Comunicaçao breve
Evolução da composição lipídica das fórmulas infantis
Evolution of the lipid composition of infant formula
Mário Cícero Falcão
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v23i3p82-86
Instituto da Criança e do Adolescente - Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina - Universidade de São Paulo, Departamento de Pediatria - São Paulo - São Paulo - Brasil
Endereço para correspondência:
Recebido em: 15/02/2023
Aprovado em: 15/07/2023
Resumo
Esta comunicação breve objetiva mostrar a evolução dos lipídeos nas fórmulas infantis, não pretendendo ser uma revisão (narrativa ou sistemática) sobre o assunto. Limita-se a descrever a evolução do perfil lipídico das fórmulas infantis à luz dos conhecimentos científicos apreendidos ao longo de 100 anos de história. O leite materno é o padrão ouro para a alimentação de lactentes, pois possui uma composição única de nutrientes e componentes bioativos. No entanto, muitos lactentes não recebem leite materno, e para suprir suas necessidades nutricionais, foram criadas as fórmulas infantis. Essas fórmulas são comercializadas há mais de um século. Neste texto estão descritas as principais mudanças do perfil lipídico das fórmulas infantis. Essas alterações foram: 1) substituição da gordura láctea por gordura vegetal para se aproximar do padrão ouro (leite humano); 2) adição de ácido docosaexaenoico e, posteriormente, adição de ácido docosaexaenoico incorporado ao fosfolipídeo; 3) incorporação do ácido palmítico na posição 2, para também se aproximar do padrão ouro (leite humano).
Palavras-chave: Lipídeos. Fórmulas Infantis. Aleitamento Materno. Substitutos do Leite Humano. Ácidos Graxos. Alimentação com Mamadeira.
Abstract
This brief communication aims to show the evolution of lipids in infant formulas, and is not intended to be a review (narrative or systematic) on the subject. It is limited to describing the evolution of the lipid profile of infant formulas in light of scientific knowledge learned over 100 years of history. Breast milk is the gold standard for infant feeding, as it has a unique composition of nutrients and bioactive components. However, many infants do not receive breast milk, and to meet their nutritional needs, infant formulas were created. These formulas have been marketed for over a century. This text describes the main changes in the lipid profile of infant formulas, as follows. These changes were: 1) replacement of dairy fat with vegetable fat to get closer to the gold standard (human milk); 2) addition of docosahexaenoic acid and, subsequently, addition of docosahexaenoic acid incorporated into the phospholipid; 3) incorporation of palmitic acid in position 2, to also approach the gold standard (human milk).
Keywords: Lipids. Infant Formula. Palmitic Acid. Breast-Milk Substitutes. Fatty Acids. Bottle Feeding.
Introdução
Em 1921 - há pouco mais de um século - ocorreu o lançamento comercial da primeira "fórmula infantil". Esse termo está entre aspas não por acaso, pois, pela definição atual, esse produto não preencheria os critérios para ser classificado como uma fórmula infantil.1
Em relação à composição lipídica, as primeiras fórmulas continham gordura láctea praticamente intacta, ou seja, grandes quantidades de ácidos graxos saturados, que são pouco absorvidos pelos lactentes e mínimas quantidades de ácidos graxos essenciais (ácidos linoleico e linolênico) e ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa (ácidos araquidônico e docosaexaenoico) - um perfil lipídico inadequado para a nutrição do lactente.1
Esta comunicação breve objetiva mostrar a evolução dos lipídeos nas fórmulas infantis, não pretendendo ser uma revisão (narrativa ou sistemática) sobre o assunto, limitando-se a descrever a evolução do perfil lipídico das fórmulas infantis à luz dos conhecimentos científicos apreendidos ao longo de 100 anos de história.
Lipídeos do leite humano
No leite humano, destaca-se o papel dos lipídeos como fonte para o crescimento adequado do lactente. O sistema lipídico do leite materno, responsável por aproximadamente 50% das calorias, é estruturado para o recém-nascido e o lactente. A digestão e a absorção do lipídeo são facilitadas pela organização da gordura, pelo tipo de ácido graxo (ácidos palmítico, oleico, linoleico, linolênico, araquidônico, docosaexaenoico etc.), pela composição dos triglicerídeos e pela lipase estimulada pelos sais biliares.2
O leite humano apresenta 3% a 4% de lipídeos, sendo 98% de triglicerídeos, 1% de fosfolipídeos, 0,5% de esteróis, e o restante sob a forma de ácidos graxos livres, mono e diacilgliceróis. A maior parte desses lipídeos apresenta-se como glóbulos, envoltos por uma membrana contendo fosfolipídeos e proteínas. Os ácidos graxos presentes no leite materno são, em sua maioria, de cadeia longa (50% como lipídeos saturados e 50% insaturados).3
Lipídeos em fórmulas infantis
Neste mais de um século de existência, o perfil lipídico sofreu grandes transformações na tentativa de se aproximar ao "padrão ouro" (leite humano).4 A primeira grande mudança foi a retirada da gordura láctea e a introdução de gorduras vegetais, tentando mimetizar a composição lipídica do leite materno.1
Os lipídeos fornecem 40% a 50% da energia do leite humano e das fórmulas infantis.4,5 Atualmente, nas fórmulas infantis, essa energia é fornecida por uma mistura de óleos vegetais, que são mais bem absorvidos e fornecem quantidades mais apropriadas de ácidos graxos essenciais. Essas misturas são elaboradas para fornecer um equilíbrio de ácidos graxos saturados, monoinsaturados e poli-insaturados. Os óleos comumente utilizados incluem coco (fonte de ácidos graxos de cadeia média), oleína de palma (fonte de ácidos graxos saturados de cadeia longa, principalmente ácido palmítico) e óleos de soja, milho e girassol (fonte de ácidos graxos poli-insaturados). Em contraste com o leite humano, que tem altas concentrações de colesterol, as fórmulas infantis contêm pouco ou não contém colesterol.4
O quadro 1 (abaixo) apresenta as determinações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em relação à composição dos lipídeos em fórmulas infantis.6
A seguir, serão discutidos dois tópicos importantes que recentemente foram incorporados nas fórmulas infantis: ácido docosaexaenoico, incorporado ao fosfolipídeo, e ácido palmítico, na posição beta 2.
Ácido docosaexaenoico incorporado ao fosfolipídeo
Os ácidos graxos ômega-3 de importância para o ser humano são o ácido linolênico, o ácido eicosapentaenoico (EPA) e o docosaexaenoico (DHA). EPA e DHA recebem o nome de LCPUFAs, sigla derivada do inglês para "ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa," uma vez que a conversão do precursor, ácido alfa-linolênico, em EPA e DHA, passa por processos de elongação e dessaturação da molécula.7
As fontes naturais de ácido alfa-linolênico são óleos vegetais (linhaça, canola etc.), sementes e oleaginosas. Já EPA e DHA são encontrados somente em peixes, como salmão, atum, cavala, bacalhau, sardinha e arenque. Apesar de o ácido alfa-linolênico, no ser humano, ser convertido em EPA e DHA, não se sabe ao certo qual porcentagem é realmente convertida, mas estima-se que seja bastante baixa, da ordem de 5% para EPA e 0,5% para DHA. Sabe-se que crianças, especialmente as mais jovens, devido à imaturidade enzimática, não conseguem converter todo o DHA necessário ao seu desenvolvimento, principalmente neurológico, a partir do ácido alfa-linolênico.8
As ações biológicas dos ácidos graxos ω 3 são basicamente: prevenção de aterosclerose e alterações cardiovasculares, participar do desenvolvimento normal da placenta e do crescimento fetal, do desenvolvimento e metabolismo neural, da visão e da imunidade.9
Ressalta-se, assim, a importância do DHA nos vários estágios da vida, desde a vida intrauterina até a adulta, influenciando, além do desenvolvimento visual e cognitivo, crescimento, saúde óssea, função imunológica e prevenindo doenças cardiovasculares.10
O ácido docosaexaenoico (DHA) é o ácido graxo ômega 3 mais abundante no cérebro de mamíferos.11 Em humanos, o DHA acumula-se em taxas elevadas a partir da metade da gestação até o segundo ano de vida.12 A incorporação cerebral de DHA proveniente de seu precursor é sete vezes menos eficiente que a incorporação de DHA pré-formado. Estudos em humanos mostraram melhor eficácia do DHA pré-formado dietético em relação ao desenvolvimento cerebral e visual com benefícios em longo prazo.13
O DHA é normalmente esterificado em três classes estruturalmente idênticas de lipídeos, a saber: triacilgliceróis, fosfolipídeos e ésteres etílicos. No leite materno, o conteúdo de DHA é maior sob a forma de fosfolipídeos do que sob a forma de triacilgliceróis; entretanto, a utilização da fração de DHA triacilglicerol é maior. Assim, a forma DHA triacilglicerol é a mais comumente utilizada nas fórmulas infantis, extraída a partir de óleo de peixe ou de algas.14
Pesquisas de fontes alternativas de DHA identificou componentes potencialmente adequados para o uso nutricional desse ácido graxo associado ao fosfolipídeo, pois uma vez hidrolisado do seu carreador molecular esterificado, o DHA pode ser manuseado de forma idêntica por seus processos metabólicos naturais. Assim, a partir da década de 1990, iniciaram-se os estudos com DHA fosfolipídeo em fórmulas infantis.13
Um estudo experimental investigou a eficácia relativa do DHA dietético transportado pelo fosfolipídeo em comparação com o DHA transportado pelo triacilglicerol. Os resultados mostraram que o DHA fosfolipídeo é utilizado de forma mais eficiente para o acúmulo desse ácido graxo na substância cinzenta cerebral, quando comparado com o DHA triacilglicerol.14
Ácido palmítico na posição beta 2
Dentre os ácidos graxos saturados de cadeia longa, o ácido palmítico representa 20% a 25% do total de lipídeos do leite materno e merece atenção.15 A maior parte de ácido palmítico do leite humano (70 a 75%) encontra-se na posição beta 2 do triacilglicerol, e as posições beta 1 e beta são ocupadas por outros ácidos graxos.2 No intestino delgado, a lipase hidrolisa os triglicerídeos beta 1 e 3 e o ácido palmítico na posição beta 2 mantêm-se como um monoglicerídeo, com absorção facilitada por maior polaridade e hidrossolubilidade em conjunto com sais biliares. Essa configuração é responsável pela boa absorção desse ácido graxo.4
A maioria das fórmulas infantis tem, em sua mistura de óleos vegetais, a oleína de palma ou óleo de palma, que é fonte natural de ácido palmítico. Entretanto, nesse óleo, o ácido palmítico encontra-se nas posições beta 1 e beta 3 do triacilglicerol. Esta configuração prejudica sua absorção, formando um complexo insolúvel com o cálcio, por processo de saponificação, provocando perda intestinal de cálcio e ácido palmítico, além do endurecimento das fezes, causando prejuízos ao lactente.4
Com o avanço da engenharia alimentar, foi possível sintetizar ácido palmítico na posição beta 2, pela reestruturação do complexo lipídico, alterando sua posição na molécula do glicerol. Trata-se de um avanço excelente no sentido de acrescentar nutrientes às fórmulas infantis semelhantes ao leite humano.4
Dentre os benefícios da adição de ácido palmítico na posição beta 2 nas fórmulas infantis, destacam-se:16,17 melhora na digestão e absorção de ácido graxo e na absorção do cálcio; prevenção de constipação intestinal; melhor mineralização óssea; e maior número de colônias de Lactobacillus na microbiota intestinal.
Considerações finais
A estrutura lipídica do leite materno é extremamente complexa e serve de modelo para a composição lipídica das fórmulas infantis. A adição de ácido docosaexaenoico ligado a fosfolipídeos em fórmulas infantis contribui para melhor desenvolvimento de lactentes, além de atuar no sistema imunológico e na programação metabólica, reduzindo o risco de doenças crônicas não transmissíveis.
Lactentes recebendo fórmulas com ácido palmítico na posição beta 2 apresentam maior contagem de lactobacilos nas fezes, atuando na eubiose intestinal. E lactentes recebendo fórmulas com ácido palmítico na posição beta 2 apresentam mineralização óssea similar a lactentes em aleitamento materno, pois não ocorre perda fecal de cálcio.
Assim, o papel dos lipídeos como fonte para o crescimento adequado do lactente se destaca no leite humano. O sistema lipídico do leite materno que é responsável por aproximadamente 50% das calorias, está estruturado para o recém-nascido e o lactente. A digestão e absorção do lipídeo são facilitadas pela organização da gordura, pelo tipo de ácido graxo (ácidos palmítico, oleico, linoleico, linolênico, etc.), pela composição dos triglicerídeos e pela lípase estimulada pelos sais biliares. Desta forma, o leite humano é o alimento de escolha para o lactente, não só pela sua capacidade de promover a digestão e absorção das gorduras, como também em razão das profundas funções metabólicas atribuídas a sua composição ideal de ácidos graxos essenciais e poli-insaturados de cadeia longa, sobretudo o DHA, que permite um ótimo desenvolvimento neurológico e imunológico.
Apresentamos, a seguir, um esquema didático fortalecendo o leite materno como o alimento ideal para o recém-nascido e o lactente (Figura 1).
Referências
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