Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 24(2) - Junho 2024

Relato de Caso

Síndrome de Heiner em lactentes: relato de caso

Heiner syndrome in infants: case report

 

Daniel Silva Carvalho Curi; Bernardo Lofiego Caffaro; Giselle Lopes Pereira; Rafaela Baroni Aurilio

 

DOI:10.31365/issn.2595-1769.v24i2p54-59

Hospital Universitário Pedro Ernesto, Pediatria - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil

 

Endereço para correspondência:

Bernardo Lofiego Caffaro
be.lofiego@gmail.com

Instituição: Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Recebido em: 24/07/2023
Aprovado em: 15/02/2024

 

Resumo

INTRODUÇÃO: A síndrome de Heiner (SH) é uma condição rara marcada por hemorragia pulmonar em crianças portadoras de alergia à proteína do leite de vaca. O atraso no diagnóstico pode postergar o tratamento e evoluir para um desfecho desfavorável.
OBJETIVO: Apresentar um caso de SH em que a suspeita diagnóstica precoce foi crucial para evitar evolução para maior gravidade, e até mesmo óbito.
DESCRIÇÃO DE CASO: Lactente de dez meses com diagnóstico prévio de alergia a proteína do leite de vaca que evoluiu com quadro de hemoptise, hemorragia alveolar (com alteração radiológica compatível com sangramento), perda ponderal e anemia. Foram excluídas causas de sangramento alveolar como doenças infecciosas, autoimunes e reumáticas, pela similaridade dos sintomas.
COMENTÁRIOS: O diagnóstico em lactentes é feito pela pesquisa de siderófagos em lavados gástrico e broncoalveolar, por ser menos invasivo se comparado à biópsia pulmonar nesta faixa etária. O tratamento instituído nesse caso foi a corticoterapia sistêmica (primeira linha de tratamento desta condição) e dieta restrita de proteína do leite, com melhora clínica e radiológica.

Palavras-chave: Hemossiderose. Hemoptise. Hipersensibilidade ao Leite.


Abstract

INTRODUCTION: Heiner syndrome (HS) is a rare condition marked by pulmonary hemorrhage in children with cow milk protein allergy. The delay in diagnosis may postpone treatment and progress to an unfavorable outcome.
OBJECTIVE: To present a case of HS in which early diagnostic suspicion was crucial to avoid progression to greater severity, and even death.
CASE DESCRIPTION: Ten-month-old infant with a previous diagnosis of cow milk protein allergy who evolved with hemoptysis, alveolar hemorrhage (presence of radiological alteration compatible with bleeding), weight loss, and anemia. Causes of alveolar bleeding, such as infectious, autoimmune, and rheumatic diseases, were excluded due to the similarity of symptoms.
COMMENTS: The diagnosis in infants is made by investigating siderophages in gastric and bronchoalveolar lavages because it is less invasive than lung biopsy in this age group. The treatment was systemic corticosteroid therapy (first line of treatment for this condition) and restricted milk protein diet; there was clinical and radiological improvement.

Keywords: Hemosiderosis. Hemoptysis. Milk Hypersensitivity.

 

INTRODUÇÃO

A hemossiderose pulmonar (HP) é uma doença rara, responsável por episódios recorrentes de hemorragia alveolar difusa em crianças. Embora a HP possa se apresentar em qualquer idade, a manifestação inicial ocorre principalmente entre 1 e 7 anos de idade. A HP é caracterizada pela tríade de hemoptise, anemia ferropriva e hipotransparência heterogênea difusa de aspecto algodonoso em exames radiológicos do tórax. Macrófagos carregados de ferro em aspirados brônquicos ou gástricos podem ser detectados em alguns casos e são diagnóstico de HP.1 Quando a HP é induzida pela exposição à proteína do leite de vaca, denominamos síndrome de Heiner (SH).2

A corticoterapia associada à dieta isenta de proteína do leite de vaca representa a principal modalidade de tratamento. Tratamentos imunomoduladores podem ser úteis (hidroxicloroquina, azatioprina ou ciclofosfamida) em casos mais graves de HP ou como agentes poupadores de corticosteroides.1

Os autores relatam o caso de um lactente com manifestação clínica de SH. O diagnóstico foi feito por aspirado brônquico e gástrico. O paciente foi tratado com corticosteroides e apresentou melhora clínica. O estudo de caso foi aprovado pelo CEP-HUPE sob o número CAAE 68548023.0.0000.5259.

 

RELATO DE CASO

Um lactente do sexo masculino, 10 (dez) meses de idade, com diagnóstico prévio de alergia à proteína do leite de vaca (APLV), apresentou hemoptise intermitente e febre por um mês, além de tosse e perda ponderal em duas semanas. O paciente era filho gemelar, nascido a termo, com idade gestacional de 37 semanas e 6 dias. Sua mãe havia sido diagnosticada com lúpus eritematoso sistêmico. Após o nascimento, foi amamentado e alimentado com fórmula infantil à base de leite. No terceiro mês de vida, iniciou quadros de sibilância com baixa resposta a corticoides inalatórios e, em concomitância, piora dos episódios de refluxo iniciados desde o primeiro mês de vida. Com a suspeita diagnóstica de APLV como diagnóstico diferencial, a dieta do lactente foi alterada para fórmula extensamente hidrolisada num período de seis semanas e com remissão da sintomatologia. Após reintrodução da fórmula infantil com proteína do leite de vaca, houve recidiva da sintomatologia de refluxo gastroesofágico e broncoespasmos, sendo diagnosticado com APLV.

Após o diagnóstico de APLV, familiares relataram baixa adesão à recomendação dietética, quando, aos 10 meses de idade, apresentou febre e hemoptise, associado a retardo do crescimento pôndero-estatural, embora não houvesse sinais de atraso no neurodesenvolvimento. Não havia história de contato com doenças infecciosas, incluindo tuberculose e tampouco história de internação hospitalar ou necessidade de hemotransfusão.

Devido à persistência dos sintomas, o lactente foi atendido em diferentes serviços hospitalares, sendo prescrita antibioticoterapia, sem melhora significativa dos sintomas. Realizou radiografia simples de tórax, revelando hipotransparência heterogênea em terços pulmonares superior e médio bilateralmente sendo pior no hemitórax direito (FIGURA 1).

 

 

Foi atendido em outro serviço dois dias após o atendimento de emergência, quando se apresentou com palidez cutâneo-mucosa, taquipneia (80 incursões por minuto) com tiragens subcostais, nível de saturação de oxigênio entre 95% e 97%, com ausculta pulmonar simétrica e sem ruídos adventícios.

O paciente foi admitido no serviço de pediatria para elucidação diagnóstica e avaliação (FIGURA 2). Naquele momento, foi realizada radiografia de tórax, que revelou piora radiológica, com hipotransparência difusa heterogênea de aspecto algodonoso, pior no hemitórax direito. Os exames laboratoriais revelaram hemoglobina 9,8 g/dl, hematócrito 29%, índice de distribuição eritrocitária (RDW) 15,1% (TABELA 1). Outros estudos laboratoriais, como contagem total de leucócitos, contagem de plaquetas, proteína C reativa, eletrólitos, função renal e função hepática encontravam-se dentro da normalidade. Os testes de painéis virais respiratórios para influenza, vírus sincicial respiratório (VSR), vírus parainfluenza e coronavírus foram negativos. Já o teste do painel viral respiratório para adenovírus foi positivo.

 

 

 

 

Após 48 horas de internação, a tomografia computadorizada de tórax (FIGURA 3) mostrou consolidação difusa bilateral e infiltrados em hemitórax esquerdo e opacidade irregular. Foram realizados exames laboratoriais para detecção de tuberculose (GeneXpert ultra, bacilo álcool-ácido resistente, cultura de tuberculose de lavado gástrico), infecções congênitas (citomegalovírus, herpes simples, rubéola, HIV, toxoplasmose, sífilis), doenças autoimunes e reumáticas (componentes do complemento CH50, C3 e C4, imunoglobulina sérica IgG, IgA, IgM, Anti-Ro, Anti-La, FAN, Anti-RNP, Coomb direto, anticorpos anticardiolipina P-ANCA, C-ANCA). Esses estudos mostraram resultados negativos e o fibroscópio flexível descartou qualquer lesão supraglótica.

 

 

Devido à suspeita diagnóstica de HP, foi realizada a pesquisa de macrófagos carregados de hemossiderina (siderófagos) em lavado gástrico (LG). O resultado foi inconclusivo e foi agendada broncoscopia para realização do lavado broncoalveolar (LA). O lactente apresentou remissão clínica (melhora dos achados clínicos e radiológicos) e recebeu alta para avaliação ambulatorial. Nesse momento, o LA não foi realizado durante internação, e sim, agendado para realização de forma eletiva.

A mãe, no entanto, relatou muitas recidivas (hemoptise, taquipneia, anemia) em atendimentos subsequentes, sendo prescrito terapia empírica com prednisolona (1mg/kg/dia). Também foi enfatizada a dieta isenta de leite e derivados, mas não houve boa adesão às recomendações dietéticas que são necessárias para controle da APLV. Com o tratamento irregular, houve piora clínica importante, necessitando de nova internação hospitalar, na qual foi realizada a broncoscopia e foram repetidos o LG.

Na segunda internação, recebeu hemotransfusão e oxigenoterapia por cânula nasal de 2 litros por minuto, pela piora laboratorial (hemoglobina 7,5 g/dl; hematócrito 23,1%). A terapia com prednisolona foi substituída por metilprednisolona endovenosa (2mg/kg/dia). Fórmula extensamente hidrolisada foi prescrita. Observou-se boa resposta clínica e radiológica após 7 dias (FIGURA 4).

 

 

Após melhora dos sintomas e dos parâmetros hematológicos, os lavados gástricos foram repetidos e o lavado broncoalveolar foi realizado. O resultado tanto do LA quanto do LG foi a presença de macrófagos carregados de ferro nos respectivos aspirados, confirmando o diagnóstico de HP. Assim, o tratamento instituído da condição foi dieta isenta de leite de vaca e seus derivados, associado a corticoterapia sistêmica. Por isso, o lactente recebeu alta com prednisolona (2 mg/kg/dia), suplementação medicamentosa de ferro e recomendações de dieta com fórmulas extensamente hidrolisadas como complementação. A família foi aconselhada sobre uma dieta isenta de laticínios.

 

DISCUSSÃO

A hemossiderose pulmonar é uma causa rara de hemorragia alveolar difusa. Embora não haja etiologia identificável, vários fatores de risco têm sido propostos, como predisposição genética, exposição ambiental, associação imunológica e reação alérgica. O paciente descrito apresentava alergia à proteína do leite de vaca relacionada à HP, também conhecida como doença pulmonar induzida pelo leite de vaca (síndrome de Heiner).2,3

A síndrome de Heiner (SH) é uma doença rara de hipersensibilidade induzida por alimentos. Ela geralmente ocorre em crianças com menos de 2 anos de idade, mas pode aparecer mais tarde (o paciente mais velho descrito tinha 5 anos de idade).4

A SH não é apenas induzida por leite de vaca homogeneizado, mas a doença também ocorreu em alguns lactentes alimentados com fórmulas derivadas de leite de vaca ou outras proteínas alimentares em crianças mais velhas. O mecanismo imunológico não está completamente esclarecido. Envolve, provavelmente, a formação de imunocomplexos.5,6

Caracteriza-se por sintomas respiratórios crônicos com infiltrado difuso em radiografia de tórax e resolução dos sinais e sintomas após a remoção das proteínas do leite.4

A manifestação clínica é caracterizada pela tríade clássica de hemoptise, anemia ferropriva e dispneia. Anemia ferropriva isolada sem qualquer outro sintoma tem sido relatada na população pediátrica e pode preceder outros sintomas por vários meses. Outras manifestações clínicas incluem retardo pôndero-estatural, sinais e sintomas gastrointestinais e hemossiderose pulmonar (HP). Hepatomegalia, esplenomegalia, febre e linfadenopatia periférica podem estar presentes em raras ocasiões. A ausculta pulmonar pode não demonstrar qualquer ruído adventício.4

Nosso caso destacado teve todos os principais sintomas relatados. Ao exame físico, apresentava palidez clínica, taquipneia com tiragens subcostais, nível de saturação de oxigênio normal. Entretanto, a ausculta pulmonar era simétrica, sem ruídos adventícios.

Os achados da radiografia de tórax incluem opacidades, consolidação e infiltrados migratórios. A tomografia computadorizada de tórax (TC) é mais sensível. Pode revelar consolidação difusa e ocasional e opacidades em vidro fosco.3 No caso clínico apresentado, tanto a radiografia de tórax quanto a tomografia computadorizada mostraram anormalidades, incluindo opacidade difusa, consolidação e infiltrados migratórios.

O diagnóstico da síndrome de Heiner é um desafio, pois os sintomas e achados são semelhantes a muitas condições respiratórias. Os diagnósticos diferenciais mais comuns da SH incluem pneumonia, infecções agudas e crônicas do trato respiratório inferior, imunodeficiências e tuberculose.7

É importante descartar outras doenças associadas à hemorragia alveolar difusa, como infecção, síndrome de Goodpasture, vasculite associada ao anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) e outras doenças reumatológicas.3 Foram excluídas outras condições que pudessem estar relacionadas à hemoptise. Exames laboratoriais realizados descartaram tuberculose (GeneXpert ultra, baciloscopia, cultura de lavado gástrico), doenças autoimunes e reumáticas. A avaliação otorrinolaringológica não identificou sangramento de vias aéreas superiores.

A pesquisa de siderófagos contribui para o diagnóstico de HP. Embora a biópsia pulmonar seja o padrão-ouro para o diagnóstico de HP, esse método é invasivo e não é praticado em crianças.3 Neste caso, a hemossiderose pulmonar foi verificada pela demonstração de siderófagos corados pelo azul da prússia em aspirados brônquicos e lavagens gástricas matinais.

Os corticosteroides sistêmicos (1-2 mg/kg/dia) são a primeira linha de tratamento farmacológico da HP, especialmente durante a fase aguda da hemorragia alveolar. A duração exata da terapia com corticosteroide é incerta. Pode variar de acordo com a resposta do paciente e dura em média de 12 a 24 meses.1 Tratamentos imunomoduladores podem ser úteis (hidroxicloroquina, azatioprina ou ciclofosfamida) em casos mais graves ou como agentes poupadores de corticosteroides.1

O lactente descrito foi tratado com corticosteroides e recebeu doses maiores durante a fase aguda da doença, de acordo com a descrição na literatura médica. Corticosteroides inalatórios foram prescritos devido à hipótese de hiper-reatividade brônquica. Também foram oferecidas fórmulas hidrolisadas, uma vez que ele havia sido diagnosticado com APLV e essa condição tem bastante associação com HP, sendo nomeada síndrome de Heiner.

A história clínica revela desaparecimento das manifestações clínicas e remissão dos achados radiológicos após a restrição dietética do leite de vaca associada a corticoterapia. Quando o leite de vaca foi reintroduzido, mesmo estando em uso de terapia farmacológica, sinais e sintomas de exacerbação foram relatados.

 

CONCLUSÃO

A SH é uma doença extremamente rara e o diagnóstico muitas vezes é tardio. Pode mimetizar muitas doenças e deve ser considerada em qualquer lactente em uso de fórmula infantil que apresente retardo crônico do crescimento pôndero-estatural, anemia e sintomas respiratórios inespecíficos que não se resolvem com antibioticoterapia.2

Exames radiológicos de tórax combinados com exames repetidos para pesquisa de siderófagos no lavado gástrico ou no líquido do lavado broncoalveolar são úteis para o diagnóstico da doença, especialmente em crianças. Os glicocorticoides sistêmicos são a primeira linha de tratamento farmacológico. No longo prazo, terapia com baixas doses de glicocorticoides, ou uma combinação com outros agentes imunossupressores, pode ajudar a reduzir a recorrência.4,5 O tratamento medicamentoso deve estar sempre associado à terapia não farmacológica para controle da SH: dieta restrita de proteína do leite de vaca.

O reconhecimento precoce da SH e o tratamento imunossupressor adequado desempenham papel crucial no prolongamento da sobrevida e na melhora do prognóstico.

 

REFERÊNCIAS

1. Zhang Y, Fengla L, Wang N, Song Y, Tao Y. Clinical characteristics and prognosis of idiopathic pulmonary hemosiderosis in pediatric patients. Journal of International Medical Research 2019, Vol. 47(1):293-302

2. Ojauawo A, Ojuawo O, Aladesanmi A, Adio M, Abdulkadir M, Mokuolu O. Heiner Syndrome: An uncommon cause of failure to thrive.

3. Biplab KS. Idiopathic pulmonary hemosiderosis: A state of the art review. Respiratory Medicine 176 (2021):106234

4. Arasi S, Mastrorilli C, Pecoraro L, Giovannini M, Mori F, Barni, et al. Heiner Syndrome and Milk Hypersensitivity: An Updated Overview on the Current Evidence. Nutrients 2021, 13:1710.

5. Moissidis I, Chaidaroon D, Vichyanond P, Bahna SL. Milk-induced pulmonary disease in infants (Heiner syndrome). Pediatr Allergy Immunol. 2005 Sep;16(6):545-52.

6. Liu X-Y, Huang XR, Zhang JW, Xiao YM, Zhang T. Hematochezia in a Child with Heiner Syndrome. Front. Pediatr. 7:551, 2020.

7. Koca A, Sucub A, Celikb U. A different clinical presentation of Heiner syndrome: The case of diffuse alveolar hemorrhage causing massive hemoptysis and hematemesis. Respiratory Medicine Case Reports 26 (2019):206-208.