Relato de Caso
Macrodactilia isolada do pé: um relato de caso na infância
Isolated macrodactyly of the foot: a case report in childhood
Ana Carolina Villela Antonialli; Giovanna Seres Oliveira; Thiago Menezes Pereira; Flavia Linhares Martins
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v24i2p60-65
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Medicina - Poços de Caldas - Minas Gerais - Brasil
Endereço para correspondência:
Giovanna Seres Oliveira
giovannaseres@gmail.com
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Medicina, Poços de Caldas, Minas Gerais, Brasil
Recebido em: 24/10/2023
Aprovado em: 28/02/2024
Resumo
INTRODUÇÃO: Macrodactilia é uma anomalia congênita caracterizada por aumento de estruturas digitais, acometendo tecido fibrogorduroso e ósseo. Pode envolver um ou múltiplos dedos; das mãos - mais frequente - ou dos pés, e ser um achado isolado ou estar associada a síndromes. É classificada quanto à sua progressão em estática ou progressiva. De caráter genético, a macrodactilia está incluída no espectro de anomalias do sobrecrescimento PIK3CA-relacionado.
OBJETIVO: Apresentar um caso de macrodactilia isolada em paciente pediátrico.
DESCRIÇÃO DO CASO: Paciente do sexo masculino, sete anos de idade, apresenta crescimento progressivo do hálux direito desde os três anos de idade. Sem história pessoal de comorbidades ou traumas. Na história pré-natal, mãe multigesta, tabagismo durante a gravidez, sem demais intercorrências. A história familiar é negativa para macrodactilia ou outras hipertrofias. A criança nega sentir dores, mas relata aversão ao aspecto estético do pé, sentimento relacionado ao bullying sofrido na escola. Ao exame físico, apresenta hipertrofia do 1º pododáctilo direito associada a ligeiro aumento global do pé direito. Não apresentou alterações na marcha ou alterações de sensibilidade. Não apresenta lesões de pele ou outras alterações ao exame físico.
DISCUSSÃO: O prognóstico dos pacientes depende do grau de gravidade do fenótipo e da extensão da hipertrofia e complicações vasculares. A apresentação mais leve pode incluir apenas o crescimento excessivo assimétrico dos membros e ser expressa apenas como macrodactilia isolada, como é o caso do paciente apresentado. Por não apresentar perdas funcionais, ainda não foi necessária qualquer intervenção cirúrgica e o paciente segue em acompanhamento multiprofissional.
Palavras-chave: Deformidades do Pé. Ortopedia. Relatos de casos. Anormalidades Musculoesqueléticas. Aumento do Músculo Esquelético.
Abstract
INTRODUCTION: Macrodactyly is a congenital anomaly characterized by increased digital structures, affecting fibroadipoose tissue and bone. May involve one or multiple fingers and can affect hands - more frequent -, or feet and can be an isolated finding or associated with syndromes. It can be classified according to its progression as static or progressive. Of genetic character, macrodactilia is included in the PIK3CA-related overgrowth spectrum.
OBJECTIVE: To report a case of isolated macrodactilia in a pediatric patient.
CASE DESCRIPTION: Male patient, seven years old, with progressive growth of halux right since the age of three. No personal history of comorbidities or trauma. In prenatal history, multigest mother, smoking during pregnancy, without other complications. Family history is negative for macrodactilia or other hypertrophies. The child denies feeling pain but reported aversion to the aesthetic aspect of the feet, a feeling related to the bullying suffered at school. At physical examination, he presented hypertrophy of the right first toe associated with a slight overall increase in the right foot. No march or sensitivity changes. No skin lesions or other changes to physical examination.
DISCUSSION: The prognosis of patients depends on the degree of severity of the phenotype and the extent of hypertrophy and vascular complications. The lighter presentation may only include asymmetrical excessive growth of the limbs and is expressed as isolated macrodactyly, such as the patient presented. Because it did not present functional losses, no surgical intervention has been required and the patient is still under multiprofessional clinical follow-up.
Keywords: Foot Deformities. Orthopedics. Case Reports. Musculoskeletal Abnormalities. Skeletal Muscle Enlargement.
Introdução
Macrodactilia é uma anomalia congênita caracterizada por aumento de estruturas digitais, acometendo o tecido fibrogorduroso e ósseo. Pode envolver um ou múltiplos dedos; das mãos - mais frequente - ou dos pés.1,2 Pode ser um achado isolado ou estar associada a síndromes, como neurofibromatose, síndrome de Proteus, distúrbio linfático primário ou malformações vasculares, como a síndrome de Klipple-Trenaunay.3,4 Ainda, pode ser classificada em congênita ou estática, quando o aumento é observado desde o nascimento, com a estrutura acometida crescendo proporcionalmente ao crescimento da criança, ou em macrodactilia progressiva, quando o aumento ocorre de forma gradual, com o dígito acometido crescendo mais rápido do que o restante do corpo.1,2,5
De caráter genético, a macrodactilia está incluída nos defeitos de desenvolvimento durante a embriogênese, no subgrupo das síndromes que cursam com sobrescrescimento causadas por mutações de ativação somática no gene Phosphatidylnositol 3-Kinase, catalytic Alpha (PIK3CA).6
O gene PIK3CA está localizado no cromossomo 3 na posição q26.32 e codifica a P13-quinase, uma enzima envolvida na via PI3KAKT-mTOR, uma das principais vias de crescimento celular.7 Os fenótipos associados às mutações do gene PIK3CA são extremamente variáveis, dependendo do momento embrionário pós-zigótico em que a mutação ocorre e em que células elas ocorrem.8,9,10 A mutação pode ocorrer no início da embriogênese, causando diferenciação em todos os tecidos; ou ocorrer em tecido maduro, cursando em supercrescimento mais localizado.11 As áreas predominantes de crescimento excessivo são cérebro, membros, dedos, tronco (abdome ou tórax) e rosto, em uma distribuição assimétrica, com ou sem displasia celular.12 Dessa forma, há um grande espectro de fenótipos do sobrecrescimento PIK3CA-relacionado, variáveis em natureza, extensão e gravidade, e foram então denominados de PIK3CA-related overgrowth spectrum (PROS).3,8 Os fenótipos são divididos em subtipos, mas podem ter características clínicas sobrepostas, alguns com efeitos localizados em algum tecido, outros com manifestações pleiotrópicas e mais graves.3,8
Recomendam-se uma avaliação clínica criteriosa e um acompanhamento multiprofissional, devido à diversidade dos sintomas associados ao PROS.10,12 A macrodactilia do pé, por exemplo, pode causar dor, calosidades, úlceras, comprometimento da marcha, dificuldade em usar sapatos, osteomielite, alterações das unhas, complicações vasculares e tromboembólicas, além de questões estéticas e psicológicas, com impactos funcional e social.1,10,13 Tratamento cirúrgico precoce pode estar indicado para reduzir o tamanho do dedo e complicações, ou até mesmo indicação de amputações nas manifestações mais avançadas e em membros com perdas funcionais.5,9 Tratamentos farmacológicos estão em estudo, como o uso de Sirolimus ou Miransertib, e o tratamento com Alpelisib foi recentemente aprovado pela American Food and Drug Administration (FDA), direcionado a pacientes com fenótipos mais severos.12
Assim, este relato de caso tem como objetivo apresentar uma macrodactilia progressiva isolada em pé em um paciente pediátrico.
Relato de Caso
Paciente do sexo masculino, sete anos de idade, apresenta quadro progressivo de crescimento do hálux direito, de início aos três anos de idade. Nessa época, a família procurou atendimento médico em Unidade Básica de Saúde (UBS), em sua cidade natal, onde foram solicitadas radiografia de pé - evidenciando aumento de partes moles e das falanges ósseas do hálux direito, e ressonância nuclear magnética (RNM), que identificou proeminência do coxim gorduroso subjacente ao primeiro metatarso, não nodulariforme. O diagnóstico de macrodactilia foi suspeitado pelos achados clínicos e radiológicos, porém a família não deu continuidade ao acompanhamento nesse momento, devido a mudança de cidade e falta de informação sobre a anomalia. Procurou novamente a UBS do novo território de moradia, em cidade do interior de Minas Gerais, aos seis anos de idade, onde reiniciou o acompanhamento. Paciente sem história pessoal de comorbidades ou traumas. Na história pré-natal, mãe multigesta (G4P3A1) relata tabagismo durante a gravidez (10 cigarros por dia) e uso de cocaína por cinco anos anteriores à descoberta da gravidez do paciente em questão, hábito cessado desde então. Sem outras intercorrências pré-natais. A história familiar é negativa para macrodactilia ou outras hipertrofias. Atualmente, a criança nega sentir dores, mas relata aversão ao aspecto estético do pé, sentimento associado às dificuldades da criança em lidar com comentários dos colegas no ambiente escolar em relação à diferença de tamanho dos seus pés, necessitando a família procurar a escola por diversas vezes devido ao bullying sofrido pela criança. Por um tempo, o paciente usou apenas chinelos, pois a mãe receava que o uso de calçados fechados machucasse o filho, mas passou a calçá-lo com tênis do tamanho do pé direito após receber orientações profissionais.
Ao exame físico, a criança apresenta hipertrofia do hálux direito, com calosidade na extremidade, associada a aumento global do pé direito (FIGURA 1), pulsos periféricos simétricos e sem alterações e sem perdas nas sensibilidades tátil, vibratória, dolorosa ou térmica. As seguintes medidas foram realizadas: comprimento do pé direito 20 centímetros (cm) e esquerdo 19 cm; 1° pododáctilo direito 4 cm e esquerdo 3 cm. Não apresentou distúrbios na marcha, apresenta discreto desnivelamento de quadril à esquerda. Ainda não apresenta nevos ou lesões de pele ou outras alterações ao exame físico.
O paciente foi então encaminhado para avaliação da ortopedia e genética em centro especializado, na capital do estado, onde foram realizados exames de radiografia do pé (FIGURAS 2 E 3), RNM, tomografia computadorizada (TC), escanometria de membros inferiores, além de exames laboratoriais séricos. A RNM evidenciou aumento de tecidos moles adjacentes à porção distal do primeiro raio e no hálux direito. A TC mostrou encurtamento do membro inferior esquerdo em aproximadamente 0,1 cm (FIGURA 4). Os exames laboratoriais não apresentaram nenhuma alteração hematológica.
No momento, o acompanhamento periódico se mantém clínico, sem indicações de intervenções cirúrgicas pela ausência de alterações funcionais ou vasculares. A Unidade Básica de Saúde do seu território atual fornece suporte clínico e psicológico, além de intermediar o transporte do paciente para as consultas intermunicipais com os especialistas. O paciente passou a se relacionar melhor com sua condição esteticamente, principalmente após iniciar o uso de calçados fechados.
Discussão
A macrodactilia isolada é frequentemente mais descrita na forma progressiva e no sexo masculino,1,2 assim como descrito no relato em questão. Entretanto, múltiplos dedos são comumente mais afetados do que um dedo isolado, sendo dois dedos adjacentes o mais prevalente.13,14 Ainda, ao estudar apenas a macrodactilia que acomete os pés, pesquisadores indicaram uma preponderância para o sexo feminino, o pé esquerdo e o tipo estático.13 No caso em questão, há acometimento isolado de apenas um dedo e do pé direito, condição mais rara que o acometimento da mão, o que o diferencia dos casos descritos na literatura.
A influência de fatores gestacionais não é inteiramente entendida, embora fatores mecânicos, isquêmicos e genéticos, como as mutações PIK3CA, em uma interação complexa de fatores epigenéticos e hormonais que orquestram o crescimento humano, sejam considerados responsáveis pelo supercrescimento dos tecidos.4,11 Estudo demonstrou que a maioria das mães das crianças acometidas eram primigestas e, sobre a história gestacional, com exceção para sete mães com infecção respiratória superior, distúrbios hipertensos e inflamação ginecológica, não foram associados outros históricos de doenças ou ambiente prejudicial, como tabaco ou álcool.13 O paciente em questão é filho de mãe multigesta e não é possível determinar o efeito do tabaco e da cocaína presentes em sua história gestacional na ocorrência da macrodactilia.
Em relação ao diagnóstico, raramente a confirmação pré-natal foi relatada e pesquisas moleculares negativas no líquido amniótico não excluem o diagnóstico. A suspeita diagnóstica se dá após o nascimento frente à hipertrofia de algum segmento corporal, associado ou não a alterações de pele ou anomalias vasculares.15 Os critérios clínicos para diagnóstico do PROS, sugeridos por Keppler-Noreuil et al., são ter a presença da mutação PIK3CA; alteração congênita ou de surgimento na primeira infância; apresentar sobrecrescimento e apresentar sinais clínicos sugestivos das categorias A ou B: A - presença de dois ou mais sinais: hipertrofia (adiposa, muscular, nervosa ou esquelética); malformações vasculares (capilares, venosas, arteriovenosas ou linfáticas) ou nevus epidérmicos; B - anomalias isoladas: malformação linfática de grande tamanho; macrodactilia isolada ou hipertrofia de extremidade ou membro; hipertrofia adiposa de tronco; hemimegalencefalia ou displasia focal cortical; ceratose seborreica ou nevus epidérmico.3
A confirmação molecular da mutação PIK3CA tornou possível definir melhor o espectro dessas entidades e oferecer novas abordagens terapêuticas, quando disponíveis.8,15 Na macrodactilia isolada, a mutação poderá ser detectada apenas ao testar o tecido afetado; ao examinar o sangue ou saliva desses pacientes, geralmente nenhuma mutação será encontrada.11 O paciente em questão não realizou testes confirmatórios da mutação, mas se beneficiaria de um diagnóstico molecular específico. Por se tratar de condição rara, as famílias de pacientes afetados podem não ter acesso aos recursos de forma plena. Para tal, uma colaboração multicentro deve ser estimulada, até mesmo internacional, a fim de derivar linhas de diagnóstico e vigilância de doenças raras.8
O prognóstico dos pacientes com PROS depende do grau de gravidade do fenótipo. A apresentação mais branda do PROS pode incluir apenas o crescimento excessivo assimétrico dos membros, com sobreposição ou não de malformações vasculares, e pode ser expressa apenas como macrodactilia isolada,11 como é o caso do paciente em questão, cujo prognóstico será baseado na importância da hipertrofia e na extensão das malformações vasculares.15 Por conseguinte, mesmo nos casos leves, o acompanhamento dos pacientes deve ser multidisciplinar e longitudinal para além da infância, a fim de notar a progressão do sobrecrescimento e o aparecimento de novos sinais e sintomas e os impactos que causarão ao longo da vida. 4
As anomalias esqueléticas devem ser monitoradas, como a escoliose, luxação do joelho e o excesso de crescimento ósseo, que pode causar assimetria dos membros inferiores. Algumas dessas anomalias podem exigir intervenção cirúrgica,15 apesar de não existir tratamento cirúrgico específico para a macrodactilia.2,5 A terapêutica deve ser direcionada para cada caso, levando em consideração vários aspectos: tipo de macrodactilia, velocidade de progressão da doença, os dedos envolvidos e idade do paciente.5
Há quatro tratamentos cirúrgicos preconizados, a fim de reduzir o tamanho e espessura do pododáctilo: a epifisiodese das falanges, a dermolipectomia associada à ressecção parcial ou total da falange distal, a artrodese com ressecção da articulação interfalângica distal, e, em casos de deformidades com grandes comprometimentos estéticos ou perdas funcionais importantes, a amputação do pododáctilo.2 Como os resultados cirúrgicos são pouco satisfatórios, em muitos casos, o desfecho para o paciente é a amputação, mesmo que outras intervenções tenham sido feitas anteriormente.5
Ademais, anomalias vasculares são frequentes no PROS e os indivíduos possuem risco aumentado para trombose venosa profunda e se beneficiam de avaliação hematológica periódica.8 Anomalias viscerais, como alterações renais e esplênicas, podem também estar presentes e devem ser monitoradas. Um risco aumentado para tumores ainda é discutido, especialmente tumor de Wilms; portanto, estudos de vigilância para tal ainda são controversos e não recomendados nas guidelines mais recentes.15 Déficits intelectuais, distúrbios comportamentais como déficit de atenção e hiperatividade, tendências obsessivo-compulsivas e problemas relacionados à ansiedade foram relatados associados ao PROS, e podem aparecer tardiamente na infância, devendo os profissionais ficar atentos.7
Portanto, o pediatra deverá contar com a contrarreferência do ortopedista, cirurgião vascular, geneticista e, conforme as alterações diagnosticadas, avaliações do dermatologista, cirurgião plástico, cirurgião pediátrico e hematologista. Raramente outros especialistas podem ser requeridos, como endocrinologista, nefrologista, neurocirurgião, neurologista e psiquiatra. Além do acompanhamento médico, fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, odontologia e nutricionista devem fazer parte do plano terapêutico desses pacientes.15
Para o paciente apresentado, por não apresentar perdas funcionais ou sintomas relacionados a compressões importantes de estruturas, ainda não foi necessária qualquer intervenção cirúrgica. Assim, o paciente segue em acompanhamento médico na atenção primária à saúde e em serviço especializado, além de acompanhamento psicológico. Atualmente, a família possui boa adesão ao tratamento e relata ter mais conhecimento sobre a anomalia e mais capacidade de fornecer suporte à criança.
Em relação ao aconselhamento genético, como a mutação no PIK3CA é normalmente causada por uma variante patogênica de novo mosaico, pós-zigótica, a maioria dos probandos representa um caso de única ocorrência em uma família. Nenhuma transmissão vertical confirmada ou recorrência foi relatada até o momento.12 Raramente essa mutação é expressa em gônadas; portanto, espera-se que a transmissão para a próxima geração seja improvável.11
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