Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 17(2) - Junho 2017

Editoriais

Síndrome alcoólica fetal: uma questão que deve ser discutida

 

Conceiçao Aparecida Segre1; José Dias Rego2; Fabio Chaves Cardoso3

1. Livre-Docente em Pediatria Neonatal. Membro Titular da Academia de Pediatria da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Academia de Medicina de Sao Paulo. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre os Efeitos do Alcool no Feto, na Gestante e no Recém-Nascido. Coordenadora de Campanhas da Sociedade Brasileira de Pediatria
2. Professor de Pediatria da Escola Médica Souza Marques. Acadêmico da Academia Brasileira de Pediatria. Membro do Comitê de Perinatalogia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro
3. Professor de Pediatria da Universidade Estácio de Sá. Chefe do Serviço de Neonatologia do Hospital Maternidade Alexander Fleming. Membro do Comitê de Perinatalogia da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro

 

 

A ingestão alcoólica durante a gravidez causa graves repercussões no feto e no recém-nascido (RN), com consequências irreversíveis para toda a vida. Podemos ter desde alterações morfológicas faciais, malformações congênitas, até graves distúrbios do neurodesenvolvimento.

O álcool é considerado o agente teratogênico mais comum atualmente existente, e a síndrome alcóolica fetal (SAF), apesar de totalmente prevenível, é a causa mais comum de retardo mental não congênito.

O consumo de álcool na gravidez pode ocorrer por depressão, carência afetiva, gravidez indesejada, estado nutricional comprometido, desinformação sobre efeitos de drogas, além do baixo custo e fácil acesso a bebidas alcóolicas, visto ser uma substância socialmente aceita.1,2

A prevalência mundial dessa síndrome, nas suas diversas formas, é de 0,5 a 2 casos/1.000 nascidos vivos,3 mas acredita-se que esses dados são subestimados. No Brasil, no entanto, os dados são pontuais: estudos de prevalência reportam 1,5 casos/1.000 nascidos vivos com SAF clássica e até 34,1 casos/1.000 nascidos vivos de portadores de alterações do neurodesenvolvimento relacionadas ao álcool.4 Mulheres etilistas com histórico de filho com SAF têm a probabilidade de 75% de ter outro com a síndrome.

A biodisponibilidade do álcool na mulher é maior que no homem devido à maior capacidade de absorção, menor atividade da enzima álcool desidrogenase, menor proporção de gordura e quantidade de água corpórea.

O espectro de alterações fetais devidas ao álcool pode ser classificado, segundo a National Organization on Fetal Alcohol Syndrome,5 em:

a) síndrome alcoólica fetal completa (alterações faciais, falência de crescimento e distúrbios do neurodesenvolvimento);

b) síndrome alcoólica fetal parcial;

c) defeitos congênitos relacionados ao álcool;

d) alterações do neurodesenvolvimento relacionadas ao álcool.

Entre 5 e 10% dos fetos expostos durante a vida intrauterina apresentarão anormalidades do desenvolvimento relacionadas ao álcool.6 O nível alcoólico no sangue fetal é similar ao materno. Se acima de 140 mg%, associa-se à evidente teratogenicidade. Até duas horas após a ingestão do álcool pela gestante, as concentrações no sangue fetal equivalem às do sangue materno e sua eliminação pelo feto está prejudicada pela reduzida capacidade metabólica7 e pelo tempo de exposição prolongado a partir do líquido amniótico.

Na fisiopatologia da síndrome, temos as seguintes alterações fetais:

a) diminuição da transferência placentária de aminoácidos essenciais;

b) vasoconstrição placentária causando hipóxia fetal crônica;

c) proliferação celular indiferenciada do sistema nervoso central (SNC);

d) disfunção hormonal.

Esses quatro mecanismos são responsáveis por atraso no crescimento fetal e malformações congênitas, além do aumento da mortalidade.8 A ingestão de álcool pela gestante até a oitava semana gestacional (período embrionário) é responsável por defeitos estruturais graves. Entre a oitava e 40ª semana pode provocar aborto e alterações no SNC.

No RN, as alterações craniofaciais associadas à SAF incluem fissuras palpebrais pequenas, filtro nasal ausente, borda vermelha do lábio superior estreita, microcefalia, epicanto, orelhas de implantação baixas, base do nariz e hemiface achatadas. Em relação à deficiência de crescimento, muitos RNs têm peso ao nascer, comprimento e índice de massa corpórea inferiores ao percentil 10.

Os efeitos estruturais do álcool no SNC incluem a atrofia cerebral com microcefalia, alterações estruturais de forma e tamanho do corpo caloso, incluindo agenesia, diminuição do volume dos gânglios basais e hipoplasia do cerebelo e do hipocampo.9

Estudos de neuroimagem evidenciam que anormalidades do córtex frontal e dos gânglios basais estão associadas com deficit no aprendizado verbal e funções executivas. Anormalidades do córtex parietal, funcionamento atípico temporal e occipital estão relacionadas com o comprometimento na linguagem e processamento visuoespacial. As alterações do corpo caloso acham-se associadas ao comprometimento da função motora, da atenção, do aprendizado verbal e funções executivas.

Os distúrbios neuropsicológicos incluem alterações cognitivas, de desenvolvimento, QI baixo, problemas de aprendizado, atrasos na linguagem e motricidade, deficit de memória, atenção e hiperatividade, dificuldades de integração social e comunicação, além do risco aumentado de distúrbios psiquiátricos, problemas com a lei, abuso de álcool e drogas ilícitas.10

No diagnóstico diferencial da SAF possuímos a tríade de fissuras palpebrais pequenas, borda vermelha do lábio superior fina e filtro nasal esmaecido ou liso, que não são vistas em outras síndromes conhecidas, exceto embriopatia do tolueno. Na criança, no adolescente e no adulto, a diferenciação é difícil com várias entidades que apresentam falhas de crescimento, alterações do SNC e malformações.11

Em relação ao diagnóstico, a identificação de marcadores no mecônio, cabelo e cordão umbilical não são realizadas em nosso meio.

Não há tratamento curativo para a SAF. Além das medidas de suporte, torna-se fundamental a prevenção, sendo o pediatra é peça-chave na disseminação desse conhecimento. Intervenções governamentais, incluindo escolas em atividades educacionais (capacitando professores na abordagem do tema), parentais (contínuo suporte psicológico) e farmacológicas (sintomáticas) são fundamentais.

Como informação para toda a população, é importante enfatizar que não existe nível de alcoolemia seguro e que, assim como o cigarro e outras drogas, beber durante a gestação faz mal à saúde.

 

REFERÊNCIAS

1 Chernoff GF. The fetal alcohol syndrome in mice: maternal variables. Teratology. 1980;22(1):71-5.

2 Ogawa T, Kuwagata M, Ruiz J, Zhou FC. Differential teratogenic effect of alcohol on embryonic development between C57BL/6 and DBA/2 mice: a new view. Alcohol Clin Exp Res. 2005;29(5):855-63.

3 Bertrand J, Floyd LL, Weber MK, Fetal Alcohol Syndrome Prevention Team, Division of Birth Defects and Developmental Disabilities, National Center on Birth Defects and Developmental Disabilities, Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Guidelines for identifying and referring persons with fetal alcohol syndrome. MMWR Recomm Rep. 2005;54(RR-11):1-14.

4 Mesquita MA, Segre CAM. Frequência dos efeitos do álcool no feto e padrão de consumo de bebidas alcoólicas pelas gestantes de maternidade pública da cidade de São Paulo. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2009;19(1):63-77.

5 Calhoun F, Attilia ML, Spagnolo PA, Rotondo C, Mancinelli R, Ceccanti M. National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism and the study of fetal alcohol spectrum disorders. The International Consortium. Ann Ist Super Sanita. 2006;42(1):4-7.

6 Ungerer M, Knezovich J, Ramsay M. In utero alcohol exposure, epigenetic changes, and their consequences. Alcohol Res. 2013;35(1):37-46.

7 Burd L, Blair J, Dropps K. Prenatal alcohol exposure, blood alcohol concentrations and alcohol elimination rates for the mother, fetus and newborn. J Perinatol. 2012;32(9):652-9.

8 Tat-Ha C. [Alcohol and pregnancy: what is the level of risk?]. J Toxicol Clin Exp. 1990;10(2):105-14. [Article in French]

9 Medina AE. Fetal alcohol spectrum disorders and abnormal neuronal plasticity. Neuroscientist. 2011;17(3):274-87.

10 Nayak RB, Murthy P. Fetal alcohol spectrum disorder. Indian Pediatr. 2008;45(12):977-83.

11 Bertrand J, Interventions for Children with Fetal Alcohol Spectrum Disorders Research Consortium. Interventions for children with fetal alcohol spectrum disorders (FASDs): overview of findings for five innovative research projects. Res Dev Disabil. 2009;30(5):986-1006.