Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 10(1) - Maio 2009

Revisoes em Pediatria

O ensino da puericultura e da pediatria no Rio de Janeiro: a propósito do bicentenário da Faculdade de Medicina da UFRJ

The teaching of child care and pediatrics in Rio de Janeiro: concerning the bicentennial of Faculty of Medicine of UFRJ

 

Clemax Couto Sant Anna

Doutorado (Professor Associado da Faculdade de Medicina da UFRJ).

 

Resumo

OBJETIVO: revisão não sistemática da literatura sobre ensino da Pediatria e da Puericultura, buscando situar historicamente o tema por ocasião dos 200 anos de criação do ensino médico no país.
RESULTADOS: embora já se identifique livros sobre doenças na infância na época do Brasil Colônia, o ensino regular só veio a se firmar ao final do século XIX por influência de Moncorvo de Figueiredo. Só em 1937 foi criada a Clínica pediátrica médica e Puericultura e clínica da primeira infância, sob a responsabilidade do Prof. Martagão Gesteira, responsável pela formação de inúmeros profissionais no Brasil desde então.
CONCLUSÃO: a Puericultura e a Pediatria são especialidades jovens e expandiram-se nas últimas décadas do período neonatal à adolescência

Palavras-chave: Puericultura, Pediatria, criança, adolescentes, ensino


Abstract

OBJECTIVE: review on teaching of the Pediatrics and Child care, looking for to place the theme historically for occasion of the 200 years of creation of the medical teaching in Brazil.
METHOD: non- systematic review of the literature.
RESULTS: although on already identifies books on childhood diseases at that time of Brasil Colônia, the regular teaching only starts at the end of the XIX Century for influence of Moncorvo de Figueiredo. Only in 1937 it was created the Clinic pediatric (Clínica pediátrica médica e Puericultura e clínica da primeira infância) under the responsibility of Prof. Martagão Gesteira, responsible for the countless professionals' formation in Brazil ever since.
CONCLUSION: the Child Care and the Pediatrics are young specialties. They expanded in the last decades of the period neonatal to the adolescence

Keywords: Child care, Pediatrics, child, adolescent, Teaching

 

NOTAS SOBRE A PEDIATRIA NO MUNDO

Na Antiguidade há registros de que a sociedade dava um tratamento pouco atencioso à criança. São correntes na literatura as referencias a infanticídio como prática religiosa ou como estratégia de controle populacional. Mesmo séculos mais tarde, a criança não era vista como um ser com direitos e dignidade a serem preservados. Práticas de trabalho escravo, por exemplo, são referidas nas tripulações de navios até a época dos descobrimentos. Do ponto de vista da Medicina, o primeiro livro sobre doenças infantis foi publicado em latim em 1472 por Paolo Begellardi Flumine (1).

Após o Renascimento, os progressos trazidos no século XVII pelos descobrimentos e teorias desenvolvidas por Newton, Descartes, Bacon, dentre outros, conduziram ao aparecimento de sociedades médicas científicas e revistas médicas na Europa. Na América Latina ainda vigorava a apropriação de conhecimentos indígenas com os postulados da medicina tradicional no tratamento das doenças conhecidas à época.

O século XVIII caracterizou-se pelos avanços no ensino da pediatria na Europa, baseado nos estudo dos sinais e sintomas. Começam a aparecer importantes trabalhos científicos, de autores como Corvisart e Bichat na França, Rosensteim, na Suissa e Codogan na Inglaterra. Destaca-se nesse período a descoberta da vacina antivariólica por Jenner (2).

No século XIX, com o advento dos progressos trazidos pela Revolução industrial houve redução da mortalidade infantil nos países industrializados. Verificou-se grande progresso na Medicina, com a criação de várias especialidades médicas, dentre elas a Puericultura, clínica da criança sadia, nas línguas de origem latina.

Médicos de todo o mundo acorreram à França para desenvolver formação em Puericultura e a Pediatria, dado o protagonismo da medicina francesa à época. Do mesmo modo, a cirurgia pediátrica passou a se desenvolver. Em 1802 foi inaugurado em Paris o primeiro hospital pediátrico do mundo, o Hôpital des enfants malades (1). Outros países, como a Inglaterra, Alemanha, Suíça, Bélgica, Espanha também experimentaram avanços. Começou a haver maior intercâmbio científico entre Europa e Estados Unidos, decorrendo disso os progressos na medicina americana. Paulatinamente na América Central e América do Sul vieram a se desenvolver ações voltadas para a proteção a infância (1, 2).

 

A PEDIATRIA NO RIO

As primeiras ações voltadas para o cuidado com a infância registradas no Brasil, são da época dos Padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta que se empenharam em trabalhos humanitários junto aos índios e a população que habitava o país naquela época. Há também relatos de outras ações pontuais por parte dos governantes no tempo da colônia.

Francisco de Melo Franco autor de Tratado da educação física dos meninos, publicado em 1790, pode ser considerado o pioneiro da puericultura brasileira (3).

Com a chegada ao Brasil de D. João VI e a corte portuguesa em 1808 foram criadas as Academias médico- cirúrgicas na Bahia e no Rio de Janeiro, com intervalo de alguns meses entre elas. Na época da regência, D. Pedro II promulgou decreto a 3 de outubro de 1832 que reorganizou o ensino médico no país, criou e deu autonomia de expedir diplomas às Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. A primeira veio a se transformar na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil em 1937, atual Faculdade de Medicina da UFRJ. (1,3)

O ensino da medicina infantil, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, começou vinculado ao da obstetrícia, como era comum na época, em 1833 na cadeira de Partos, doenças de mulheres pejadas e paridas e de recém-nascidos, cujo catedrático foi o Prof. Francisco Júlio Xavier.

Só cinqüenta anos depois, em 1883, por sugestão de Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo, foi instituída a cadeira de Clínica médica e cirúrgica de crianças. Moncorvo de Figueiredo, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1872, especializou-se na França e junto com outros médicos de renome fundou a Policlínica do Rio de Janeiro em 1881 (3). Apoiado pelo imperador D. Pedro II, criou o primeiro curso livre de pediatria no Rio em 1882, portanto um ano antes de a Faculdade de Medicina iniciar curso idêntico, e o manteve até sua morte em 1901. Pelo seu protagonismo na criação da cadeira de moléstias de crianças e por sua obra científica é considerado o Pai da Pediatria Brasileira (1).

Em 1883, a recém criada cadeira de Clínica médica e cirúrgica de crianças, teve como primeiro professor o Senador Cândido Barata Ribeiro, que se dedicava principalmente à ortopedia. Em 1910 foi substituído pelo Prof. Francisco Simões Correia, por sua vez, sucedido pelo Prof. Luiz do Nacimento Gurgel em 1925 (1,3).

No século XIX a mortalidade infantil no Brasil alcançava cifras preocupantes. No Rio de Janeiro era da ordem de 250/1000 nascidos vivos e foi objeto de um artigo de José Pereira no primeiro número dos Anais Brasileiros de Medicina em 1847.

Em 1891 foi fundado no Rio o Instituto de Proteção e Assistência a Infância, levando ao incremento de formação em pediatria de médicos brasileiros que se dirigiam, preferencialmente, a Portugal e Espanha (2).

 


Figura 1 - Bebe no andador. Ilustração do livro De arte medica infantium libri quatuor de Omnibonus Ferrarius. Século 16.
Fonte: http://www.bium.univ-paris5.fr/histmed/debut.htm

 

No início do século XX, destacou-se como um dos principais fundadores da pediatria no Brasil, a figura do Dr. Fernandes Figueira, autor de vários trabalhos, dentre eles, Eléments de sémiologie infantile, em 1903; Consultas práticas de higiene infantil e Patologia infantil. Fernandes Figueira foi o fundador da atual Sociedade Brasileira de Pediatria em 1910 e da qual foi o primeiro presidente, até seu falecimento em 1926. Além disso, foi fundador do serviço de Higiene infantil e assistência a infância, do Departamento Nacional de Saúde, em 1920 (3).

Em 1911, a Reforma governamental Rivadávia, subdividiu o ensino de pediatria em: Clínica cirúrgica infantil e ortopedia e Clínica pediátrica médica e higiene infantil. De 1928 a 1939 o catedrático de ensino da pediatria foi o Prof. Luiz Pedro Barbosa, que em 1915 havia sido nomeado professor substituto de Clínica pediátrica médica e higiene infantil. Este iniciou o curso de pediatria na Policlínica de Botafogo e ampliou os quadros de assistentes da cadeira.

Em novembro de 1937, no bojo de grandes reformas do ensino, o Governo decidiu criar as cadeiras de Clínica pediátrica médica e Puericultura e clínica da primeira infância. Neste mesmo ano foi criada a Faculdade Nacional de Medicina e o Instituto Nacional de Puericultura (Lei 378 de 13.01.1937), inicialmente vinculado ao Ministério da Saúde e Educação e, mais tarde, à Universidade do Brasil. Nessa oportunidade, veio transferido da Bahia para o Rio de Janeiro, o Prof. Joaquim Martagão Gesteira, incumbido de dirigir o Instituto e a cátedra recém criada de Puericultura e clínica da primeira infância. Dentre as obras do Prof. Martagão Gesteira, destacam-se Higiene individual e social da criança, de 1942 e Pediatria de 1944. Graças a seu prestígio, foi planejado e edificado o Instituto de Puericultura da Universidade do Brasil, inaugurado a 1 de outubro de 1953, hoje Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPMG- UFRJ). O primeiro diretor foi o próprio Martagão Gesteira que ministrou aula inaugural de recém criada Cidade Universitária na Ilha do Fundão ( Fig2) e veio a falecer meses depois, em 1954. Nesse ano, houve concurso para catedrático, em função da vaga por aposentadoria do Prof. Luiz Pedro Barbosa em 1939, vencido pelo Prof. José Martinho de Rocha, que assumiu também a direção do Instituto.

 


Fig. 2 - Professor Martagão Gesteira proferindo aula inaugural em 03.04.1954. Jornal A Noite. (Cortesia: pesquisador Antonio José Barbosa de Oliveira

 

Em 1957, nova lei criou a Clínica pediátrica e puericultura, cujo primeiro professor no Rio, foi Martinho da Rocha.(3)

 

O ENSINO DA PEDIATRIA NA ATUAL UFRJ

A história do IPPMG - UFRJ está intrinsecamente ligada ao ensino da pediatria no Rio de Janeiro e no Brasil, já que seu projeto foi minuciosamente voltado para as atividades docentes, de pesquisa e de assistência. Além disso, havia a concepção de que não poderia haver estudo de puericultura num hospital com crianças doentes. A par das aulas ministradas pela cadeira no sexto ano da Faculdade Nacional de Medicina, o IPPMG começou a realizar diversos cursos de extensão universitária, especialização e aperfeiçoamento em puericultura e clínica da primeira infância.

Durante a gestão do Prof. Martinho da Rocha, o IPPMG continuou a expandir-se, foram criadas várias especialidades pediátricas e consolidou-se o Boletim do Instituto de Puericultura que vinha sendo publicado desde 1938, que circulou até 1971 e tinha indexação internacional (4).

A Organização Mundial de Saúde realizou investigação sobre o ensino médico na América Latina em 1956, por Huges e Puffer. Naquele ano, das 79 escolas médicas avaliadas, ainda não havia o ensino da pediatria em 10. Enquanto a Argentina era o país onde havia a maior proporção de estudantes de pediatria, alcançando a taxa de 8/100.000 habitantes, no Brasil a taxa era de 2,4/100.000habs. Chamava a atenção para a insuficiência de laboratórios, de leitos e de professores, principalmente para as atividades práticas, enfatizando que o ideal é o ensino da pediatria em ambulatórios. Naquela época havia o conceito que o ensino da pediatria deveria perfazer 300 horas no currículo médico. Além disso, numa época que ainda vigorava a estrutura da cátedra, havia a compreensão de que o ideal seria o modelo departamental, isto é, um conjunto de professores, subdivididos em vários cursos, com laboratórios e estrutura administrativa complementar, muito semelhante ao que já havia no IPPMG desde sua fundação em 1953. Havia crítica, já naquela época, à subdivisão entre pediatria e puericultura, uma vez que os aspectos de crescimento desenvolvimento, sociais e de prevenção de doenças só poderiam ser compreendidos em conjunto. Concluía o relatório apontando como falhas no ensino, o fato de que em muitas escolas os estudantes eram meros observadores de pacientes e que havia uma grande lacuna no que se refere à pesquisa em pediatria. A preocupação com o ensino da pediatria fez com que em outubro de 1961 viesse a se realizar a I conferência sobre o ensino da pediatria no Brasil, sob a coordenação do Prof. Renato Woiski, de Riberão Preto (5).

Em 1969 aposentou-se o Prof. Martinho de Rocha e nesse ano veio transferido da Universidade Federal Fluminense o Prof. César Pernetta que assumiu a cátedra e a direção do IPPMG, cumprindo a disposição regulamentar da instituição.

Cabe lembrar que a Lei 5540 de 28.11.1968 extinguiu o sistema de cátedras e instituiu o sistema departamental. Assim, o Prof. Pernetta em 1969 foi o primeiro chefe do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, cargo quer ocupou até ser jubilado em 1976 (Fig. 3).

 


Fig. 3 -- Professor César Pernetta

 

O Prof. Pernetta marcou o ensino da pediatria com sua inegável competência e carisma, além de ser autor de inúmeras obras até hoje consultadas, como Semiologia pediátrica, Diagnóstico diferencial em pediatria, Alimentação do lactente sadio, Terapêutica infantil e muitas outras.

Até 1979 o ensino da Pediatria era feito em parte no quinto ano da graduação (Semiologia e clínica) e no sexto ano, no internato eletivo, cuja duração era de um ano. A partir de então, foi instituído o sistema de períodos no curso de graduação, no bojo da reforma universitária. Ao longo do tempo, outras mudanças de currículo conduziram a que o ensino da pediatria seja feito hoje em diversos períodos do curso médico, a partir do quarto período, alcançando o 12 0 período para os alunos que optarem pelo internato eletivo nessa disciplina.

Em 1980 houve concurso para provimento de vaga de professor titular de pediatria, que foi vencido pelo Prof. Gerson Carakushansky que também assumiu a chefia do Departamento e mais tarde foi sucedido nessa função por vários outros professores eleitos pelo colegiado. O Prof. Gerson Carakushansky, geneticista - que publicou artigos e livros, como Semiologia básica do recém-nascido e Doença genética em Pediatria, dentre outros, projetou a Pediatria da UFRJ em nosso meio - exerceu a titularidade até 2005, quando se retirou pela aposentadoria compulsória. Novo concurso naquele ano foi vencido pelo Prof. Antonio José Ledo A. da Cunha que assumiu o cargo de professor titular em 2006 (4). O Prof. Antonio Ledo que já havia sido diretor do IPPMG no período de 2002 a 2004, foi eleito Diretor da Faculdade de Medicina em 2006, cargo que exerce atualmente e que coincide com o fato de ter sido o primeiro pediatra a ocupar tal função na UFRJ.

 

EPÍLOGO

As primeiras décadas do século XX foram marcadas pelas graves conseqüências sócio-econômicas decorrentes das duas Guerras Mundiais. Naturalmente os efeitos sobre as famílias e a sociedade repercutiram na saúde infantil de forma expressiva. Por outro lado, observou-se que a medicina americana tornou-se mais forte ao fim da Segunda Guerra e, além disso, conhecimentos das áreas básicas, como microbiologia, imunologia, parasitologia, genética, bem como os conhecimentos da Psicanálise, Epidemiologia e Saúde Pública vieram a contribuir para o avanço da Pediatria como especialidade médica. Mais tarde foram se consolidando as especialidades pediátricas, que incorporaram os avanços em vacinação - desenvolvidos desde Jenner, no século XVIII - e que levaram as grandes contribuições de Salk e Sabin, bem como no descobrimento progressivo dos antimicrobianos, na incorporação de novas tecnologias para diagnóstico e para procedimentos cirúrgicos e a partir dos anos 50, com a Pediatria Social e a consolidação da Seguridade Social.

Cabe lembrar que a Puericultura experimentou expansão de sua abrangência que hoje se estende do período neonatal (e pré-natal) a adolescência. Ao final do século XX constatava-se que diversos organismos internacionais desenvolviam ações de vigilância sobre a criança, como a ONU, Centro Internacional de Proteção a Infância, OMS, UNICEF, FAO e muitos outros. No entanto, só em 1959 foi divulgada a Declaração Universal dos Direitos da Criança que veio a originar no Brasil, em 1992, o Estatuto da Criança e do Adolescente. (1,2)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Carneiro G. Um compromisso com a esperança. História da Sociedade Brasileira de Pediatria - 1910-2000. Rio de Janeiro, Sociedade Brasileira de Pediatria, 2000, 560p.

2. Figueroa E. La pediatría y la puericultura desde las sociedades primitivas hasta nuestros dias. Rev. Fac. Medicina 1995 18:117-130

3. Martinho da Rocha J. Short chronicle of Brazilian Puericulture and Pediatrics. Bol.Inst. Puer. Univ. Brasil 1959:16:73-84.

4. Aires VLT, Aires R, Cunha AJLA. Pediatria In: Gomes MM, Vargas SSM, Valladares AF. A Faculdade de Medicina primaz do Rio de Janeiro em dois dos cinco séculos de história do Brasil. Rio de Janeiro, Atheneu, 2001, 258p; p.161-71.

5. Martinho da Rocha J. Ensino da pediatria na América Latina (tradução e síntese). Bol. Inst. Puer.Univ. Brasil 1958;15:341-49.