Revista de Pediatria SOPERJ

ISSN 1676-1014 | e-ISSN 2595-1769

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Número atual: 16(3) - Outubro 2016

Editoriais

Febre reumática: uma doença negligenciada

 

Márcia Fernanda da Costa Carvalho

 

A febre reumática é uma complicação de faringoamidalite causada pelo estreptococo β-hemolítico do grupo A. Pode ser prevenida pelo correto tratamento da faringite, e, uma vez diagnosticada a doença, sua progressão pode ser evitada com a instituição de profilaxia secundária, que consiste na aplicação de penicilina benzatina de 21 em 21 dias.

A febre reumática afeta, principalmente, as classes econômicas menos favorecidas, as quais têm maior risco de transmissão do estreptococo β-hemolítico do grupo A por habitarem muitas pessoas no mesmo cômodo e por dificuldades no acesso ao sistema de saúde, com tratamento inadequado das faringites estreptocócicas. O Brasil apresenta uma elevada incidência de febre reumática, como outros países em desenvolvimento - por exemplo, Índia, Egito e Paquistão.1,2

A febre reumática pode acometer as valvas cardíacas, sendo a principal causa de cirurgia de troca valvar em crianças e adultos jovens. A indicação de troca valvar na infância e na adolescência sempre é problemática, pois, na fase de crescimento rápido, a prótese valvar torna-se restritiva. As próteses biológicas podem calcificar-se em pouco tempo. Assim, alguns pacientes necessitam de várias cirurgias para novas trocas de prótese valvar, com o progressivo agravamento do quadro clínico.

As próteses metálicas necessitam de anticoagulação, colocando as crianças em situação de risco, já que, nessa faixa etária, são muito suscetíveis a traumas. Assim, a escolha do tipo de prótese valvar é um dilema, devendo sempre ser tentada a plastia da valva como primeira opção.

Devemos, também, considerar que a cardiopatia crônica no sexo feminino, especialmente quando necessita de troca valvar com anticoagulação, poderá levar, no futuro, a problemas obstétricos, com gestação de risco.3 A qualidade de vida dos jovens acaba sendo comprometida pelo absenteísmo escolar e pelo prejuízo na inserção no mercado de trabalho.

É fundamental o treinamento dos pediatras no diagnóstico e no tratamento das amidalites estreptocócicas (profilaxia primária). Essa edição da nossa revista apresenta uma excelente revisão sobre os critérios diagnósticos da febre reumática. O pediatra que atua na assistência primária e nos serviços de emergência tem um papel de grande importância no diagnóstico da doença reumática, que se fundamenta em critérios clínicos. Ele também deve atuar como facilitador e verificador da profilaxia secundária, quando presente em unidades procuradas pelos pacientes para a aplicação da penicilina benzatina.

Os gestores da saúde têm a responsabilidade de incluir a febre reumática como um problema de saúde pública pela morbidade que acarreta e devem promover o levantamento de dados confiáveis sobre a sua ocorrência. Assim, poderemos instituir uma política de prevenção de uma doença com alto custo social e econômico. Atualmente, não temos estatísticas confiáveis sobre a doença, apenas estimativas e dados com base em Autorizações de Internações Hospitalares (AIH), sendo frequentes os períodos de falta de penicilina benzatina - medicamento essencial para profilaxia primária e secundária da doença. Por fim, necessitamos de uma política de governo para que a febre reumática saia da lista das doenças negligenciadas em nosso país.

 

Márcia Fernanda da Costa Carvalho
Mestrado em Clínica Médica
Especialista em Pediatria e Cardiologia Pediátrica
Cardiologista Pediátrica do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira / Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

REFERÊNCIAS

1. Wyber K, Zuhlke L, Carapetis J. The case for global investment in rheumatic heart-disease control. Bull World Health Organ 2014, 92(10): 768-70.

2. Sliwa K, Carrigton M, Mayosi BM, Zigiriadis E, Mvungi R, Stewart S. Incidence and characteristics of newly diagnosed rheumatic heart disease in urban African adults: insights from the Heart of Soweto Study. European Heart Journal 2010, 31; 719-727.

3. Mendonça JT, Wanderley Neto J, Carvalho MR, Costa RR, Franco Filho E, Costa GB et al. Cirurgia valvar na infância um novo aspecto de ação Ver Bras Cir Cardiovasc 1992, 7(3): 174-9.