Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 17(1) - Fevereiro 2017

Editoriais

Pediatras contra a deficiência infantil

 

Heloisa Viscaino Fernandes Souza Pereira

Neuropediatra, mestre e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Professora-Associada na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e coordenadora do atendimento em Neuropediatria no Hospital Universitário Pedro Ernesto
Presidente do Comitê de Neurologia SOPERJ
Membro da Diretoria Científica da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (RJ)
Vice-Presidente da Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Deficiência Infantil

 

 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em relatório de 2015, a deficiência é condição que afeta até 6% das crianças do mundo, sendo que, destas, 1% apresenta deficiência grave que as impede de locomoção e fala independentes. O texto sinaliza algo que é intuitivamente evidente: as causas de deficiência em muito relacionam-se à pobreza, concentrando a distribuição de afetados em países de baixa e média renda, situação na qual se insere o Brasil. É de se notar que, apesar do número tão expressivo, os deficientes não parecem estar representados proporcionalmente nas escolas, nos parques e mesmo nos consultórios médicos. Onde estão, então, as crianças deficientes?

Para esses cidadãos, o simples ato de transitar pela cidade para as atividades cotidianas é uma tarefa difícil, e cada movimento e obstáculos urbanos e humanos são incontáveis. A maior parte das escolas carece de preparo pedagógico e, em muitas, os pais são desaconselhados a matricular seus filhos. Quando são bem-recebidos e acolhidos, tem de lidar com o preconceito das demais famílias e o sofrimento de não haver um lugar social garantido atormenta a muitos, que por vezes desistem.

Os profissionais de saúde, em sua maioria, singram os mares da desinformação. O barco dessa jornada é um sistema que dificulta o acesso aos direitos, negligencia a doença crônica e, infelizmente, tem grandes dificuldades de estabelecer uma rede de cuidados integrada e multidisciplinar. É aqui, como profissionais, que podemos fazer alguma diferença.

O pediatra tem diversas oportunidades de atuar sendo o divisor de águas nas jornadas de vida dessas pessoas. Os cuidados com a gestação e a prevenção da prematuridade são responsabilidade de todo profissional de saúde, mas a entrada triunfante do pediatra acontece na sala de parto, na tarefa de assegurar condições fisiológicas ideais para o cérebro em desenvolvimento. Ter o pediatra na sala de parto é um direito da criança e da família e salvará muitos neurônios com a garantia de processos padronizados de cuidado, intervenções rápidas em situações clínicas diversas e técnicas corretas de reanimação para as quais recebe treinamento durante sua formação.

Em seguida, mais uma oportunidade: os cuidados de terapia intensiva neonatal, realizados dentro dos padrões de qualidade e alinhados com os avanços tecnológicos recentes. Proteger e resgatar neurônios de um processo de falha energética deve ser um dos mantras do intensivista neonatal. Estudos populacionais recentes sinalizam ser possível reduzir a incidência de paralisia cerebral.1,2 Além dos cuidados sistêmicos adequados, o uso da hipotermia terapêutica e o uso de sulfato de magnésio são exemplos bem-sucedidos.

Nesta jornada, porém, há diversas estações. Mesmo com os cuidados pré-natais e neonatais adequados, alguns bebês desenvolverão sequelas. Por vezes, elas ocorrem silenciosamente na gestação ou são associadas a síndromes genéticas. Uma das linhas atuais de investigação, sugere que haja um grupo de bebês com especial susceptibilidade a eventos de estresse oxidativo, reduzindo a eficácia de medidas protetoras. Portanto, após a alta neonatal, temos nossa terceira grande oportunidade: o diagnóstico precoce dos desvios do desenvolvimento. Mas o que é considerado “precoce”?

A idade habitual de detecção de atrasos é tardia. Os marcos motores, conforme a triagem proposta na caderneta da criança, funcionam como uma referência, mas, antes de haver a ausência de determinado marco, a criança frequentemente já sinaliza de diferentes maneiras que não conseguirá alcançá-lo. Um exemplo que gosto muito é o marco de rolar aos três meses, justamente por ser dos mais precoces. Para que a criança faça o rolamento de prono para a posição supino é preciso que anteriorize a cintura escapular e apoie o peso sobre os cotovelos, fazendo uma transferência de peso de lado a lado e rolando. Crianças que não organizam esta sequência têm muita dificuldade de erguer o pescoço e a parte superior do tronco e atrasam-se no marco do rolamento. Assim, não precisamos esperar que o marco não se complete; a intervenção pode ser antes da falha.

Estudos diversos vêm apontando que podemos detectar praticamente 100% dos atrasos de desenvolvimento antes dos seis meses de vida. O exame neurológico, a observação da motricidade espontânea do recém-nascido e a ressonância magnética, em conjunto, garantem que possamos sinalizar o risco e incluir a criança em terapia com enorme precocidade. A observação da motricidade espontânea do recém-nascido é um método simples que ganhou adeptos por todo o globo nas últimas décadas. Consiste na realização de registro em filme, no qual são observados padrões motores indicativos de lesão relacionados a quantidade, distribuição e fluência dos movimentos espontâneos. O método é utilizado em cenários de saúde pública com grande sucesso em países como a Austrália. Assim, precisamos perseguir este objetivo: detectar precocemente, antes dos primeiros seis meses e idealmente mais cedo. Precisamos de treinamento e política pública para isso.

Finalmente, neste texto, gostaria de salientar a importância de basear o tratamento em evidências científicas, nossa quarta oportunidade. Muitas intervenções realizadas com essas crianças não funcionam por razões tais como frequência inadequada, tempo de sessão reduzido e descontinuidade do tratamento. Outras vezes, são utilizados métodos obsoletos, de eficácia questionável, com grande custo humano e financeiro, sem resultados adequados. Estudo de metanálise do ano de 2013 analisou 64 intervenções voltadas para aspectos da deficiência, tais como a espasticidade, a função manual, a sialorreia dentre outros. Destes, apenas 24% foram considerados eficazes cientificamente, 70% têm eficácia incerta e 6% são definitivamente ineficazes. Surpreendentemente, métodos considerados consagrados e de uso corriqueiro encontram-se nas duas últimas categorias. Assim, a tarefa do pediatra inclui aproximar-se das áreas de reabilitação e habilitação, advogando em prol da criança e da família para menor incidência e redução de danos. Vamos tirar as crianças deficientes das sombras.

 

REFERÊNCIAS

1 Novak I, Macintyre S, Morgan C. A systematic review of interventions in children with cerebral palsy: a state of evidence. Dev Med Child Neurol. 2013;55(10):885-910.

2 Bosanquet M, Copeland L, Ware L, Boyd R. A systematic review of tests to predict cerebral palsy in young children. Dev Med Child Neurol. 2013;55(5):418-26.