Artigo Original
Como a pandemia da Covid-19 afetou os casos de intoxicação exógena na pediatria brasileira: uma análise epidemiológica comparativa em crianças de 0-14 anos em 2019 e 2020
How the COVID-19 pandemic affected cases of exogenous poisoning in Brazilian pediatrics: a comparative epidemiological analysis in children aged 0-14 years in 2019 and 2020
Danielle Braz Amarílio da-Cunha; Juliana Barrozo Fernandes Borges; Julia Pinheiro São-Pedro; Maria Fernanda Araújo Barbosa Lima; Julia Oliveira Silva; Laryssa Ramos Pino de-Souza
DOI:10.31365/issn.2595-1769.v21isupl.1p7-10
UniCEUB, Faculdade de Ciências da Saúde - BRASILIA - DF - Brasil
Endereço para correspondência:
danielle.brazac@gmail.com / danielle.brazac@gmail.com
Recebido em: 26/06/2021
Aprovado em: 13/07/2021
Instituição: UniCEUB, Faculdade de Ciências da Saúde - BRASILIA - DF - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: A intoxicação exógena ocorre pela interação do organismo com substâncias nocivas. Na pediatria, esse distúrbio orgânico é um problema de saúde pública e acontece, principalmente, de forma acidental em domicílio. Com a pandemia da Covid-19, o isolamento social promoveu um aumento da vulnerabilidade das crianças, devido ao tempo de permanência em casa associado à maior exposição.
OBJETIVO: Analisar a correlação entre o número de casos de intoxicação exógena na pediatria no Brasil e a pandemia da Covid-19.
MÉTODOS: Realizou-se estudo transversal descritivo-quantitativo do número de casos de intoxicação exógena encontrados no sistema DATASUS/TABNET entre 2019 e 2020 referentes à faixa etária pediátrica de 0-14 anos.
RESULTADOS: Observou-se diminuição de 32.514 casos de intoxicação exógena em 2019 para 7.868 em 2020. Em ambos os anos, a faixa etária mais atingida foi de 1-4 anos, com percentuais de 47,12% dos casos de 2019 e 48,18% em 2020. As regiões Sudeste e Nordeste possuem a maior quantidade de notificações, visto que possuem maiores populações, sendo a Nordeste com maior taxa de incidência em 2019 e 2020. Os principais agentes causadores registrados nos dois anos analisados foram medicamentos, em primeiro lugar, seguidos de produtos de uso domiciliar.
CONCLUSÕES: Acredita-se que tal queda do número de casos de intoxicação exógena em 2020 esteja relacionada à subnotificação, sendo necessários mais estudos para análise de dados. Além disso, são necessárias medidas preventivas e educativas relacionadas à exposição das crianças a esses agentes.
Palavras-chave: Saúde Pública. Criança. Acidentes Domésticos.
Abstract
INTRODUÇÃO: Exogenous intoxication occurs due to the interaction of the body with harmful substances. In pediatrics, this organic disorder is a public health problem and happens mainly accidentally at home. With the Covid-19 pandemic, social isolation promoted an increase in children's vulnerability, due to the length of stay at home associated with greater exposure.
OBJECTIVE: To analyze the correlation between the number of cases of exogenous poisoning in pediatrics in Brazil and the Covid-19 pandemic.
METHODS: A descriptive-quantitative cross-sectional study was carried out on the number of cases of exogenous poisoning found in the DATASUS/TABNET system between 2019 and 2020 referring to the pediatric age group 0-14 years.
RESULTS: There was a decrease from 32,514 cases of exogenous poisoning in 2019 to 7,868 in 2020. In both years, the most affected age group was 1-4 years, with percentages of 47.12% of cases in 2019 and 48, 18% in 2020. The Southeast and Northeast regions have the highest number of notifications, as they have larger populations; the Northeast with the highest incidence rate in 2019 and 2020. The main causative agents recorded in the two years analyzed were drugs, firstly, followed by household products.
CONCLUSIONS: It is believed that this drop in the number of cases of exogenous poisoning in 2020 is related to underreporting, requiring further studies for data analysis. In addition, preventive and educational measures related to the exposure of children to these agents are necessary.
Keywords: Public Health. Child. Accidents, Home.
INTRODUÇÃO
A intoxicação exógena pode ser considerada uma mudança clínica ou laboratorial, resultante de um distúrbio orgânico devido à interatividade do organismo com agentes nocivos. Regularmente, essas situações estão correlacionadas com alguns sintomas agudos, como: vômitos, enfraquecimento, falta de ar, desmaios, convulsões, salivação excessiva, feridas no local de contato com o agente, entre outros.1
A intoxicação é um problema de saúde pública, principalmente na faixa etária pediátrica. Medicamentos e animais peçonhentos são os principais agentes responsáveis pelas intoxicações, seguidos de produtos de limpeza, pesticidas e produtos químicos de uso industrial. Nas crianças e adolescentes, alguns aspectos são peculiares, sendo necessárias medidas preventivas adequadas, tendo em vista que, em geral, são acidentais e acontecem dentro de casa. Dessa forma, devido à elevada incidência, o reconhecimento e conhecimento das etapas básicas da abordagem de intoxicação são vitais para o sucesso terapêutico.2
Uma vez que o infante está em contínuo crescimento e desenvolvimento de suas habilidades, apresentando perfil explorador, esse ser demanda redobrada atenção de seu responsável, devido a sua vulnerabilidade. Devido a essas características de intoxicação intradomiciliar, faz-se indispensável a noção dos pais de que simples medidas educativas são precisas para evitar essa exposição das crianças a agentes tóxicos, a fim de diminuir essa cadeia de intercorrências. Além disso, situações adversas nas quais as crianças vão ter um convívio em ambientes mais limitados poderiam ser um fator de risco para o aumento da incidência dessas situações de emergência.3
Portanto, com a pandemia da Covid-19, o tempo que as crianças ficam dentro de casa aumentou consideravelmente, já que foi necessário adotar medidas de isolamento social. Consequentemente, a exposição aos agentes que causam intoxicação exógena em ambientes domésticos cresceu, tornando a faixa etária pediátrica ainda mais vulnerável durante esse período.
Isto posto, o objetivo desta pesquisa é apresentar, de forma clara, uma análise do número de casos de intoxicação exógena na pediatria no Brasil e de que maneira a pandemia da Covid-19 afetaria tais ocorrências, em um comparativo nos anos de 2019 e 2020.
MÉTODOS
A presente pesquisa consiste em um estudo ecológico, transversal, descritivo, de cunho quantitativo, cujos dados foram obtidos através da base de dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) disponibilizados pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS/TABNET) nos endereços eletrônicos (http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/Intoxbr.def e http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/Intoxbr.def), acessados em março, abril e maio de 2021.4 Para a obtenção dos dados, foram utilizados os tópicos do sistema: "Faixa etária" (<1-14 anos) e "Agentes tóxicos"; e posteriormente, "Região/UF da notificação" e "Faixa etária" (<1-14 anos).
A população do estudo compreendeu todas as crianças de 0-14 anos que tiveram casos de intoxicação exógena notificados no sistema de saúde e apresentados no sistema do DATASUS/TABNET nos anos de 2019 e 2020. As variáveis analisadas foram: (1) a faixa etária das crianças, subdivididas em quatro grupos (<1 ano, 1-4, 5-9, 10-14 anos), (2) o agente tóxico (medicamentos, agrotóxico agrícola, agrotóxico doméstico, agrotóxico saúde pública, raticida, produto veterinário, produto de uso domiciliar, cosmético, produto químico, metal, drogas de abuso, planta tóxica, alimento e bebida, outros e ignorado/em branco); e (3) estado de notificação (todas as 27 unidades da Federação foram incluídas).
As informações foram coletadas diretamente do sistema, não havendo coleta individual ou nominal. Assim, por se tratar de dados disponíveis em esferas públicas, o trabalho não foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa.
Os dados dos anos de 2019 e 2020 foram analisados e comparados pelo software Excel® 2016. Assim, podese realizar uma análise epidemiológica comparativa de como a pandemia da Covid-19 afetou os dados de intoxicação exógena na pediatria brasileira.
RESULTADOS
A partir do presente estudo, esperava-se que os casos de intoxicação exógena em 2020 superassem os números de 2019, sobretudo devido ao isolamento social. Surpreendentemente, foi observada, na verdade, uma diminuição significativa comparando os valores totais desses anos. Em 2019, foram notificados 32.514 casos de intoxicação exógenas em crianças de 0-14 anos no país; já em 2020, na mesma faixa etária, notificaram-se 7.868 casos, representando uma queda considerável de aproximadamente 75,8%.
No Gráfico 1, observam-se os dados das notificações de intoxicação exógena de acordo com a idade (entre <1-14 anos) nos anos de 2019 e 2020. Em ambos os anos, a faixa etária mais atingida fora a de pacientes entre 1-4 anos, com percentuais semelhantes: 47,12% em 2019 e 48,18% em 2020, de acordo com o total de casos dos respectivos anos.
Ao observar os agentes tóxicos que levaram ao quadro de intoxicação nesses anos (Gráficos 2 e 3) verificou-se que o principal fator eram medicamentos, em ambos anos, representando 47,5% das intoxicações nessa faixa etária em 2020 e 50,7% em 2019. Em segundo lugar, ficaram os produtos de uso domiciliar, seguidos de alimentos/bebidas. Tanto em 2019, como em 2020, o percentual de notificações cujos agentes tóxicos foram ignorados/deixados em branco foi considerável, constituindo um empecilho para uma análise mais fidedigna de cada causa.
Além disso, no Gráfico 4 podem-se observar as regiões do país em que mais ocorreram tais notificações. A região mais afetada fora a Sudeste, seguida da Região Nordeste, o que já era esperado, já que são as duas regiões com maior população no país (89.012.240 e 57.374.243 pessoas, respectivamente). No entanto, quando comparando os percentuais (casos/habitantes), a Região Nordeste apresentou maiores taxas do que a Sudeste. Esse padrão foi visto tanto no ano de 2019, como em 2020, mostrando coerência com os resultados esperados.
Ademais, de todos os estados analisados, o de maior número foi São Paulo, com 1.095 casos em 2020 e 6.390 casos em 2019, o que também era previsto, em virtude de ser o estado mais populoso do país. Em seguida, ficaram Minas Gerais e Paraná, padrão observado nos dois anos em questão.
DISCUSSÃO
Esperava-se que os níveis de intoxicação exógena na faixa pediátrica aumentassem pelo fato de as crianças passarem maior tempo em casa. Entretanto, como observado no gráfico 1, houve, na realidade, um decréscimo nos níveis desses indicadores no ano de 2020 em relação a 2019. Uma possível justificativa para esse argumento é a subnotificação dos casos, conforme pode ser visualizado nos gráficos apresentados.
Ao avaliar os agentes envolvidos nas intoxicações, os medicamentos ganharam destaque. Eles estão entre os principais agentes de intoxicação em diversos países, como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido, e mesmo sendo utilizados para tratamento e/ou profilaxia para determinadas doenças, doses superiores ao normal tendem a ocasionar problemas sérios ao organismo.5 Além dos medicamentos, produtos de uso domiciliar e alimentos/bebidas também entraram na lista dos que mais causam intoxicações. Diante disso, é importante atentar ao fato de que quanto mais tempo as crianças passam em casa, maior a chance de contaminação, seja pela falta de conhecimento/supervisão dos cuidadores, ou até mesmo por um momento de desatenção.6
Visto que em um cenário pandêmico houve a maior permanência das crianças em ambiente doméstico, é improvável que esses fatores não tenham causado aumento nos níveis de intoxicação exógena. Portanto, suspeita-se que haja uma dinâmica de subnotificação ao invés de uma redução do número de casos no ano de 2020 em relação a 2019.
Além disso, ao analisar a faixa etária acometida, estava no intervalo de 1-4 anos, algo que se repete em diferentes estudos - por exemplo, Lourenço et al., que também obtiveram resultados semelhantes para as idades mais acometidas, sendo 64,5% menores que cinco anos.7 Ademais, segundo Matos et al., por meio de outro estudo, as faixas etárias mais acometidas se encontram entre 0-4 anos.8
Outrossim, ao avaliar as regiões com mais casos de intoxicação, houve mais casos no Sudeste e Nordeste, o que pode ser explicado por serem duas das três regiões mais populosas do Brasil.8 Além de serem as regiões mais populosas, é possível citar que a Região Sudeste é onde se consomem mais medicamentos, e o local com mais drogarias.9 Por conseguinte, o estado com mais casos foi São Paulo.
CONCLUSÃO
A intoxicação exógena pode ser definida como o surgimento de manifestações clínicas decorrentes do contato com substâncias químicas nocivas, que podem provocar complicações graves e, possivelmente, fatais. A faixa pediátrica está ligeiramente mais vulnerável a essas situações, devido à adição de curiosidade e inocência das crianças.
Observou-se, contudo, a partir da análise de dados, que houve diminuição no número de casos de intoxicação exógena em 2020 quando comparado com 2019. Esse resultado é reflexo do isolamento social, adotado no período de pandemia, por isso acreditase que a queda se deu devido à subnotificação, ou seja, os casos continuaram a acontecer, mas não foram notificados. A faixa etária mais acometida pela intoxicação exógena foi de 1-4 anos de idade, daí a importância de se adotar medidas de prevenção.
Por fim, é preciso realizar novos estudos para analisar, de forma mais precisa, o número de casos e, assim, verificar os níveis de subnotificação.
CONFLITOS DE INTERESSE
Nada a declarar.
CONTRIBUIÇÕES
Cunha DBA colaborou para a análise estatística, coleta de dados, redação e supervisão do artigo. Borges JBF, São Pedro JP, Lima MFAB, Souza LRP, Silva JO colaboraram com a coleta de dados, redação e revisão da pesquisa.
REFERÊNCIAS
1. Soares LM, Júnior ALL, Dal Col AG, Rosa AN, Silva AJGO, Arruda BCAP, et al. Intoxicação exógena na faixa etária pediátrica de zero até os 19 anos de idade no Brasil, durante os anos de 2007 a 2017. Brazilian Journal of Surgery and Clinical Research, 2020, 30(3):30-34.
2. Schvartsman C. e Schvartsman S. Intoxicações exógenas agudas. Jornal de Pediatria, 1999, 75(2), 244-250.
3. Salerno MR, Stein AT, Fiori RM. Situação sobre a prevenção de intoxicações exógenas em Ambulatório de Pediatria na década de 90. Scientia Medica, 2008, v. 18, n. 2, p. 66-74.
4. Ministério da Saúde. DATASUS. Intoxicação Exógena - Notificações registradas no SINAN/NET. 2021.
5. Maior MCLS, Osorio-de-Castro CGS, Andrade CLT. Demografia, óbitos e indicadores de agravamento nas internações por intoxicações medicamentosas entre menores de 5 anos no Brasil. Rev. bras. epidemiol. 2020 Mar 09;23
6. Vilaça L, Volpe FM, Ladeira RM. Intoxicações exógenas acidentais em crianças e adolescentes atendidos em um serviço de toxicologia de referência de um hospital de emergência brasileiro. Rev. paul. pediatr. 2019 Nov 08;38
7. Lourenço J, Furtado BMA, Bonfim C. Intoxicações exógenas em crianças atendidas em uma unidade de emergência pediátrica. Acta paul. enferm. 2008 Jul 22;21(8)
8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cidades e Estados. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ 2021.
9. Matos GC, Rozenfeld S, Bortoletto ME. Intoxicações medicamentosas em crianças menores de cinco anos. Rev. Bras. Saúde Mater. Infant. 2002 Jul 20;2(2):167-176.