necessária para atuar neste contexto, a capacitação dos membros da equipe é feita através de um treinamento que utiliza material adaptado e elaborado pelo Ministério da Saúde. São também programadas visitas de seguimento, como parte do processo de educação continuada e avaliação.

    Estudos sobre a estratégia AIDPI no PSF apontam para a existência de problemas na sua implementação. No Estado de Pernambuco no período de agosto de 1998 a dezembro de 1999, os componentes de estrutura e processo das unidades do PSF mostraram-se em nível aceitável. Dois dos 10 municípios estudados, entretanto, haviam recebido apenas uma visita de seguimento, e foram classificados como insatisfatórios12. Foi também estudada a aplicação das normas da estratégia AIDPI pelas equipes de 90 unidades de saúde (em sua maioria do PSF) nos Estados de Pernambuco, Pará e Ceará em 2000. Foram destacados alguns pontos positivos, mas foi identificada a necessidade de melhor capacitação dos profissionais de saúde22.

    Desejamos que esta revisão, a partir de um melhor entendimento da atenção à criança no PSF, estimule mudanças que alcancem os princípios que motivaram a reforma sanitária e o sistema único de saúde: eqüidade, integralida-de da assistência e universalidade das ações de saúde - 8ª Conferência Nacional de Saúde23.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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